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Por Nelson Rodrigues Rosa
Prólogo
– Hoje é o meu grande dia! – falou Lazarius consigo mesmo, parando pela ultima vez antes de percorrer o grande corredor que levava ao salão de eventos da biblioteca de Saravossa, em Calco. Respirou fundo tentando reorganizar seus pensamentos. Tudo acontecera muito rápido. Há algumas noites atrás não passava de um simples aprendiz de feiticeiro, num dos muitos colégios de magias de Calco. Hoje, no entanto, seria aclamado como um dos maiores pesquisadores de todos os tempos.
Começou a caminhar sem pressa pelo longo corredor, aproveitando para uma inspeção minuciosa em todos os detalhes. O corredor – hoje mais do que nunca – era imenso. Com cerca de 150 metros de comprimento, possuía toda sua extensão coberta por um tapete de pele grossa, tingido de vermelho, e diversos tocheiros de prata apareciam presos em ambas as paredes de pedras. Tapeçarias raras, mostrando cenas de batalhas importantes, balançavam com o vento que vinha das janelas, dando ao local um ar antigo. Milenar. Uma imensa porta dupla de carvalho, com inúmeras inscrições élficas entalhadas, encerrava o corredor. Do outro lado da porta, ouvia-se o murmúrio da multidão que o aguardava ansiosamente. Ele então encheu o peito de ar tentando buscar coragem e usou toda sua força para abrir com um único empurrão as pesadas portas que o separavam da glória.
Ao entrar no salão se deparou com o caos. Uma turba desorganizada se lançou de súbito em sua direção como se fosse atacá-lo. Por instinto, seu corpo se encolheu tentando defender-se dos golpes que não chegaram; ao invés disso, as dezenas de mãos lhe tocavam com afago, nos braços e nas costas, lhe dando os parabéns.
A confusão só foi encerrada com o som de três cornetas estridentes que ecoaram por todo o salão, fazendo a multidão se acalmar e abrir caminho, enquanto um homem alto, com roupas caras e um rosto afável sorria e falava com uma voz nítida e firme:
– Meu nome é Hemilannor, sou o rei de Calco e quero lhe parabenizar, Lazarius Malter. Você prestou um grande serviço para a história da humanidade. Suas descobertas foram, sem dúvida, as mais bem sucedidas e importantes que nós já havíamos conseguido naquela região.
As palavras do rei o emocionaram. Sentiu seu corpo estremecer e se empertigou de orgulho. Seu coração batia tão forte que parecia querer explodir.
– Vamos rapaz, venha! – continuou o rei, enquanto caminhava por entre a multidão que o aplaudia com entusiasmo. – A riqueza e a glória o aguardam!
Sorrindo, Lazarius caminhou em direção ao rei. Mas logo seu corpo todo enrijeceu como se virasse pedra e ele não conseguia dar mais nenhum passo. Olhava em volta. Todas aquelas pessoas ovacionando-o com expressões alegres, como se nada estivesse acontecendo.
Esforçou-se ao máximo para andar e tudo o que conseguiu foi ficar mais rígido. Uma angustia cresceu dentro dele, se transformando em mal-estar, e depois, em medo. Sua cabeça doía e o mundo pareceu girar por um instante. Numa última e desesperada tentativa forçou um passo para frente, fazendo seu corpo tombar e ele pode ver o chão se aproximar com velocidade. Logo, todo ficou negro.
Primeira Parte: A Torre
Lazarius acordou com um pulo. Pela terceira vez tivera o mesmo sonho e, como das outras vezes, com o mesmo fim.
Deixou escapar um pequeno gemido ao tentar se levantar de uma improvisada cama de palha. Decididamente, essas não eram as acomodações que sempre sonhou ter aos 22 anos de idade. Sonhava com os luxuosos quartos nas dependências dos grandes palácios, onde passaria confortáveis noites de sono em seus lençóis de linho limpo e travesseiros de penas de ganso. Contudo, por enquanto, era grato pelo punhado de palha sobre um chão duro e frio.
Já fazia seis meses que interrompeu seus estudos nas artes místicas em Léom, Dantsem, para dividir com um jovem meio-elfo a responsabilidade pela torre de sinalização da fronteira noroeste. “Um trabalho fácil”, haviam dito a ele. E realmente parecia fácil: apenas montar guarda no alto da torre e a qualquer sinal de uma incursão inimiga, incendiar o teto para avisar as guarnições próximas fugindo em seguida. Entretanto, ele não imaginava que a tensão e a ociosidade fossem muito mais cansativas que qualquer esforço físico. Dia após dia, ficava olhando para uma planície descampada onde os únicos movimentos pertenciam a cavalos selvagens correndo pelos campos ou as águias sobrevoando a grama em busca de comida, ou para uma floresta densa, que ficava mais ao sul. A noite era ainda pior, pois não se via nada além das fogueiras que rodeiam a torre a uma distância de 100 metros.
Ainda sonolento, caminhou até uma pequena mesa de madeira que havia embaixo da escada. Colocou um pedaço de queijo rançoso na boca e tomou um longo gole de um vinho azedo. Lavou o rosto com a água que estava armazenada em uma tigela de barro e em seguida, ainda mastigando o queijo duro, olhou o reflexo distorcido de seu rosto em um escudo de aço que ele mesmo polira para usar como espelho. Estremeceu ao ver em sua frente um homem pálido e de fisionomia cansada.
Lazarius Malter sempre fora um jovem bonito. Com espessos e revoltos cabelos castanhos indo até o ombro, olhos negros como carvão e um rosto decidido, mas afável, fino e sem barba. Decididamente era um homem alto, com cerca de 1,80m muito bem distribuídos. Seu pai costumava dizer que por ser alto e forte daria um bom guerreiro e que era disso de que Dantsem precisava. Contudo, ele escolhera os eruditos caminhos da magia e seus amigos brincavam dizendo que ele era uma mente de mago aprisionada num corpo de guerreiro. Ele mesmo achava graça disso, pois nunca possuíra vocação para ser soldado. Odiava violência e só aceitara o cargo de vigia porque achava que em tempos difíceis todos deveriam ajudar e ele ficava feliz por estar fazendo a sua parte.
