Esta página contém material oriundo dos livros oficiais e não pode ser editada
Por Nelson Rodrigues Rosa
A plataforma em que Josar estava era feita de madeira e junco e possuía cerca de três metros, altura suficiente para que pudesse observar toda a extensão da massa de pessoas que se aglomeravam na rua estreita, disputando a cotoveladas um lugar que lhes proporcionasse o melhor ângulo da apresentação. Era um dia atípico em Runa e todos estavam felizes. Conversavam, riam, apontavam, cantavam, apostavam... Sempre procurando a melhor forma de se distraírem enquanto aguardavam a atração principal.
Havia também muitas crianças presentes e elas tentavam igualmente se divertir. Algumas se ocupavam atirando pedras em um cachorro sarnento, que buscava desesperadamente proteção contra os projéteis se escondendo embaixo do palco. Mas as crianças davam a volta e encontravam outro espaço, de onde recomeçavam a alvejar e insultar o animal, que fugia novamente emitindo ganidos angustiantes.
Josar viu as crianças se afastarem e estremeceu quando o animal mais uma vez uivou de dor. Transferiu seu olhar para a multidão e deu um longo suspiro. Todos estavam lá para vê-lo. Ele estava acostumado a grandes apresentações, pois como um renomado alquimista, já fizera muitas para os grandes senhores de Runa. E era sempre a mesma coisa: Josar inventava uma nova solução que ajudava na colheita e os senhores da cidade ficavam embasbacados; imbuia em um item algum novo encanto e eles ficavam igualmente extasiados. Tudo que Josar criava era motivo para aclamação. Agora, como em tantas outras vezes, o jovem alquimista tinha um novo espetáculo pela frente, onde seria novamente o personagem principal. Mas desta vez não demonstraria nenhum novo óleo ou elixir, nem algum invento criativo. Estrelaria um espetáculo de dança: a dança sob o cadafalso. Sim, porque Josar fora condenado à forca.
Suas pernas e braços estavam acorrentados e usava um manto preto por baixo de uma cota de malha surrada, onde parecia derreter devido ao calor. O suor fazia seu rosto brilhar, encharcando a gola de seu manto e sua calça na altura da cintura. Não estava acostumado com armaduras e o peso incomodava seus ombros, mas no fim, dera graças por estar vestido com quase vinte quilos de ferro. A armadura tinha sido posta para evitar que proferisse algum encanto, e estava sendo eficiente nisso, o que era um problema. Por outro lado, quando a portinhola sob seus pés fosse aberta, talvez desse a sorte de o peso acentuar a queda, quebrando seu pescoço e evitando que demorasse muito para morrer. Já ouvira casos de homens que ficaram quase uma hora debatendo-se sob o cadafalso, e essa idéia o apavorava.
Olhou para seu lado direito e avistou um homem alto e corpulento, tinha o peito nu e um longo capuz preto ocultava seu rosto. Mantinha-se parado, com os braços cruzados e olhando a multidão, apenas aguardando sua vez de agir. Ao seu lado esquerdo estava Borivil, o soldado da Guarda Arcana responsável por sua captura, além de ser seu melhor amigo. Estava sério e com uma expressão triste, como se o mundo estivesse prestes a acabar. Josar compreendia sua dor, mas não houvera escolha, e o alquimista estava feliz por ter sido do jeito que foi.
O homenzarrão se moveu atraindo a atenção de todos. Josar o viu se abaixar e pegar uma corda, em cuja ponta fora feito um grande laço. A multidão vibrou com o momento. O carrasco caminhou até o centro do tablado e colocou calmamente o laço em volta do pescoço do condenado, provocando uma grande ovação. O homem estava tão perto que Josar podia ouvir sua respiração, sentir o cheiro de seu suor, e perceber que ele também estava nervoso. Seu coração disparou. Ele inclinou o pescoço para o lado e observou a multidão que assistia eufórica ao seu enforcamento. As mulheres riam enquanto os homens colocavam seus filhos nas costa para que não perdessem nenhum lance. “O povo mais civilizado” era o que diziam. “Uma ova!”, pensou.
Fitou Borivil uma última vez e pode ver lágrimas escorrerem por seu rosto fino. Josar pensou então em sua vida e nos motivos que o trouxeram a essa situação, procurando algum fato que o fizesse sentir-se culpado, arrependido, mas não encontrou nenhum. E teve a certeza de que faria tudo de novo se fosse preciso. Tudo.
Há cerca de três anos não passava de mais um jovem aprendiz de feiticeiro em Runa. Seu mestre era um alquimista medíocre, que nunca conseguira um grande invento e vivia frustrado. Por conseqüência, não dava a mínima atenção para seu jovem aprendiz e Josar teve de aprender a se virar sozinho. Tentava extrair o máximo do pouco que o velho lhe ensinava – se é que aquilo podia ser chamado de ensino – e praticava usando como base os livros raros que seu mestre guardava nas imensas prateleiras do laboratório, dos quais não conhecia metade do conteúdo. Mas Josar conheceu e aprendeu muita coisa com esse método até que, num dos muitos e solitários dias de estudo, acertou em cheio: descobrira uma formula para um óleo que deixava as coisas invisíveis. Não que a invisibilidade fosse novidade, mas todos esses tipos de poções necessitavam de um ingrediente especial e dificílimo de conseguir: o famoso peixe pigi. Na versão da poção de invisibilidade criada por Josar, o peixe não era necessário, economizando assim muito tempo e dinheiro. O jovem mostrou sua poção para seu mestre que ficou encantado.
– Uma maravilha! – Exclamou o velho.
