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O homem chamado Janus andava pelo corredor. Seus passos ritmados guiavam sua postura de nobre. Era um Maestro iniciando uma orquestra. Seus pés, cujos sapatos de couro tingido combinavam com o vermelho da lã, levitavam no chão largo que caminhava. De certa forma a roupa era inapropriada para tal fato, mas era o único jeito de estar ali. Era a prova de uma sagacidade vivida na mente de um velho que adiara a morte tendo pagado pelo seu atraso. Estupefato ficou quando soube das intenções de seu contratante, mas escolhera o homem certo para o serviço.
O corredor, decorado em todos os detalhes, mostrava portas e mais portas. Em seu trajeto, um ou outro guarda acenava a cabeça, mas nenhum fizera-lo qualquer pergunta. A presença deles era comum e Janus sabia que muitos estavam pelo Castelo. Sabia também que eram bons soldados que protegiam o rei, e que uma luta com algum deles estava fora de questão. Não queria matar mais uma pessoa do que o planejado.
O Castelo, grande e majestoso, estava coberto por um delicado véu de semi-mortandade, um augúrio da morte para homens e mulheres. E pessoas estavam morrendo ou iam morrer nesse dia.
Não seria difícil encontrar o aposento que procurava. Poucas horas atrás estava sentado sob um tumulo antiquado e absorvendo instruções do mapa e de um velho inteligente. Cinco pergaminhos, bem elaborados, mostravam cada passagem necessária para efetuar sua missão. Ainda brincara com o homem dizendo: “Tenho certeza que darão falta desses mapas...” e escutando a rastejada resposta: “Não, não. Paguei muito bem por eles. Eles nunca existiram”. Olhando bem para os mapas, lembrou-se da frase dita momentos antes em tal conversa e atreveu-se a repeti-la aos ouvidos de sua companhia: “É, há sempre um jeito da raposa pegar o coelho”.
A luz do sol iluminava sua frente, saindo de janelas altas e sem proteções. Jarros, quadros, vitrais, tudo passava em tom borrado a sua visão enquanto seus pés seguiam para o quarto da princesa Elira. Seu faro agindo como se estivesse caçando.
Quando soube estar próximo, avisado pela grande porta-dupla, aguçou os ouvidos treinados a fim de escutar movimentos de terceiros. Nada. Não havia as servas rotineiras paparicando a nobre princesa. Atento, sabia o por que de não escutar as servas próximas da porta. Levara em conta esse importuno ao seu contratante durante a conversa. Este, mais uma vez, pensara em tal problema e tratara de solucioná-lo. Pronto, nada podia sair errado. Todos os palitos haviam sido removidos e separados. Só restava alguém morrer.
Enquanto empurrava, cuidadosamente, a porta-dupla com a mão esquerda, olhou pela brecha fina formada pela abertura da mesma. Não viu ninguém. Havia moveis e mais moveis e estes nada interferiam no seu trabalho.
Rápido, jogou seu corpo pela extremidade da porta. Viu-se comprimisse, reduzido impressionantemente para passar pelo pouco espaço. Deu alguns passos no chão azulejado em direção há um espelho no meio de uma parede. Era um silêncio mortal o que se passara no quarto. Enquanto seguia, procurou relaxar sua musculatura, pensando nas palavras que ouvira: “Deixei-a refrescar-se com um banho...”, seria um trabalho rápido o seu. Parou. Virou-se a um canto e viu uma porta, esta pequena, quase escondida na parede. Aproximou-se devagar, seus pés mais leves a cada passo. Pelo que aprendeu com os mapas, ali deveria ser a sala de banho, usado para refrescasse.