Com um enorme esforço, começou a subir a longa escada de pedra em espiral, que hoje parecia possuir uns mil degraus ao invés dos habituais trinta. Cada passo era uma tortura e ele tentou pensar em coisas agradáveis para esquecer suas dores nas pernas. Lembrou-se do colégio onde estudava magia e de Alice, uma linda jovem que sempre fora melhor aluna que ele.
– Não Lazarius! – reclamou Alice. – Você precisa se concentrar. Tente deixar sua mente vazia, não pense em nada e respire fundo. Então, quando seu corpo e sua mente estiverem em harmonia, focalize o objeto e decida o que deseja fazer com ele.
Ela olhou para um cálice de barro que estava pousado em cima da mesa a uns dez metros de distância, respirou fundo e projetou seus braços para frente, na direção do objeto, como se fosse agarrá-lo. O cálice começou a levitar, movendo-se conforme o balanço de seus dedos e ela o fez flutuar de encontro às mãos grandes de Lazarius.
– Acho que nunca vou aprender a fazer isso – murmurou o rapaz Lazarius para si mesmo enquanto segurava o cálice.
– Você vai aprender, sim – retrucou Alice ao ouvir o murmúrio do amigo. – E se tornará um grande mago.
Ela beijou-o no rosto e saiu andando com elegância em direção à ala dos dormitórios femininos enquanto Lazarius, ainda segurando o cálice, a acompanhava com os olhos.
Chegando ao último andar da torre, Lazarius avistou seu companheiro Elric, o outro vigia, dormindo sentado em sua cadeira. Ele estava semi-deitado, com as costas apoiadas quase no centro da cadeira. Cruzara seus pés, apoiando-os no parapeito da torre, num angulo um pouco mais alto que sua cabeça, fazendo com que seu corpo curvado parecesse um grande arco composto. Sua cabeça estava levemente inclinada para o lado direito, tornando sua boca entreaberta visível, de onde escorria um fino fio de saliva parecido com uma teia de aranha que se alojava em seu peito formando um pequeno circulo úmido em sua blusa de linho cru.
Lazarius se aproximou devagar, um passo atrás do outro, como um tigre pronto a dar o bote praticamente não emitindo som algum. Rodeou a cadeira e se postou no lado esquerdo de Elric. Aproximou lentamente seu rosto ao ouvido do outro e de súbito soltou um grito estridente.
Elric foi arrancado de seus sonhos com tamanha violência que caiu com sua cadeira para trás, como se houvesse sido puxado por dez cavalos pesados. O barulho do choque de madeira e pedra ecoou por toda a torre, fazendo Lazarius cobrir os ouvidos com as mãos.
O vigia caído levantou-se rápido, apoiando uma das mãos no chão e outra nas costas doloridas. Olhou para Lazarius com um olhar assustado, como se houvesse visto um fantasma, que logo deu lugar a uma expressão dura de raiva.
– VOCÊ FICOU MALUCO?! – gritou o meio-elfo com uma voz ríspida, apontando o dedo indicador para a própria cabeça. – Perdeu completamente o juízo?
–Você... que perdeu... o juízo – respondeu Lazarius, tentando recuperar o fôlego que perdera rindo. – Não devia estar dormindo.
–Não estava dormindo, apenas cochilei durante alguns minutos.
Lazarius riu da desculpa.
– Elric, se eu fosse um inimigo você estaria morto agora.
O jovem meio-élfo olhou-o com desdém, a boca se retorcendo num riso de desprezo.
– Você vai me pagar por isso Lazarius – disse ele, quase num sussurro.
A ameaça de Elric perturbou Lazarius que, percebendo o descontrole do rapaz, tentou acalmá-lo dando uma piscadela de olho e indo a sua direção com um sorriso forçado.
– Calma! Eu só estava brincando, mas acho que exagerei um pouco. Desculpe-me.
Elric o encarou com uma expressão séria, mas de súbito seu humor mudou e ele rompeu o silêncio com uma gargalhada alta, que fez com que Lazarius desse um salto para trás.
– Tudo bem Lazarius, não se preocupe. Eu não iria ficar chateado com você por uma brincadeira. Foi até engraçado.
Lazarius riu sem graça, desconfiado da mudança brusca do meio-elfo. No colégio de magia haviam dito a ele que os elfos eram meio loucos e embora seu mestre Lucenos tivesse desmentido, ele não duvidava disso. Mais Elric fora criado no meio de humanos e, a não ser pelas orelhas pontiagudas, era um homem como outro qualquer. Será que ele ainda possuía resquícios da loucura élfica ou o cinismo que impera entre os humanos? Pensou.
Como que para encerrar a discussão, Lazarius sorriu e estendeu a mão para Elric, que lhe retribuiu o gesto e os dois se cumprimentaram com um aperto de mão forte. Ainda sorrindo, Elric girou nos calcanhares, caminhando em direção à escada de pedra, descendo degrau por degrau, sem olhar para trás.
Lazarius ficou ali, parado, observando os movimentos do corpo de Elric enquanto ele descia as escadas. Fez uma careta para a situação e riu baixinho caminhando em direção ao centro da torre.
A torre de vigia da fronteira noroeste estava longe de ser uma obra de arte. Tratava-se de uma tosca construção de alvenaria, cilíndrica, com cerca de dez metros de altura e apenas dois andares. O térreo era uma área circular com seis metros de raio usada como depósito, dormitório, etc. Do centro do aposento erguia-se uma grossa coluna também de alvenaria, que ajudava a sustentar a construção, indo até o teto. Uma escada de pedra circundava a coluna central, levando direto ao segundo andar, que eles chamavam de mirante do vigia. Do mirante, era possível obter uma bela visão de uma área descampada que se estendia por quilômetros e da Floresta de Marviom. O teto era baixo, pouco mais alto do que Lazarius, constituído de grossas vigas de madeira sob um emaranhado de palha. A qualquer sinal de perigo, bastava encostar uma tocha ou lamparina acesa e o teto se transformava em um grande circulo de fogo, podendo ser visto a quilômetros de distância. Havia dezenas de torres como aquela ao longo da fronteira com Verrogar.