– Vou apresentar minha descoberta para Melvim – disse o jovem, orgulhoso.
– Mas você não pode – retrucou o velho alquimista, fazendo sua voz soar solene. – Precisa de alguém que o represente, alguém com mais experiência e conceito. E eu terei prazer em ajudá-lo. Diga-me, rapaz, como fez isso? – Perguntou o mestre, com os olhos esbugalhados quase saltando para fora do crânio, tamanha curiosidade.
Josar contou e entregou a poção para o velho que correu para apresentá-la aos mestres de Runa, dizendo ser uma criação sua. Melvim – um dos maiores místicos de Portis – ficou fascinado com a descoberta, prometendo ao velho alquimista riqueza e fama infindáveis.
Melvim então quis saber sobre a composição da poção e o velho, orgulhoso de sua esperteza, recitou passo a passo todo o que Josar havia falado. No entanto, não havia nenhuma novidade na fórmula, o que deixou Melvim desconfiado. Ele pressionou o velho, que terminou por se atrapalhar, pois na afobação não notara que Josar havia falado tudo, menos o ingrediente principal, o que substituía o peixe pigi. Depois de algumas perguntas mais ríspidas e uma cara de bravo de Melvim, o velho não agüentou e confessou que a criação não tinha sido sua, e sim, de seu aprendiz. O velho alquimista foi então banido de Runa por tentar enganar o conselho e Josar levado até Melvim, que o presenteou com um novo laboratório e requisitou que o jovem fabricasse mais da poção de invisibilidade. E Josar, obediente, fabricou.
Com o tempo, outros inventos foram surgindo do laboratório do jovem, cada um mais interessante e fascinante que o outro, e logo Josar atraiu a atenção de toda a cidade. Passou a ser conhecido em todos os cantos, fato que lhe trouxe fama, dinheiro e privilégios.
Um dia, entretanto, Josar inventou um óleo que solidificava qualquer líquido e se preparava para apresentá-lo aos governantes quando avistou a mais perfeita criatura que os deuses haviam criado: Laura, filha de um dos senadores. Ela estava presente durante a demonstração e ficou maravilhada com a inteligência e o carisma do jovem alquimista. A interação fora perfeita e o contato, inevitável. Em pouco tempo, os dois começaram a namorar.
Foi nessa época que Josar conheceu Borivil, um jovem soldado que ingressara havia pouco tempo na Guarda Arcana. Os dois se tornaram grandes amigos e Borivil foi o grande responsável pelo namoro de Josar e Laura prosseguir. Embora Josar fosse rico e famoso, não satisfazia o gosto do pai da moça, que tinha outros planos para ela proibindo peremptoriamente o namoro. Por isso, Josar teve de arrumar outra saída, o que se mostrara uma tarefa fácil para a mente criativa do alquimista, o difícil seria convencer Borivil a ajudá-lo.
– Não posso fazer isso, Josar. Você ficou maluco? – Dissera Borivil na primeira vez.
– Que nada. Ninguém vai saber – retrucou o alquimista.
– Não. Você está fora de si. Se alguém descobre, eu serei, no mínimo, chicoteado – Disse Borivil, sacudindo a cabeça negativamente.
– Borivil, Borivil. Eu preciso de você, meu amigo. Eu a amo, você sabe. E preciso vê-la ao menos mais uma vez.
O soldado pareceu desconfiado.
– Só mais uma vez?
– Só mais uma vez – prometeu Josar, levantando as mãos para mostrar que não tinha os dedos cruzados. – Só mais uma vez e eu nunca mais irei sequer olhar para ela.
– Tá bom. Mas se descobrirem, você me paga! – Ameaçou Borivil, cônscio de que estava fazendo uma coisa muito errada.
Naquela mesma noite Borivil deixou que Josar atravessasse a guarda para que – utilizando um de seus feitiços – flutuasse sobre os muros da casa de Laura e entrasse pela janela do quarto da moça. Entrou muito depois do anoitecer e saiu bem ates do dia clarear. Embora tenha prometido a Borivil que aquela seria a primeira e a última vez que arriscaria o pescoço dos dois entrando no quarto da moça, no dia seguinte lá estava ele, e depois de uma pequena discussão com Borivil, escalara os muros e invadira novamente o quarto de Laura. E em todas as noites a partir daquele dia Josar dormiu com sua amada, enquanto Borivil redobrava a vigilância para que ninguém descobrisse a pequena travessura dos dois.
O amor faz coisas incríveis, disso o alquimista tinha certeza. Desde que começara o romance secreto com Laura sua produção havia triplicado. Josar produzia muitas poções sob encomenda dos grandes comerciantes de Runa, trabalhava em várias pesquisas para o Senado e ainda encontrava tempo e inspiração para criar novas fórmulas. Certo dia, em reconhecimento aos seus grandes feitos, chegou a ser recompensado com um grande presente dos sacerdotes do templo de Palier. Um presente que, segundo os próprios sacerdotes, valia muito mais que um castelo cheio de ouro. As pessoas ficavam impressionadas com seu desempenho e sempre que perguntavam qual seu segredo, o alquimista desconversava, dizendo que a paixão pelo que fazia o estimulava. Com isso, Josar era um homem feliz. Tinha dinheiro, prestígio e a mulher que amava.
No entanto, a felicidade de Josar não era compartilhada por Laura, que gostaria de se casar e ter filhos. Certa vez propôs fugir com o alquimista, argumentando que ele já tinha dinheiro suficiente para não trabalhar pelo resto da vida, e que os dois amantes poderiam ir pra algum reino ao sul, ou a oeste, onde seu pai não os encontrasse.