A porta estava aberta, um sorriso percorrendo a face de Janus. Baixou o braço esquerdo e sua mão entrou pela extremidade oculta de sua calça. Era pequena e apertada, mas do tamanho certo para o punhal que ali estava. Seus dedos juntaram-se enquanto segurava o cabo de osso preso a lâmina envenenada. Um liquido escuro, grosso, era protegido por uma fina pele de animal. Levou algum tempo para aprender como era fácil conservar veneno já na lâmina de um punhal, bastava apenas protegê-la com uma camada de pele de intestino de algum animal herbívoro e este serviria como barreira, não deixando o liquido esvair-se.
Assim que puxou o punhal, do tamanho de sua palma, empurrou a porta que separava o quarto da sala de banho. Foi leve seu movimento. Os olhos percorreram o aposento suntuoso a procura de sua vitima. Nada. A sala não era grande e nem demonstrava qualquer outra passagem. Uma grande banheira era o móvel maior do aposento. Um tapete caqui escondia o chão, que provavelmente era de um azul-turquesa. O cheiro de botões-de-fada transportava o local para um paraíso campestre. Seus pés entraram e nada encontraram. A sala estava vazia.
Janus guardou seu punhal envenenado no oculto bolso da calça. Estava visivelmente irritado pela falta de sorte. A princesa Elira não estava na sala de banho. O destino lançara-lhe um coringa no ousado plano. O plano não deveria conter falhas.
Saiu apressado do quarto e entrou novamente no corredor. Continuava silencioso. Franziu o cenho com a chance que escapara de suas mãos. Mas havia algo, ainda, para ser feito. Fora contratado para matar duas pessoas da família real. A princesa Elira era uma. A chance escorreu quando não veio rápido para o quarto dela. Porém, outra pessoa teria de experimentar o fel de sua lâmina. Ainda poderia sair com um contrato bem sucedido e, depois, voltaria para terminar o serviço. De forma alguma poderia deixar essa chance escapar.
Colocou os pensamentos em ordem e prosseguiu rente ao fim do corredor. Teria que andar muito ate chegar o local que seu outro contratante dissera que sua vitima estaria. Esperava Janus não ter mais problemas.
Mal sabia que não chegaria.
***
Subindo os degraus do calabouço, Refal perdia-se em pensamentos. Teria que deixar esse sacerdote e cumprir o que lhe pediram. Logo, dirigiu-se ao encontro da princesa Elira.
Refal havia 27 verões servido a princesa Elira. Chegara novo como servo e transformara o Castelo das Brumas em sua casa. Suas lembranças, pequenas recordações de longínquos tempos, deixavam vago o passado. Sabia que sua mãe morrera durante uma escaramuça que atacara a caravana em que ia em direção a Léom, e seu pai ninguém tivera noticias. Foi um dos seis sobreviventes do ataque. Quando chegou a cidade, sua historia reverberou nos pilares da sociedade, ate que chegou aos ouvidos da princesa Elira. Esta, com sua bondade, ordenou que o jovem fosse entregue a ela e que a serviria durante o resto de sua vida. Não, no entanto, era algo de mau gosto. Haveria um teto para ele ficar, cama para dormir e tantas refeições quanto desejasse. Elira, na verdade, estava adotando uma criança órfã cujo futuro era incerto.
Durante seu crescimento, conviveu com um pequeno príncipe Cresuel, sendo uma criança ajudando outra. Na maioria das vezes, era deixado correr livre pelos jardins do castelo, sair pela cidade ou outra atividade quando não fosse necessário aos serviços de Elira. Esses serviços eram, em grande maioria, fofocas da realeza ou missões de investigação rente à presença de seu marido. O príncipe Jorge II não reclamara da ação de sua esposa, mas deixava bem claro que enforcaria o jovem Refal se esse a ofendesse.
Já era adulto, um homem formado, e suas limitações eram grandes. Sendo acompanhante da princesa Elira, Refal não poderia mais sair sozinho e sempre era escoltado por guardas, pois Jorge II cuidava da segurança de sua esposa. Mas não deixou que tal fato prejudicasse seu futuro. Ele era um jovem ambicioso, uma criança nos molde da realeza cuja nobreza fora retirada no nascimento. Restava a Refal, filho de camponês e servo da princesa, trilhar certo seu futuro.