Lazarius caminhou até o parapeito e viu Elric usando uma tocha para acender as fogueiras ao redor da torre. Deixou escapar um leve sorriso contido ao se lembrar do susto que o outro levara.
Começou então os preparativos para mais uma solitária noite de vigia. Reabasteceu com óleo cada uma das três lanternas que havia, umedeceu a ponta de três tochas e se dirigiu novamente ao parapeito noroeste. Percebeu que todas as fogueiras estavam acesas e que o meio-elfo já não se encontrava mais lá. Levantou a cadeira que estava caída no chão e sentou-se para saborear um copo de vinho que, juntamente com as lanternas e as tochas, iria aquecê-lo durante a noite.
***
Sir Ridel olhou com interesse o campo a sua frente. Mesmo estando a um quilômetro de distância, podia ver nitidamente o circulo luminoso de fogueiras da torre. Estava ansioso para agir, mas sua experiência o controlava. Sabia que não deveria se precipitar, pois se aquela torre fosse incendiada, todo o seu plano iria buraco abaixo junto com os meses de planejamento.
Olhou para trás, procurando seus homens sem obter sucesso. Havia ordenado que passassem fuligem nas placas das armaduras para camuflá-los melhor, mas o céu havia ficado nublado durante o entardecer, tornando a noite negra e seus homens invisíveis. Agradeceu a seu deus pelo céu sem Lua e sem estrelas e pensou em fazer uma oferenda a Crezir pela ajuda quando tomassem a torre.
Olhou novamente em direção as fogueiras e regozijou de alegria quando viu que uma havia apagado. Era o sinal.
– Chegou a hora, venha! – Sussurrou o cavaleiro para a escuridão, de onde saiu um pequeno vulto caminhando em direção à torre e às suas fogueiras.
***
Lazarius acordou assustado. Havia adormecido e não fazia idéia de por quanto tempo. Examinou uma das lanternas e pela quantidade de óleo chegou à conclusão de que deveriam ter sido apenas alguns minutos.
Xingou a si mesmo por sua displicência. Havia criticado duramente Elric por ter cochilado durante o seu turno e, no entanto, fizera o mesmo.
Levantou-se e caminhou até o parapeito. Olhou a escuridão a sua frente e respirou fundo, buscando um pouco de ar fresco.
Nesse momento algo chamou sua atenção. Uma das fogueiras estava apagada. Elric devia ter posto pouca lenha naquela fogueira, pensou. Precisava ter uma conversa séria com o meio-elfo, pois a sorte é que uma fogueira não fazia tanta falta, mas e se ele não houvesse posto lenha suficiente em outras logo várias poderiam estar apagando, tornando a coisa perigosa.
Uma imagem arrancou Lazarius de seus devaneios. Ao lado da fogueira apagada surgiu uma mulher, com as roupas rasgadas e parecendo estar ferida. Ela desabou em cima dos restos de lenha, mas Lazarius reparou que nenhuma cinza foi jogada para o alto, como se não houvesse cinzas, ou melhor, como se estivessem molhadas. Sendo assim, a fogueira fora apagada com água e não por falta de lenha.
O desespero tomou conta de Lazarius, que pegou uma tocha e a acendeu numa lanterna. Olhou outra vez o corpo caído lá embaixo sentindo uma angustia sufocante. E se fosse apenas uma camponesa bêbada? Ele daria um alarme falso e causaria a maior confusão. Provavelmente seria preso por isso e se tornaria um desgosto para sua família.
Lazarius correu até a borda da escada e gritou o nome de Elric várias vezes, cada vez mais alto, mas o meio-elfo não respondeu. Parou e respirou lentamente, obrigando-se a manter a calma. Verificou mais uma vez se o corpo ainda estava lá, imóvel. Olhou preocupado para o fogo que queimava em sua tocha, como se pedisse um conselho, e depois para o teto de palha. Deu um suspiro longo e decidiu... correndo em direção à escada de pedra.
Desceu a escada o mais rápido possível, saltando de dois em dois degraus. Chegando ao térreo, seus olhos varreram o cômodo, mas não havia nenhum sinal do outro vigia. – Onde estará o maldito meio-elfo? – rosnou Lazarius, com seu rosto vermelho de raiva. Não era a primeira vez que Elric saíra no meio da noite para – como ele chamava – seus passeios noturnos, embora Lazarius já houvesse enchido seus ouvidos com sermões sobre os perigos de manter apenas um vigia na torre à noite. Apoderou-se de uma espada que ficava encostada atrás da porta e saiu da torre como um furacão.
Caminhava com cuidado em direção ao corpo caído, olhando para os lados a toda hora. Aproximou-se do corpo o suficiente para perceber que se tratava de uma elfa, jovem e muito bonita. Estava vestida com roupas simples e com seu braço direito coberto de sangue. Chegou mais perto e a chutou de leve, mas ela não se mexeu, parecendo estar morta. Lazarius ficou contemplando deslumbrado por um longo tempo o rosto delicado da elfa. “Que pena, como ela é bonita!”, pensou.
Ele não entendeu quando seu corpo se esparramou no chão com sua espada e sua tocha indo parar a três metros de distância. Sua nuca doía e sua visão ficou turva por alguns instantes. Ouviu a risada de alguns homens e se virou depressa, ainda deitado. Viu as silhuetas de quatro pessoas antes que sua visão voltasse ao normal, quanto percebeu que não eram quatro e sim dez, todos armados com espadas e armaduras completas.
O desespero tomou conta de seus sentidos e ele se levantou com um salto. Viu que a elfa estava de pé e postada ao lado do guerreiro que se mantinha à frente do grupo.
– Qual é seu nome, rapaz? – perguntou Sir Ridel com a voz firme, demonstran-do seriedade e segurança. – Quantos vigias têm na torre?
Lazarius não respondeu. Olhou para a elfa, fuzilando-a com os olhos. Ela lhe devolveu o olhar com uma expressão inelutável.