– Que tal, meu amor? – Perguntara-lhe Laura, certa vez. – Podemos ir para Saravossa, por exemplo. Ou quem sabe outra cidade mais ao sul.
Josar olhou a mulher com desânimo, pois a amava, mas não gostava da idéia. Tinha uma ótima vida em Runa e não queria largar tudo o que havia conquistado até aquele momento. Se fugisse com Laura para outro reino, além de ter que começar tudo de novo, a partir do zero, viveria sempre preocupado com que alguém os encontrasse. Por outro lado, amava Laura mais que tudo, e sabia que ela não aceitaria uma resposta negativa. Por isso, tentou ganhar tempo.
– Vamos ver – terminou dizendo. – Eu não tenho tanto dinheiro como você pensa. Mas assim que eu tiver, nós fugiremos.
Ela claramente esperava outra resposta, mas se contentou em aguardar por mais algumas semanas. Com isso, dois anos se passaram.
***
Foi numa noite estrelada de verão que Josar chegou mais uma vez para visitar Laura. Borivil não estava mais lá, pois seus ótimos trabalhos e a recomendação de Josar fizeram com que o jovem soldado fosse elevado de função. Embora isso não significasse uma patente maior, ele ganharia mais e se livraria do exaustivo trabalho noturno. Mas antes de sair de seu posto, Borivil deixara seu sucessor ciente do trato com Josar, e após uma boa barganha – e algumas moedas de ouro – o novo guarda ficara feliz em ajudar o casal.
Assim, o alquimista, como sempre fazia, flutuou sobre o muro até a janela do quarto de Laura, empurrou a janela e entrou sorrateiro, mas para sua surpresa o aposento estava vazio. Estranho, pensou. Ela sempre o esperava àquela hora. Josar resolveu relaxar, sua amada logo chegaria para que os dois passassem mais uma maravilhosa noite juntos. Deitou na cama macia, se recostou numa grande almofada de seda bordada e esperou.
Josar acordou assustado com o sol batendo em seu rosto. A claridade transpassava a cortina de seda tingida e deixava o ar colorido como nas grandes capelas que possuíam bonitos vitrais. O alquimista se levantou, pegou sua mochila e andou até a porta. Passara a noite inteira esperando sua Laura, mas ela não aparecera, o deixando preocupado. Abriu a porta bem devagar evitando que rangesse, e pela pequena fresta pode avistar um dos criados da casa.
O criado era alto, magro e usava roupas simples. Terminou de recolher alguns castiçais, colocou-os numa sacola de couro e seguiu pelo corredor, em direção ao quarto de Laura. Josar fechou a porta e se posicionou ao lado, encostado na parede. Viu a maçaneta se mexer e o criado entrar, e antes que este fizesse algo, sussurrou a palavra durma, e esse simples gesto fez o criado despencar já desacordado, bater com a cabeça na quina de uma mesa e chocar-se com força contra o chão, sujando o tapete de sangue.
O alquimista olhou o homem estirado no chão, a parte da frente de sua cabeça sangrava devido ao golpe. Pegou os cabelos do homem com cuidado para não sujar a mão e levantou sua cabeça até onde pudesse ver seu rosto. Satisfeito, largou a cabeça ensangüentada do homem e vasculhou sua bolsa provocando um leve tilintar do choque de vidro contra vidro. Pegou um frasco que continha um líquido branco e jogou no ferimento, fazendo o sangue dar lugar a uma espuma branca, borbulhante. Quando o líquido finalmente parou de espumar, Josar retirou-o com a ponta de seu manto apenas para ter certeza de que o ferimento havia fechado, como se nunca houvesse existido. Remexeu novamente a bolsa pegando outro frasco, dessa vez com um líquido coral. Bebeu todo o conteúdo e estremeceu. Seu corpo começou a tremer com espasmos involuntários, crescendo cerca de vinte centímetros. Suas feições também mudaram aos poucos: pêlos nasceram em seu rosto, seus olhos castanhos escureceram e o queixo alargou. Em poucos segundos, estava irreconhecível, pelo menos como Josar, porque agora ele possuía o rosto do criado. Sua blusa e calça ficaram pequenas, obrigando Josar a disfarçá-las colocando um manto por cima. Ele recolheu os castiçais que o criado deixara cair, colocou-os novamente na sacola e saiu tranqüilamente pela porta. Nunca estivera naquela parte da casa e por um momento ficou confuso de que direção tomar. O corredor era longo, com várias portas e duas escadas, uma em cada extremidade. Resolveu seguir para a escada da direita que descia até uma parte movimentada da casa. Podia ouvir o barulho de pratos batendo e pessoas conversando. Desceu lentamente, degrau por degrau, até que um homem gordo gritou com ele, fazendo-o saltar de susto.
– Mais que demora do inferno, Hermam! – Gritou o homem para Hermam, sem saber que na verdade falava com Josar. – Pensei que tivesse resolvido recolher todos os castiçais de Portis!
– Desculpe, senhor – respondeu Josar, cauteloso. – Aqui estão – estendeu a sacola de couro para o homem, que levantou a mão para pegá-la e sorriu divertido.
– Ótimo! Matilda! – O homem gordo se virou e gritou na direção de uma mulher tão gorda quanto ele. – Leve estes castiçais lá para fora e limpe-os como se fossem sua própria bunda gorda. Quero vê-los brilhando. – A mulher pegou a sacola, lançou um olhar irritado para o homem e saiu da sala, levando a sacola com os castiçais.
O gordão se virou novamente para Josar.
– Sabe Hermam, você tem de saber tratar as mulheres, caso contrário, elas se revoltam.
– Sim, senhor.