A chance não demorou a aparecer. Era constante a visita de nobres no Castelo das Brumas. O príncipe Jorge II concedia festas, banquetes ou reuniões nos arredores do castelo. Outros nobres advinham tentando um argumento para aumentar suas posses ou apenas como visita a um rei que logo morreria. Foi, em uma dessas casuais visitas, que Refal conheceu Lorde Avriom de Calinior.
Este ainda não necessitava de sua atual cadeira nem de servos guarda-costas sob suas costas. Conseguia andar sozinho, sua postura madura de um velho guerreiro cuja nobreza advinha antepassados bravos. Não era festa, nem banquete, nem qualquer ouro tipo de comemoração, era apenas uma visita formal, onde Lorde Calinior mantinha a cada estação. Esta era outono.
Logo que viu a chance crescente em seu destino, Refal tratou de agarrar como um tigre a sua caça. Lorde Calinior, um velho doentio que não viveria muito tempo, conversava constantemente com Refal, sozinhos em uma das salas desocupadas do castelo. E, em uma dessas reuniões secretas, Lorde Calinior fizera um novo aliado.
Lorde Calinior não poupou em levantar promessas à mente jovem e ambiciosa de Refal. Era como se ele tivesse o dom de ler a mente das pessoas, pensou Refal, quando este lhe prometeu mudar de vida. Como Lorde Calinior não tinha família, só parentes distantes que eram dispensáveis, ele prometera assegurar o futuro de Refal se este servisse como espião do velho Lorde. Refal, ainda meio interessado, aceitou de imediato rente a ultima oferta de Lorde Avriom de Calinior: quando este morresse, deixaria toda sua fortuna e seu titulo para o jovem Refal. Pronto, a ultima carta fora lançada e pegara sua vitima. Refal, o jovem acolhido pela princesa Elira, tornara-se o informante de Lorde Calinior no Castelo das Brumas.
Já havia passado a estação e Refal esperava a visita de Lorde Calinior no Castelo para dar-lhe informações, mas o nobre não comparecera. Quando soube, na mesma noite que todos do castelo, da morte do príncipe Cresuel, Refal não tardou em avisar o seu bem feitor. Fora muito bem recompensado. E, quando sozinho em seu quarto, descansando de uma manhã mordaz, recebera, secretamente, uma ordem do homem que em breve passaria seu titulo para Refal, seus olhos vislumbraram o futuro próximo, pois o velho deixaria o mundo dos vivos muito em breve e se desobedecesse tal ordem não herdaria a fortuna da família Calinior.
Assim, Refal, cuja lealdade Elira pensava ter, teria que retirar as servas da companhia da princesa Elira, quando o Lorde Calinior chegasse cedo na manhã do outro dia. E Refal cumpriu sua ordem.
Quando soube que o Lorde Calinior estava nos aposentos do rei, procurou sua princesa para vigiá-la. Teve, com tudo, que esperar um jovem sacerdote aparecer e temeu não dar tempo. Mas o sacerdote veio cedo na manhã de primavera e não foi difícil saber quem era. Por um bom tempo seguiu Elira e este jovem seguidor de Selimom, esperançoso que sua missão fosse cumprida logo. E viu o futuro abrir-lhe um largo sorriso quando Elira, horas depois, trancou-se com o príncipe Jorge II no quarto. Agiu rápido, não deixando a chance escapar-lhe das mãos.
Refal, o único homem servindo Elira, mandou que as servas deixassem-na sozinha, repousando no quarto com seu marido. As servas, mulheres obedientes, saíram as pressas do corredor, onde um acabado príncipe Jorge II sairia momentos depois.
A princesa Elira, futura rainha de Dantsem, estava sozinha no quarto. A morte espreitando seus passos.
CAPÍTULO 9
Verbetes que fazem referência
Traição e Magia,
CAPÍTULO 7