– Responda! Gritou Sir Ridel trazendo para si a atenção de Lazarius novamente. – Eu não tenho a noite toda.
Lazarius avaliou a situação. Eles, embora não portassem brasões, eram certamente guerreiros de Verrogar. Estavam em maior número e todos fortes e bem armados, com diversas cicatrizes espalhadas pelo corpo, sugerindo-o que – ao contrário dele – eram guerreiros experientes. Olhou em volta, sentindo uma dor alucinante na nuca, enquanto encontrava sua espada e sua tocha jogadas no chão bem longe de seu alcance.
– Eu me chamo Lazarius Malter e sou o líder de um grupo de dez vigias – mentiu Lazarius. – Eles estão lá em cima agora, aguardando apenas o meu sinal para incendiar a torre.
Já sabendo da verdade, Sir Ridel riu do subterfúgio que o rapaz tentara usar e respondeu em tom de zombaria.
– Muito bem, Sr. Lazarius Malter. Estou me apoderando desse posto de vigia e já que o senhor é o líder por aqui, o reivindico como meu escravo. O senhor está preso.
Assim que o cavaleiro pronunciou as ultimas palavras, três soldados foram em direção de Lazarius, rindo e com as espadas em punho. Lazarius deu alguns passos para trás e pensou em correr. Sabia que aqueles guerreiros eram mais pesados do que ele e ainda estavam com armaduras completas, o que tornava impossível que o alcançassem. Notou também que nenhum dos dez usava arco e isso fez brotar um fio de esperança. Podia correr e tentar chegar à outra torre antes deles, avisando sobre a emboscada.
Entretanto, ainda havia o meio-elfo. Quando ele voltasse, esperando ser recebido com uma boa bronca, encontraria ao invés de seu companheiro de vigia dez soldados de Verrogar fortemente armados. Eles iriam estripá-lo e pendurar sua pele como se fosse uma bandeira. Infelizmente, não podia fugir afinal.
Os três soldados se aproximaram, zombando e cuspindo palavrões. Lazarius deu mais dois passos para trás e um quarto soldado, que ele ainda não havia notado, o agarrou por trás lhe dando um forte abraço. O medo tomou conta do rapaz, que encostou as mãos no corpulento soldado e como que por reflexo, liberou um dos mais perigosos encantos que seu mestre lhe ensinara.
Segunda Parte: A Floresta de Marviom
Dizem que quando se está à beira da morte toda sua vida passa como um lampejo diante de seus olhos. Lazarius, no entanto, após ter sido imobilizado pelo forte abraço do soldado de Verrogar, não viu em sua mente imagens de sua infância em Léom, nem de como aprendeu a cavalgar ou de sua primeira e solitária experiência sexual. Na verdade, o que lhe veio à cabeça foi apenas um vislumbre, de uma das muitas aulas que tivera com Lucenos: seu mestre, tutor e amigo.
Naquele dia Lucenos estava mais incisivo do que de costume e falava com veemência sobre os riscos de lançar magias destrutivas estando próximo ao corpo da vítima.
– Nunca se deve utilizar uma magia de ataque indireto, como “Raio Elétrico” e “Bola de Fogo”, estando próximo ao alvo – dissera ele. – Pois resquícios de sua força destrutiva podem atingi-lo causando ferimentos terríveis e, em certos casos, até a morte.
Infelizmente, Lazarius se lembrara dessa ultima frase de Lucenos tarde demais, pois estava atracado com o inimigo, com os dois corpos parecendo um só. Mais próximo que isso, impossível.
O grito de dor do soldado ecoou, quebrando a quietude da noite, quando uma poderosa descarga elétrica – saída das mãos de Lazarius – atravessou todo o seu corpo, fazendo o coração palpitar em um ritmo frenético até quase explodir. Cambaleante e com os ouvidos sangrando, o soldado esticou o braço implorando socorro a seus companheiros, mas não havia nada que pudesse ser feito. Seus batimentos aumentaram ainda mais até que seu coração não agüentou, parando de súbito e levando consigo as forças que o mantinham em pé.
Lazarius também caiu. Como previu Lucenos, uma parte da descarga elétrica retornou às mãos do jovem mago, arremessando-o contra o chão com violência. Tentou levantar-se se apoiando no chão e uma dor alucinante tomou conta de seus sentidos, fazendo com que quase perdesse a consciência. Como que por reflexo, olhou as palmas de suas mãos e ficou horrorizado. Estavam em carne-viva. Uma grande massa vermelha de pele e bolhas, cheirando a carne queimada.
Sir Ridel olhou incrédulo a cena que se desenrolava à sua frente. Um de seus melhores soldados havia sido morto por um jovenzinho de merda, metido a mago.
– Vou arrancar sua cabeça e dá-la de comer aos porcos, seu feiticeiro maldito! – rosnou ele, desembainhando sua espada e caminhando a passos largos em direção a Lazarius.
Lazarius ouviu o tilintar da armadura e levantou-se depressa, dessa vez sem usar apoio. O guerreiro se aproximava com um olhar assassino e de espada em punho. As mãos de Lazarius ardiam como brasa e ele piscou para espalhar as lagrimas que embaçavam sua vista.
Sem aviso, Sir Ridel saltou em direção a Lazarius, deu uma estocada e Lazarius recuou, esquivando-se do golpe. O cavaleiro recuperou-se depressa, tornou a investir, e Lazarius deu mais um passo para trás, com a lâmina rasgando-lhe a blusa na altura do ombro. Os outros soldados assistiam a tudo divertidos, sem qualquer pretensão de interferir. Sabiam que seu líder gostaria de vingar-se da morte de seu companheiro pessoalmente e apenas mantiveram-se alertas caso o mago tentasse fugir. Lazarius deu um soco, errou e quase foi espetado pela espada, mas saiu da frente bem na hora. Lazarius sabia que teria de mudar de estratégia, pois não tinha qualquer chance contra aquele cavaleiro. Teve uma idéia. Contudo, essa era sua última tentativa. “Agora ou nunca”, pensou.