– Eu sempre soube como tratar as mulheres – gabou-se o gordo. – Tanto que sempre estive rodeado delas.
Josar sorriu sem graça e tentou ser mais objetivo com seu plano. Afinal, dispunha de pouco tempo.
– Senhor, posso lhe perguntar uma coisa?
– Claro Hermam, o quê é?
– Não recolhi os castiçais do quarto de lady Laura, porque bati na porta e ninguém atendeu. O senhor sabe se ela encontra-se no quarto?
O gordão fez cara de indignação fingida, colocou as mãos na boca e arregalou os olhos, como se estivesse surpreso.
– Você não pegou os castiçais do quarto dela? Pelos céus, homem! Vão chicoteá-lo por isso – ele soltou uma gargalhada alta, mas parou aos poucos quando percebeu que Josar não achara graça. – Não, ela não está – disse por fim, ainda recuperando o fôlego que perdera rindo. – Você não sabe? Ela foi para Maginor, se preparar para o casamento.
– Casamento! Que casamento? – Josar não conseguiu disfarçar a surpresa.
– Ora, o casamento dela com aquele nobre de Filanti – respondeu o gordo sem interesse, como se a notícia já não fosse mais novidade. – Por onde você andou, Hermam? Todo mundo sabe disso!
Josar não respondeu, estava atordoado com sua descoberta. Laura havia ido para Maginor – uma cidade mais ao sul – preparar seu casamento com um nobre estrangeiro, e ele não sabia de nada. Que maldita traição, pensou. Deu as costas para o gordo e saiu apressado pela porta dos fundos. Precisava ser rápido, pois sua poção não duraria muito. Ouviu o homem gordo gritar, dizendo para que voltasse, pois ainda tinham muito trabalho a fazer. Josar ignorou os protestos do gordo e continuou saindo da propriedade do pai de Laura, até que entrou num beco escuro que ficava ao lado da casa. Seu corpo começou a estremecer, seu rosto se contorcendo com espasmos e fazendo cair todos os pêlos excessivos. Alguns segundos depois, lá estava o rosto de Josar de volta. Ele cobriu a cabeça com o manto e seguiu andando a passos largos para seu laboratório, tão rápido que quase corria. Como ela pôde? Como ela pôde fazer isso comigo? Dizia a si mesmo, seus olhos transbordando lágrimas. Chegou ao laboratório e teve dificuldades para abrir a porta. Suas mãos tremiam, dificultando o manuseio das chaves. Conseguiu, por fim. Trancou a porta por dentro, fechou as cortinas e se dirigiu para sua mesa de trabalho, que estava coberta por diversos frascos de vidros das mais variadas formas e tamanhos. Era hora de pôr sua cabeça para funcionar novamente, só que dessa vez sua criatividade estava atrelada a um novo estimulo: vingança. E Josar usaria todo seu ódio como combustível para seu cérebro, decidindo que se superaria. O momento pedia um grande feito e o alquimista iniciou o trabalho que geraria a maior criação de sua vida.
– Laura – disse baixinho. – Minha querida Laura. Por que fizestes isso comigo?
***
Borivil estava preocupado. Extremamente preocupado. Josar já estava trancado em seu laboratório havia quase um mês e se recusava a atender alguém, nem mesmo seu melhor amigo. Borivil sabia o motivo da reclusão de Josar: o casamento de Laura com o nobre filantiano. A moça havia passado quase três semanas em Maginor e agora voltara para Runa, para a celebração do casamento.
A cerimônia fora um sucesso. Um sacerdote de Palier conduzira, com maestria, todos os ritos, falando que a união daquelas duas almas distintas daria vida a uma terceira, que compartilharia do conhecimento de ambos e propagaria seus ensinamentos. E assim, Palier abençoava o casamento, dissera o sacerdote. Muitas mulheres choraram quando o noivo beijou Laura, que estava linda em um vestido de seda branco, completamente bordado com detalhes em ouro. Borivil não era convidado, estava de serviço. Graças à indicação de Josar ele recebera um novo posto, e em pouco tempo fora promovido. Agora, comandava um grupo de cinco homens que, juntamente com outros membros da Guarda Arcana, eram responsáveis pela segurança durante o casamento e a festa.
As pessoas se divertiam. Um grupo de bardos tocava e cantava animando a festa, enquanto serviçais serviam carne de cabrito, pão, queijo e frutas para os convidados. Muitos barris de vinho foram trazidos de Conti especialmente para a ocasião e alguns convidados mais desinibidos já estavam bêbados. A festa transcorria na mais perfeita ordem, com poucos problemas. Apenas algumas desavenças provocadas pelo excesso de bebida, mas que foram rapidamente controladas pela Guarda Arcana. A música permanecia contínua e agradável. Alguém derrubou uma taça de vinho provocando barulho de vidro estilhaçando, um homem gargalhou alto e algumas pessoas bateram palmas para os bardos, atirando algumas moedas para eles em seguida.
Nesse instante Borivil ouviu um cochicho, que logo virou um murmúrio. As pessoas foram aos poucos abaixando a voz enquanto se esforçavam para olhar a porta. Borivil se juntou a elas, mas havia cada vez mais gente se aglomerando em direção a porta e o soldado não conseguia ver nada. De repente, a multidão de convidados se calou, golpeando o salão com um silêncio angustiante. Borivil não agüentou e forçou caminho por entre as pessoas para, enfim, ver o motivo de tanto espanto.