Sir Ridel olhou desconfiado quando o mago levantou as mãos feridas e fechou os olhos, murmurando palavras em uma língua estranha. Por um momento pensou que ele estivesse rezando, ou se rendendo, mas logo descobriu que não eram essas as intenções do rapaz.
De súbito, um forte clarão iluminou toda a área da torre, como se o próprio sol tivesse sido trazido a terra, fazendo com que a noite virasse dia por alguns instantes. Quando a claridade diminuiu, Lazarius abriu os olhos e viu todos os soldados desnorteados, largando as espadas para esfregar os olhos ardidos com as mãos. Seu olhar percorreu o campo e ele se deparou com a elfa, que havia sido a única a entender as palavras pronunciadas por Lazarius, fechando os olhos a tempo de não sofrer com os efeitos da magia. Lazarius a olhou com angústia, preparando-se para caso ela tentasse detê-lo, mas a elfa não se moveu, permanecendo impassível.
Ele então avaliou suas possibilidades, mas não havia tempo nem alternativas, pois os soldados logo se recuperariam. Lembrou-se de Elric. Já se passavam horas desde a última vez que o viu e ele não voltara. Ou talvez ele tivesse voltado, visto o ataque e corrido até a guarnição mais próxima para pedir ajuda. De qualquer forma, não podia dar-se ao luxo de ficar conjeturando sobre o destino de Elric, precisava pensar em como salvar sua própria vida. Rezando para que o meio-elfo estivesse em segurança, girou nos calcanhares e penetrou na escuridão, correndo o mais rápido possível em direção à Floresta de Marviom, mais ao sul. No momento, sua única saída.
***
Sir Ridel olhou enjoado para a escuridão em direção a onde ficava a floresta. Estava exausto e tremendamente irritado, nada havia dado certo aquela noite. O plano era perfeito e tudo tinha sido feito como ordenara, mas quem poderia imaginar que aquele merdinha de vigia era um mago? Um de seus homens estava morto e o único sujeito que não poderia sair vivo havia fugido para a floresta. “Que merda”, pensou. Observou disfarçadamente a elfa enquanto ela limpava o ferimento no rosto, causado pela proteção de ferro de sua manopla. Merecia um castigo muito pior por ter deixado que o mago fugisse, mas acertaria as contas com ela mais tarde. Por hora, tinha problemas mais importantes para preocupar-se.
– Vamos, cambada de moças – gritou para seus soldados, que se preparavam para a caminhada. – Não tenho a noite toda.
Um dos guerreiros parou a seu lado, com ar preocupado.
– Senhor – sussurrou o soldado mostrando respeito. – A floresta é imensa, como o acharemos?
Sir Ridel deu de ombros, distraído, e respondeu devagar quase que consigo mesmo.
– Ele está ferido, cansado e com fome. Não vai conseguir se esconder por muito tempo.
Os soldados terminaram seus preparativos e Sir Ridel os olhou com orgulho. Eram bons soldados.
– Vamos homens, andem, enterrem o corpo – gritou Sir Ridel, desembainhando a espada e seguindo em direção a floresta. – Dois de vocês ficam para proteger a torre, o resto vem comigo. É hora de caçar.
***
Os três jovens elfos caminhavam silenciosamente pela trilha improvisada na floresta. Normalmente não caçavam tão distantes da aldeia, mas já vinham há algum tempo tendo de dividir seus territórios de caça com caçadores humanos que, devido à guerra, precisavam de cada vez mais comida. Em principio, os anciões da aldeia haviam negado, mas uma comissão de representantes dos homens os havia convencido, dizendo que a guerra também pertencia aos elfos, uma vez que era contra seu maior inimigo: o reino de Verrogar. Agora, os animais tinham se tornado escassos e os elfos eram obrigados a procurar alimento em partes cada vez mais distantes da floresta.
Leodegam, um elfo alto e bem forte, liderava o grupo, seguido por Lidarel e Eluviel, dois irmãos, filhos de um dos lideres da aldeia. Os três eram amigos desde pequenos e haviam treinado juntos a arte de caça élfica.
A mata naquele ponto era bem fechada e pouco conhecida por eles, de forma que os três seguiam em fila e estavam mais alertas que de costume. De repente, Eluviel – que seguia por último – parou, assobiando baixo para que os outros também parassem. Virou-se para a margem da trilha e colocou uma das mãos no ouvido em forma de concha, procurando ouvir melhor.
– O que foi, Eluviel? – perguntou Leodegam, ao ver a expressão intrigada do amigo. – Ouviu alguma coisa?
– Acho que sim, do lado esquerdo, mas não tenho certeza.
– Vamos averiguar – decidiu Leodegam, sussurrando para os outros dois. – Lidarel, você afasta a vegetação enquanto Eluviel se prepara. Eu dou cobertura aos dois.
Lidarel esgueirou-se da forma mais furtiva possível até o local indicado por Eluviel e segurou as folhagens, aguardando o sinal para puxá-las. Eluviel posicionou-se de frente, esticando a corda do arco até as penas da flecha ficarem ao lado de sua orelha pontiaguda. Leodegam também esticou o arco, só que com menos intensidade. Eluvial respirou fundo, concentrando-se, e deu a ordem.
Lidarel puxou as folhagens com força, procurando sair logo da frente para não atrapalhar a visão do irmão. Quando os olhos de Eluviel encontraram o alvo, ele se assustou com o que viu e lutou contra o reflexo de liberar a flecha. Não sabia o que iria encontrar, pensou que pudesse ser um javali ou um filhote de urso, mas nunca imaginou que encontraria um homem fraco, mal conseguindo manter-se em pé. O homem deu dois passos em sua direção e esforçou-se para falar, mas suas forças o abandonaram e ele desabou no chão, como uma árvore que acabara de ser cortada.
Eluviel afrouxou a corda do arco e caminhou em direção ao corpo do homem, fazendo sinal para que os outros o acompanhassem. Leodegam e Lidarel, sem entender o espanto do outro, seguiram rapidamente na mesma direção e ficaram igualmente surpresos com o que – ou quem – Eluviel havia encontrado. O homem era alto, de ombros largos. Estava de bruços, mas mesmo assim se podia notar que estava ferido, com um pequeno corte no ombro e com as duas mãos completamente queimadas.