No centro da porta do salão estava Josar, vestido um longo manto negro e carregando nas mãos uma pequena caixa de madeira. Seu rosto estava pálido e seus olhos fundos, sugerindo que não dormia há semanas. Borivil tinha certeza de que aquilo não terminaria bem. Era o único que sabia do romance entre Josar e Laura, do qual o amigo saíra tremendamente machucado e certamente tencionava se vingar. Sua própria aparição – vestido de preto – deixava isso claro, já que a cor escura era considerada um péssimo presságio em casamentos. Borivil lançou um olhar involuntário para Laura e pôde ver o medo estampado em seu rosto. Os demais convidados também pareciam assustados com a chegada do alquimista, no entanto, mais devido a sua roupa do que suas intenções. Foi o noivo quem quebrou o silêncio.
– Você deve ser Josar, o alquimista – embora estivesse distante da porta, o nobre não precisou gritar para que todos ouvissem, tamanho o silêncio. – Ouvi falar muito de você. É uma honra recebê-lo em meu casamento. – O nobre, acostumando a discursos, fez uma pausa para que todos absorvessem suas palavras, e então continuou: – Mas isso não lhe dá o direito de aparecer vestido de negro – disse o noivo, dessa vez mais ácido. – Gostaria que se explicasse.
Josar fitou de longe o nobre durante algum tempo, olhou para Laura e depois para o nobre de novo.
– Perdoe-me, senhor, se minhas vestes não são adequadas. É que prezo muito a família da senhorita... digo, da senhora Laura, e tão logo soube do casamento, me pus a trabalhar, incansavelmente, durante o último mês para lhes preparar um presente – Josar esticou as mãos mostrando a caixinha de madeira. – E, infelizmente, não me restou tempo para cuidar das roupas. Imploro que me perdoe milorde, não foi minha intenção ofendê-los.
Todos pareceram satisfeitos com a resposta do alquimista, menos Borivil, que sabia que Josar planejava alguma coisa. Pensou se deveria alertá-los, afinal, era essa a sua função: protegê-los. Mas não gostava de Laura, nem de seu noivo, e não queria colocar o amigo numa situação difícil. Por isso, permaneceu calado.
O noivo abriu um largo sorriso demonstrando satisfação.
– Um presente? Maravilhoso! – Exclamou o nobre. – Alguém, traga-o para mim.
Um dos criados caminhou até a porta e pegou a caixa das mãos de Josar, que permaneceu na porta. O criado retornou pelo grande salão passando por entre os convidados e entregou a caixa ao nobre que a abriu, arregalando os olhos, espantado com seu conteúdo.
– Nossa, que perfeição! – Disse o noivo, retirando da caixa duas alianças de ouro maciço. – Lindo! Você esta de parabéns!
– Foi um prazer, milorde – Josar vez uma leve reverência e girou nos calcanhares, saindo do salão.
– Espere – Gritou o nobre. – Você não vai ficar para a festa? – Mas o alquimista já tinha saído. – O noivo olhou novamente as alianças e sorriu, eram jóias lindíssimas. Colocou uma em seu dedo e segurou a mão de Laura para colocar a outra, mas a moça hesitou. – O que está acontecendo, minha querida? Você não vai fazer desfeita ao homem, vai? Você o ouviu dizer que trabalhou duro durante um mês inteiro para nos presentear com essas lindas jóias. Vamos, coloque!
Laura olhou em volta e percebeu que era alvo de todos os olhares presentes. Por isso, ainda relutante, deixou que seu esposo colocasse a aliança de ouro em seu dedo. Todos aplaudiram e a festa recomeçou, mais animada que antes.
***
Ao anoitecer, após a festa, Laura seguiu com seu esposo para o quarto onde passariam a noite de núpcias, para na manhã seguinte, partirem para o reino de Filanti, onde viveriam. O quarto era luxuoso, com uma grande cama coberta por lençóis de seda pura. O nobre filantiano jogou Laura na cama e começou a beijá-la, enquanto tirava sua própria roupa. Ele era um homem bonito e, embora no início não tenha gostado da idéia de se casar com alguém que não conhecia, Laura estava satisfeita. Afinal, teria uma casa e uma família, tudo o que Josar não poderia lhe oferecer.
Seu esposo começou a despi-la, fazendo seu coração bater acelerado. Laura não havia notado como ele era forte, com ombros largos e músculos rígidos. Muito rígidos. Notou também que ele era bem pesado, e a pressão que o corpo do homem exercia já a estava incomodando. De súbito a cama quebrou, provocando um estrondo e arremessando os dois ao chão. Laura levantou depressa, sentindo seu corpo formigar e ficar frio, rígido, como se fosse feito de ferro. Lançou um olhar apavorado para seu esposo, mas ele não estava mais lá. No seu lugar havia uma grande estátua de ferro, que se movia com agilidade e segurança. Poucos segundos depois, tudo ficou negro.
Laura tinha a impressão que havia entrado numa espécie de transe. Ela não enxergava nada a sua frente, mas podia sentir algo golpeando seu corpo, embora não sentisse dor alguma. Achava também que estava se movimentando, entretanto, sem nenhum controle. Era o anel, tinha certeza.
Estava extremamente nervosa e, por isso, tentou acalmar-se. Respirou fundo. “Tenho que me acalmar”, pensou. Seus batimentos foram diminuindo aos poucos e sua visão voltando gradativamente, até que pode ver, com clareza, o que estava acontecendo. Seu quarto estava praticamente todo destruído, uma estátua de ferro com as feições de seu marido a agredia ferozmente com socos, mas ela quase não sentia. Só então pensou em olhar seu próprio corpo e o que viu a deixou horrorizada: suas mãos e pernas estavam nuas, cobertas por uma carapaça de metal como se fosse uma armadura. A estatua que antes fora seu marido deu-lhe mais um soco, provocando um barulho como o soar de um grande sino. Ela também havia se transformado em uma estátua de ferro, que agora conseguia controlar, mas que notoriamente havia sido tão agressiva quanto a outra, que possuía alguns pontos amassados. Era isso. Laura havia descoberto o segredo. Sua consciência estava atrelada aos sentimentos. Deveria se manter impassível ou perderia novamente o controle. Mas até quando seria assim? Será que ela seria para sempre escrava do anel? Não poderia sentir amor, ódio ou medo outra vez? Não. E essa certeza trouxe angústia a seu coração, angústia que deu lugar ao pânico, e Laura não pode se controlar. Logo, tudo ficou negro novamente.
***
Borivil e seus soldados cavalgavam depressa, percorrendo uma grande distância em pouco tempo. O jovem soldado ainda não acreditava no que havia acontecido. Ainda estava no salão de festas enquanto os últimos convidados iam embora, quando um criado entrou correndo e gritando. O homem estava apavorado e Borivil teve dificuldades para compreender o que dizia. O homem arfava, choramingava e levava as mãos à cabeça. Por fim, conseguiu dizer que estava passando próximo ao quarto de lady Laura, quando ouviu um barulho alto de alguma coisa quebrando. Em seguida houve um grito, e logo depois começara um barulho alto e intermitente, como choque de ferro contra ferro, e o criado arrombara a porta. Lá dentro estavam dois recém-casados estirados no chão, seus corpos nus mutilados e esmagados, como se vítimas de espancamento. O criado disse que entrou em choque, principalmente quando viu que metade do corpo de lady Laura estava envolta em ferro, mas que aos poucos voltava ao normal. Ele então correra para pedir ajuda.
Borivil, ao ver os corpos mutilados, sabia o que tinha acontecido e certamente os senadores logo saberiam também. Foi informado por um dos criados que apenas um dos anéis havia sido encontrado, o outro sumira misteriosamente. Mais um problema, pensou. Contudo, ele não podia pensar nisso agora, tinha de encontrar seu amigo Josar primeiro, antes dos outros soldados. Assim, reuniu os cinco soldados sob seu comando e saiu pela porta como um furacão. Não tinha tempo a perder.
Cavalgou num trote rápido pelas ruas da cidade. O barulho dos cascos dos cavalos batendo com força no chão era tão alto que os soldados não ouviram quando Borivil ordenou que parassem, obrigando-o a largar uma das mãos das rédeas para fazer um sinal. Os soldados sofrearam seus cavalos, que responderam de imediato. Borivil também parou, só que um pouco mais à frente. Apeou do cavalo e jogou as rédeas para um de seus homens.
– Esperem aqui. E me avisem se alguém estiver chegando – ordenou Borivil, caminhando em seguida para a entrada do laboratório de Josar.
Bateu de leve na porta. Ninguém respondeu, obrigando-o a bater uma segunda vez.
– Vamos Josar, abra. Sou eu, Borivil!
– Entre meu amigo – respondeu uma voz, vinda de dentro.
Borivil empurrou a porta lentamente, provocando um pequeno rangido. Josar estava sentado à mesa, escrevendo freneticamente num pergaminho. A mesa era de madeira escura e estava coberta de fiapos de couro esbranquiçados, sugerindo que a pele fora raspada recentemente.
– Você sabe o que eu vim fazer aqui? – Inquiriu Borivil, fechando a porta e trancando-a por dentro.
– Me prender?
– Não, te ajudar a fugir.
Josar parou de escrever e olhou para o amigo com o cenho franzido.
– Não tive escolha, Borivil – confessou. – Ela me traiu! O que você queria que eu fizesse?
– Não sei, mas com certeza assassinar a mulher e seu esposo não foi a melhor idéia. Por todos ou deuses, Josar, ela era filha de um senador e o homem o filho de um nobre estrangeiro! – Borivil fez uma pausa, esfregando o rosto com as duas mãos. – Você tem noção da encrenca em que se meteu? Com sorte será apenas condenado à forca!
– Eles morreram? – Josar parecia chocado.
– Sim, eles morreram.
– Não era para acontecer isso! Eu só não queria que os dois se tocassem, mas não que agredissem um ao outro!
– Mas se agrediram e se mataram. E você será enforcado por isso!
– Eu sei, meu amigo. Eu sei. – Josar levantou, enrolou o pergaminho e estendeu-o a Borivil. Seus olhos estavam úmidos. – Tome, este é o meu testamento.
Borivil não pegou o pergaminho.
– Você não vai morrer, homem. Irá fugir. – Ele atravessou o laboratório, olhou pela janela e a fechou. Pegou uma mochila de couro que estava jogada em cima de uma cadeira e a estendeu para Josar. – Coloque tudo o que acha que precisará para sair do reino. Tenho amigos que o ajudarão a seguir para oeste até o rio Lara. Lá, pegue um barco e vá para as Cidades-Estados, onde estará seguro e poderá reconstruir sua vida.
Agora foi a vez de Josar não obedecer.
– Borivil, ouça. Todos sabem que somos grandes amigos, se eu fugir, vão desconfiar de você. Eu já estou condenado, mas você não, poderá sair ileso dessa bagunça toda. Ou melhor, poderá se tornar um herói!
– Um herói? – Borivil pareceu desconfiado.
– Sim, um herói. Respondeu Josar, com confiança. – Me prenda.
– Prender você? Só pode estar brincado! – O jovem soldado ficou irado. – Você não entendeu. Eu vim aqui ajudá-lo a fugir!