– Não fiquem aí parados vocês dois – disse Leodegam, segurando o corpo do homem por um dos braços. – Me ajudem a carregá-lo.
***
Lazarius abriu os olhos e viu as estrelas por entre as copas das árvores. Estava deitado em um terreno macio e úmido. Podia-se ouvir um riacho próximo, com seu barulho característico, e ele pensou que talvez estivesse morto. Entretanto, as dores que se estendiam por todo seu corpo o deixavam consciente de que estava bem vivo. Esforçou-se para sentar e sua visão rodou por um instante. Sua cabeça latejava e seu estômago parecia ter sido totalmente espremido. Seu ombro havia sido lavado e suas mãos – embora ainda doloridas – estavam enfaixadas, com uma gosma verde por baixo do pano. Ouviu uma voz vinda de trás, que falava em élfico. Seu coração deu um salto e ele o acompanhou, ficando de pé. Contudo, seu corpo ainda estava fraco e ele cambaleou na direção do riacho, caindo de joelhos na margem lamacenta.
– Calma, homem – disse rápido Eluviel, percebendo o medo do humano. – Não iremos machucá-lo.
– O encontramos na mata – completou Leodegam. – Estava ferido e nós cuida-mos de você.
Lazarius olhou para os três elfos, desconfiado. Aos poucos sua mente foi clareando e ele se lembrou do que havia ocorrido: a torre, os soldados, A ELFA! Ao se lembrar da emboscada que armaram contra ele, usando uma elfa traidora para fazer com que descesse da torre, o medo retornou com força total e Lazarius começou a andar para trás, não ousando dar as costas para os elfos armados com arcos.
– Quem são vocês? – perguntou o jovem mago, em élfico, com uma das mãos enfaixadas apontadas para os três estranhos. Não podia fazer mais nenhuma magia, pois sua força mística havia se exaurido, mas se aqueles elfos fossem traidores, saberiam que ele era um mago e que havia matado um deles com seu poder. Essa lembrança o deixou novamente enjoado.
Leodegam já esperava por isso. Ao analisar os ferimentos das mãos do homem, chegou a conclusão de que não poderiam ter sido feitas com fogo, já que não havia resíduos de madeira ou ferro. Também não poderia ter sido água escaldante, pois nesse caso, a pela ficaria enrugada, repuxada por cima das bolhas e não em carne viva, como estavam. Só lhe restava uma opção: magia. Ou lançada contra ele, ou por ele.
– Calma – Leodegam falava devagar, tentando demonstrar tranqüilidade. – Já dissemos que você não precisa ter medo. Não vamos machucá-lo. Se quiséssemos, já o teríamos feito, e não tratado de seus ferimentos.
Lazarius refletiu por um momento. Eles tinham razão. Talvez não fossem inimigos, afinal. Como o elfo mesmo disse, já poderiam tê-lo matado.
– Meu nome é Lazarius Malter. Sou vigia da torre de sinalização da fronteira noroeste. Sofremos um ataque e perdemos a torre. Receio que estejam atrás de mim.
– Quantos vocês são? – Perguntou Leodegam.
– Dois. Eu e um meio-elfo chamado Elric. Não sei onde ele está. Talvez tenha ido buscar ajuda, mas pode já ter sido capturado.
– E quem os atacou? – intrometeu-se Lidarel, visivelmente nervoso.
– Guerreiros de... Verrogar – respondeu Lazarius hesitante. – Era um grupo de dez, comandados por um cavaleiro.
– Verrogar! Você disse Verrogar?! – os três elfos falaram juntos, entreolhando-se. – Precisamos fazer algo, urgente!
***
O dia já estava amanhecendo quando Sir Ridel olhou por entre as folhagens o grupo parado na margem do rio. Já estava ali há quase uma hora, desde que os três elfos chegaram com o corpo do mago para lavar seus ferimentos. Praguejou contra a sorte daquele homem. Até agora ele havia conseguido escapar e sempre com um golpe de sorte. Será que seu deus o estava protegendo? Duvidava. Sempre soube que os magos não rezavam para os deuses, tinha certeza que eles seguiam os demônios. Convivera com magos algumas vezes, principalmente depois que recebeu o título de cavaleiro. Por umas quatro vezes participara de missões para a corte onde magos estavam presentes. E eles sempre levavam toda a glória. Sir Ridel odiava os magos. Achava que não passavam de demonistas covardes, que usavam forças oriundas dos planos infernais ao seu bel prazer. Era sempre a mesma coisa: não importava o quanto ele e seus homens fossem eficientes e corajosos, se houvesse um mago entre eles, este seria aclamado como o grande herói. Aquele que com seu poder trouxe a vitória para Verrogar. Que honra havia nisso? Onde estava o orgulho merecido aos cavaleiros?
Agora, aquele mago merdinha estava cercado de elfos. Sir Ridel odiava os elfos ainda mais do que os magos, pois, embora tivesse visto poucos elfos em toda sua vida, ouvira falar que todos já nasciam magos. Isso já era demais. Era a gota d’água.
Uma gargalhada estridente arrancou o cavaleiro de seus devaneios. Ele olhou para o grupo e viu que estavam rindo. Em princípio, o mago pareceu desconfiar dos três elfos, mas agora já estava bem mais relaxado. Tinha que agir logo, pois caso os elfos levassem o mago para sua vila, estaria tudo perdido. Olhou em volta. Seus homens estavam agachados na mata, com as espadas em punho, apenas aguardando seu sinal. Sir Ridel não havia pensado em lutar contra magos, nem contra elfos numa floresta, mas aquela incursão já havia saído totalmente dos padrões. Não havia volta. Só lhe restava ordenar o ataque.
E ele ordenou.
***
Lazarius já estava gostando daqueles elfos. Embora fossem meio antipáticos, eram bons e haviam salvado sua vida. Não conseguia ver neles nada daquela loucura que tanto falavam. Ao contrário, os achava até engraçados, principalmente quando Eluviel o imitava pedindo ajuda.