– Eu entendi perfeitamente. Mas estou dizendo que se me prender se tornará o herói de Portis; o homem que capturou o responsável pela morte de duas pessoas importantes.
– Você está delirando – Borivil caminhou em direção a porta como para dar a questão por encerrada, mas alguém bateu forte na porta, esmurrando a madeira como se fosse um inimigo.
– Borivil! Borivil! – Gritava um soldado do lado de fora.
– O quê foi?
– Outros soldados da Guarda Arcana estão vindo e existem oficiais com eles!
Que grande porcaria, pensou Borivil. Os oficiais da Guarda Arcana eram magos, que comandavam os brutamontes como ele. Por isso, por não usar magias, Borivil nunca poderia ser um oficial. Mas ele não se importava com isso, tinha coisas mais urgentes para pensar agora. Lutar contra guerreiros era uma coisa, mas contra magos... Borivil não poderia expor seus companheiros a tamanho perigo.
– Muito bem, rapazes. Deixem que passem! – Gritou Borivil de dentro do laboratório, e se virou para Josar. – Pronto, satisfeito? Agora tem um monte de magos vindo para cá. Temos que sair agora. Pela janela, rápido!
– Eu não vou a lugar algum – disse Josar, peremptório.
– Isso não é hora para brincadeira. – rosnou em resposta Borivil, agarrando o alquimista pelo braço e puxando-o em direção a janela.
Josar se desvencilhou do amigo e desferiu um soco que pegou Borivil desprevenido, acertando seu nariz em cheio. Embora fosse uma boa pessoa e um soldado correto, Borivil tinha um temperamento difícil, e reagia agressivamente quando confrontado. Por isso, era o melhor soldado que Josar conhecera. O alquimista sabia dessa característica do amigo e resolveu usá-la a seu favor.
Borivil olhou assustado para Josar, o sangue lhe subindo a cabeça. Alguém bateu na porta gritando.
– Abram em nome do senado! – Ordenou o soldado do lado de fora.
Borivil olhou para a porta, mandou o homem ir para o inferno e se virou novamente para Josar. Havia sangue escorrendo de seu nariz e seu olhar era tão ameaçador que Josar quase se arrependeu de tê-lo atingido.
– Não vou falar de novo, Josar – vociferou Borivil. – Você vem comigo.
– Vá se danar! – Respondeu Josar, desferindo outro golpe. Mas dessa vez Borivil bloqueou o soco com seu braço esquerdo e revidou com o direito, acertando o rosto de Josar com tanta força que o alquimista foi arremessado para trás, chocando-se de costas contra a parede.
Os soldados da Guarda Arcana arrombaram a porta e entraram com espadas em punho, gritando para que todos ficassem parados. Viram Borivil de um lado da sala com o nariz sangrando e Josar encostado na parede do lado oposto, com o rosto coberto com sangue. Os soldados o acorrentaram e o arrastaram para fora, enquanto um jovem mago, oficial da Guarda Arcana, se dirigia a Borivil.
Muito bem, Borivil – disse o oficial, com um largo sorriso. –Todos nós sabíamos da amizade que você nutria pelo traidor e confesso que ficamos com medo que tentasse ajudá-lo a fugir. Pelo visto você é mais confiável do que pensávamos. Certamente será recompensado por isso.
O oficial estendeu a mão para cumprimentá-lo, mas Borivil deu-lhe as costas, pegou um rolo de pergaminho que jazia no chão e saiu do laboratório. Cruzou com alguns soldados que entravam no laboratório e viu o corpo de Josar amarrado à sela de um cavalo que seguia com vários outros, num trote rápido em direção a ilha artificial, que ficava no centro da cidade e era sede do governo.
Sentou numa pedra que ficava próxima a lateral do laboratório e tocou o nariz dolorido. O safado me pegou direitinho, disse baixinho a si mesmo, deixando escapar um sorriso. Desenrolou o pergaminho que Josar insistira que levasse para descobrir que se tornara um homem rico. No pergaminho Josar contava onde escondia todo seu dinheiro e insistia para Borivil ficasse com ele. Fazia também alguns pedidos, suas últimas vontades, que aos olhos do soldado pareceram excêntricas. Mas eram seus últimos desejos e Borivil prometeu cumprir todos eles.
***
Todos estavam impacientes para ver o alquimista pagar por seu crime. Assim, não houve julgamento. Enquanto os magistrados decidiam seu destino, Josar acompanhava pela janela gradeada de sua cela a construção de um grande palanque de madeira. Os carpinteiros trabalharam rápido, erguendo a plataforma de três metros em menos de um dia. Fixaram bem no centro do tablado um grande mastro, que tinha a forma de um “L” invertido, e amarraram a ponta de uma corda na parte superior, fazendo um laço com nó corrediço na ponta restante. Embaixo da corda foi construído um alçapão, com dobradiças de ferro, cujo acionamento seria feito através de uma alavanca colocada na extremidade esquerda do palco.
No dia seguinte, logo após o clarear do dia, os soldados arrastaram Josar pela rua e o colocaram em cima do palanque. Um homem gigantesco, com um capuz preto e peito nu, subiu no palanque, limitando-se a observar a multidão. Borivil também estava lá e ficou impressionado com o tamanho do carrasco.
Tinha sido uma noite difícil, sabendo que seu melhor amigo seria condenado à morte. Borivil leu o pergaminho deixado por Josar e prometera ao amigo em pensamento que cumpriria seus desejos. Eram desejos simples, embora totalmente sem sentido, e Borivil não teria dificuldade em conseguir tudo o que seu amigo desejava.