– Vamos voltar à aldeia – sugeriu Leodegam, colocando a aljava no ombro. – Lá você estará seguro e nós formaremos um grupo para procurar seu am...
Leodegam foi interrompido pelo barulho do choque de metal e terra, entrecortado por gritos furiosos. Os quatro se viraram para a floresta e viram sete guerreiros correndo e brandindo suas espadas em uma carga alucinada. O pânico tomou conta do grupo e os elfos sacaram seus arcos. Atirar com arcos para os elfos era tão natural quanto cuspir ou falar. Leodegam tirou uma flecha da aljava e a colocou no arco, esticou a corda ao máximo e soltou, pegando outra em seguida. Seu movimento foi acompanhado pelos outros dois elfos e então as terceiras flechas estavam nas cordas quando as primeiras atingiram o alvo. E logo, uma chuva de flechas caiu assobiando sobre o grupo de guerreiros.
Sir Ridel viu o céu ficar salpicado com as pontas metálicas, e logo dois de seus guerreiros caíram com flechas trespassadas em seus corpos. Ele então gritou para que aumentassem a velocidade, mas outra saraivada de flechas chegou cantando e picando. Um soldado ao lado esquerdo de Sir Ridel teve seu crânio atravessado, espirando sangue na armadura do cavaleiro. Os malditos não paravam de atirar e Sir Ridel ouviu novamente o assobio das flechas e o barulho oco das estocadas na terra. Era uma música lamentosa, como uma sinfonia tocada pelo próprio demônio. Mais uma saraivada. Mais um soldado morto. Era o inferno, tinha certeza.
Lazarius assistia a tudo assustado, nunca vira tantos homens mortos. Tentava sentir pena, mas não conseguia. Aqueles homens tentaram matá-lo e ele sentia-se aliviado cada vez que um gritava de dor. Só restavam três guerreiros quando os grupos se chocaram, mas mesmo com a igualdade numérica, ficou clara a superioridade dos guerreiros em um combate corpo-a-corpo.
Lidarel viu o soldado chegando e tentou sacar o punhal, mas não teve tempo. O soldado girou a espada por baixo e a levantou com força, acertando a virilha do elfo. Lidarel soltou um chiado quase inaudível e tombou para o lado sangrando.
Eluviel viu seu irmão morrer bem ao seu lado, sem que pudesse fazer nada. Um ódio incontrolável cresceu dentro dele, fazendo-o avançar contra o assassino, esquecendo seu próprio adversário. O soldado deu uma estocada e Eluviel recuou, aparando o golpe com o arco. O soldado retomou o equilíbrio e tentou cortar o elfo de cima para baixo, mas Eluviel deu dois passos para o lado e deixou que a lâmina se chocasse contra o chão. Então, com um movimento rápido, levantou o arco e bateu com a ponta no rosto do guerreiro, que deixou cair sua espada e deu um passo para trás, com o nariz quebrado. Eluviel aproveitou para desferir uma série de golpes com a verga do arco no soldado, usando-a como se fosse um porrete. O ódio pela morte de seu irmão o deixara cego, e ele não percebeu que havia mais um soldado atacando-o por atrás. Uma lâmina brotou de sua barriga e o gosto de sangue lhe veio a boca. O soldado puxou a espada e Eluviel caiu, vendo o guerreiro que ele espancara se levantar e caminhar até ele, com a espada suja do sangue de seu irmão. Chorou por sua morte e pelo que seria de sua vila se os assassinos de elfo invadissem a floresta. Seu corpo já estava dormente e ele não sentiu dor quando o soldado baixou a espada cortando sua cabeça. Enfim, a paz viera.
Leodegam ficou completamente descontrolado ao ver o soldado cortar a cabeça de Eluviel. As lagrimas escorreram por seu rosto e ele jurou que vingaria a morte de seus melhores amigos. O grito de alerta de Lazarius atraiu sua atenção bem a tempo de esquivar-se do golpe de espada. O guerreiro a sua frente era mais alto e mais forte do que ele, sem falar na espada e na armadura. Iria morrer com certeza, mas prometeu a si mesmo que levaria o máximo de inimigos que pudesse consigo. Sacou o punhal, fazendo Sir Ridel rir.
– Você só pode estar brincando! – zombou Sir Ridel, levantando a espada na altura dos olhos. – Somos três guerreiros armados e protegidos por armaduras e você nos ameaça com um punhal? Renda-se, você está sozinho e não tem a menor chance.
Ele não está sozinho. – interrompeu Lazarius, colocando-se entre Leodegam e o grupo de guerreiros, com as mãos levantadas – Vocês viram o que eu fiz antes e não imaginam o que posso fazer agora. Deixem-nos ir, caso contrário, terão o mesmo destino de seu amigo na torre.
A ameaça de Lazarius fez transbordar o ódio dos olhos do cavaleiro, e ele se arrependeu disso. Estava blefando e se não funcionasse certamente Leodegam e ele seriam torturados da forma mais cruel possível antes de serem mortos.
Sir Ridel avaliou a ameaça. Realmente aquele merdinha poderia ser perigoso. Não queria deixá-los partir, mas não via alternativa, já que tinha perdido muitos homens aquela noite e não queria ver mais nenhum morto.
– Tudo bem, cadáver, vá. Mas saiba que o caçarei como um animal e não des-cansarei até que você tenha sofrido por cada homem morto hoje.
Um jorro de alívio inundou o coração de Lazarius. O blefe funcionara e, embora não duvidasse que o cavaleiro fosse caçá-lo, estava com Leodegam, que conhecia bem a floresta. Poderiam chegar ao povoado élfico e pedir ajuda. Lazarius começou a puxar Leodegam para dentro da floresta.
– Vamos Leodegam, venha comigo – sussurrou o mago, começando a arrastar o Elfo.
– Vá você – retrucou Leodegam, com o rosto tomado por lágrimas. – Eles mataram Eluviel e Lidarel e terão de pagar por isso.
– Você não poderá vingar-se se estiver morto.
Leodegam aceitou os argumentos de Lazarius e os dois foram se afastando do rio, caminhando para a mata fechada e quando perceberam que não podiam ser mais vistos, correram.
Sir Ridel olhou a dupla se afastando. Mais uma vez tinha de deixar o mago fugir. Entretanto, sentia que a caçada estava chegando ao fim. Olhou para os corpos no chão e depois começou a gritar ordens para os dois soldados sobreviventes.
– Enterrem os nossos – ordenou Sir Ridel, enquanto se limpava no rio. – Revistem os elfos e depois joguem seus corpos na água. Com sorte, conseguiremos envenená-la e matar mais alguns elfos malditos.
Lazarius e Leodegam andavam por entre a trilha da floresta em direção ao povoado élfico quando foram surpreendidos por uma figura humanóide, que saltou de um árvore com um pedaço de pau na mão. Se Lazarius não tivesse impedido, Leodegam teria atravessado a cabeça de Elric com uma de suas flechas.
– Elric! – exclamou Lazarius, surpreso ao encontrar o companheiro de vigia. – Mais onde você se meteu?
– Estava caminhando à noite e quando voltei, vi dois soldados guardando a torre. Pensei que pudesse ser algum grupo nosso fazendo reconhecimento mas, como não vi você, achei estranho e não me aproximei.
– E aí você não se importou se seu amigo estava em perigo e fugiu para a floresta? – perguntou Leodegam ríspido.
– Não foi bem assim – disse Elric. – Como eu disse, não vi Lazarius. Ele só poderia ter fugido ou sido preso. De qualquer forma, eu não poderia ajudá-lo se fosse capturado também. Já tinha ouvido falar que nessa floresta existia um povoado élfico, por isso, vim para floresta tentar pedir ajuda.
– Pronto. Está resolvido. – falou Lazarius para encerrar a discussão. – Agora, temos que chegar logo ao povoado élfico, só lá estaremos seguros.
Os três começaram a andar em fila. Querendo mostrar exemplo, Lazarius foi à frente para ditar o ritmo, seguido por Leodegam e Elric. Foi quando ele ouviu um grito, olhou para trás e viu Leodegam caído, com as costas sangrando e Elric segurando um punhal ensangüentado.
– NÃO! – gritou Lazarius. – O que você vez, Elric?!
– Chega disso – respondeu Elric, com expressão de desdém – Chega de lutar ao lado dos fracos. Você não vê? Não adianta, não importa o que façamos Dantsem vai perder essa guerra, e depois, será a vez dos elfos. Estou assegurando meu lugar entre os vencedores.
– Você ficou louco, Elric. Está completamente louco. Eles não querem você, assim que tudo estiver acabado matarão você também.
– Não é verdade – uma terceira voz ecoou pela floresta. – Você Elric, fez a escolha certa e estará entre os vitoriosos quando tomarmos Léom.
Lazarius – embora já soubesse – virou-se em direção à voz e viu Sir Ridel, com mais dois guerreiros o cercando. Olhou para Elric e não encontrou nada além de desprezo. Estava morto, tinha certeza.
– Isso pode te surpreender, mas não mataremos você, mago – prometeu Sir Ridel, como se lesse os pensamentos de Lazarius. O manteremos bem vivo, como escravo. E asseguro que você desejará a morte todos os dias de sua vida a partir de hoje.
Epílogo
Lazarius chegou a Treva, capital de Verrogar, amarrado e sendo puxado por uma corda que tinha sido posta por um soldado envolta do pescoço, como um cachorro sem raça. Sua visão estava turva, devido ao inchaço nos olhos decorrentes dos muitos socos e chutes que recebera durante toda a viagem. Tinha a impressão de que seu corpo estava todo quebrado e um gosto amargo de sangue velho o fazia cuspir com freqüência. Ouvia a multidão gritando eufórica enquanto atirava legumes podres, pedras e excrementos de animais em sua direção. Foi arrastado por alguns metros até a entrada do calabouço, quando o arremessaram escada abaixo. Rolou, batendo com a cabeça até cair no chão duro e frio. O calabouço era escuro e fedia a fezes. Pensou ter ouvido um murmúrio vindo do canto, acompanhado por barulho de correntes sendo arrastadas. Seus olhos se acostumaram com a escuridão até que pode reconhecer a elfa, a mesma que o havia feito descer da torre e mudado seu destino.
– O que faz aqui? – perguntou Lazarius surpreso. – Você não é uma deles?
– Fui, mas Sir Ridel disse que eu não era mais confiável por ter deixado você fugir.
– A propósito, por quê você fez isso?
– Acredite ou não, eu não pretendia lhe fazer mal – respondeu a elfa, com voz de choro. – Fui obrigada. Minha família e eu fomos capturadas durante um ataque dos soldados de Verrogar a um vilarejo na fronteira e, se eu não colaborasse com o plano, minha família morreria.
– Sinto muito. Ao menos salvou sua família – Lazarius tentou confortá-la.
– Na verdade, não. Eles a mataram de qualquer forma.
Lazarius olhou a elfa chorando e sentiu pena. A situação dela era ainda pior do que a sua.
Devido à queda da torre de sinalização da fronteira noroeste, muitas outras guarnições foram pegas de surpresa e igualmente derrotadas, sendo substituídas por guarnições falsas, compostas por soldados de Verrogar. Diversas aldeias, vilas e cidades pereceram, até que as tropas do rei se dessem conta do que realmente estava acontecendo e repelissem o inimigo. Mas já era tarde, o estrago havia sido feito.
Muitos prisioneiros foram mandados para o mesmo calabouço em que Lazarius estava e ele sempre escutava uma nova história de como seu fracasso havia causado mortes e destruição para seu povo. Contudo, sabia que as pessoas eram cruéis por acusá-lo daquela forma, pois não estavam lá naquela noite. Uma noite onde tudo dera errado. Onde elfos traíram seu povo por Verrogar e um jovem mago lutou contra cavaleiros. Uma noite longa, difícil, assustadora e cansativa. Enfim, uma noite para ser esquecida.
Verbetes que fazem referência
Crônicas de Tagmar-volume 1
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