Antes de seguir para o local da execução o soldado passara no laboratório de Josar e recolhera algumas coisas. Depois seguiu para a ilha artificial, onde foi homenageado e recebera a promessa que logo após a execução, seria promovido a líder-de-praça, uma patente superior a de soldado, que lhe dava o comando de trinta homens.
Mas nem isso alegrara seu dia, estava tremendamente triste por Josar e, se não fosse pelo último desejo de seu amigo, teria pedido para não acompanhar o enforcamento. Mas precisava estar perto do corpo assim que o soltassem da corda, caso contrário, talvez não tivesse chance de levá-lo. O pergaminho de Josar dizia para Borivil não deixar que cremassem seu corpo, e para conduzi-lo em segurança para fora da cidade. Borivil teve dificuldade para convencer seus superiores, mas dissera que o alquimista traidor não deveria ser cremado, e sim, enterrado fora da cidade para que seu corpo apodrecesse e fosse devorado pelos vermes. O magistrado pareceu divertir-se com a idéia e concedera a guarda do cadáver a Borivil.
Uma ovação da multidão arrancou Borivil de seus devaneios, o trazendo de volta à realidade. Ele olhou de soslaio e percebeu que o carrasco havia colocado a corda envolta do pescoço de Josar. Notou que seu amigo o fitava, mas não teve coragem de olhar em seus olhos, preferindo manter-se virado para a multidão, mas não foi capaz de evitar que uma lágrima deslizasse por seu rosto.
Borivil fechou os olhos, rezando para que tudo terminasse logo. Ouviu a multidão gritar e aplaudir extasiada com o momento, e pode sentir a vibração dos passos do homenzarrão caminhando pelo tablado, em direção a alavanca. Em algum lugar um cachorro ganiu. Mais ovação. De súbito, as pessoas se calaram e um silêncio sufocante tomou conta do lugar, fazendo Borivil achar que era capaz de ouvir o coração de Josar batendo. Pouco tempo depois, ouviu o rangido da alavanca sendo puxada; o estalo do alçapão abrindo e o ruído de espinha se quebrando. Obrigado Cruine, agradeceu Borivil ao deus da morte, em pensamento, por evitar que seu amigo sofresse. A multidão xingou, indignada pela morte prematura, que não lhes dera tempo de apreciar o momento raro de uma execução. Borivil abriu os olhos e viu as pessoas se dispersando, algumas que haviam apostado na morte rápida, estavam recolhendo seu dinheiro. Dois soldados seguraram o corpo, enquanto um terceiro cortou a corta para liberar Josar do cadafalso. Agora estava tudo acabado, ou quase tudo.
***
Três soldados aguardavam Borivil retornar a estrada, para que pudessem escoltá-lo de volta a Runa. Borivil não podia vê-los, pois havia cavalgado para muito além da estrada, rebocando outro cavalo pelas rédeas e entrando num terreno rochoso que marcava o início dos Montes Raltril. Cavalgara por quase três dias, assim como Josar instruía no pergaminho e, enfim, chegara num ponto suficientemente distante.
Apeou do cavalo e retirou Josar do lombo do animal, sopesando seu corpo para que não despencassem no chão. Deitou o cadáver devagar no terreno pedregoso, pousou sua mochila ao lado e revirou-a procurando o frasco indicado. Era um recipiente de vidro transparente, que armazenava um líquido prateado e viscoso. Borivil retirou a rolha que vedava a boca do frasco e derramou todo o líquido sobre o corpo já malcheiroso do amigo. Conferiu na mochila se não estava faltando nada: trouxera uma algibeira com moedas de ouro e prata, dois odres, um manto limpo, uma lanterna a óleo e duas pederneiras. No alforje do cavalo reserva, ainda tinha ferraduras sobressalentes e carne salgada.
Borivil achava tudo aquilo uma tremenda loucura. No começo, ao ler o pergaminho pela primeira vez, pensou que Josar tivesse usado mais um de seus truques e que não teria sido ele o enforcado àquela tarde. Contudo, analisando melhor e com mais calma, Borivil teve certeza que fora Josar quem balançara na forca e decidiu que isso deveria ser alguma oferenda a Palier, já que o líder-de-praça da Guarda Arcana não conhecia os ritos e cultos ao deus do conhecimento e da magia.
Montou no cavalo e seguiu para a estrada que o conduziria de volta a Runa. Estava triste pela perda de seu amigo que fizera tanto por ele. Chegou à conclusão de que Josar fora um bom homem. Um alquimista brilhante, um amigo fantástico e um humano normal, suscetível a erros e às conseqüências mordazes de um amor pérfido. E quem poderia julgá-lo? Quem poderia prever sua própria reação numa situação semelhante? Borivil certamente que não.
De repente, um movimento lhe chamou a atenção fazendo-o sofrear o cavalo. Teve a nítida impressão que algo se movera às suas costas. Mas seus soldados haviam ficado na estrada distante e aquela parte de Portis era tão desolada que nem ladrões existiam. Decidiu que fora apenas uma impressão sem sentido, ocasionada pela paisagem indistinta e pela situação como um todo. Assim, sem dar mais importância, seguiu cavalgando.
– Adeus meu bom amigo Josar – falou Borivil para si mesmo.
– Adeus Borivil – respondeu Josar.
De fato, fora um presente mais valioso do que um castelo coberto de ouro...
Verbetes que fazem referência
Crônicas de Tagmar-volume 1
Verbetes relacionados
Uma Noite Para Ser Esquecida |
Arnach Ronam Baromir |
O Cálice |
Dírtam |
O Amaldiçoado Servo de Cruine |
Canção dos sapos |
O Príncipe do Gelo |
O Anel do Golem de Ferro |
Créditos