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O Amaldiçoado Servo de Cruine .

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Por Nelson Rodrigues Rosa


A lua nunca esteve tão linda, pensou Listam, enquanto observava do alto da amurada do fortim o grande globo branco que pendia imponente no céu negro, salpicado por pontos brilhantes. Todas as noites ele passava horas admirando seus contornos perfeitos, suas mais variadas formas e a influência que exercia para com a natureza de uma forma geral. E hoje, mais do que nunca, a lua estava linda brilhando acima do horizonte, de onde banhava o mundo com seu manto branco-azulado, dando um aspecto sereno a uma terra selvagem, e fazendo as placas de ferro de sua antiga armadura jogadas no chão, reluzirem.

Um vento gélido soprou das montanhas, tocando sua pele nua e fazendo balançar seus longos cabelos negros, mas ele não sentia frio algum. Como não sentia sede, nem dor, nem medo, apenas uma tristeza avassaladora, que já não sabia se era mesmo tristeza ou ódio, pois sua mente abalada resolvera pregar-lhe peças, fazendo com que perdesse os sentidos e trocando a ordem de seus sentimentos. Já não reconhecia seu lugar no mundo e sobrara-lhe apenas a morte como amiga íntima; quase irmã; quase amante. Depois de tantos anos de dedicação, fora obrigado a viver à margem da vida e à sombra do tempo.

A armadura jogada no chão portava o sagrado símbolo de Cruine, o grande deus da morte, responsável pela tênue linha que separa nossas duas existências, que estão sempre tão ligadas e ao mesmo tempo, tão distantes. Seus seguidores são conhecidos por possuírem um ódio insano de tudo que tenta ludibriar aquilo cujo mundo seu deus governa. São os grandes e verdadeiros caçadores de fantasmas, zumbis e mortos-vivos em geral; de tudo o que fere a ordem natural das coisas; de tudo que devia ter partido, mas, por todos os sacrilégios, teima em permanecer entre nós. Listam já portou esta armadura e empunhou esta espada. Durante muito tempo foi um desses fervorosos seguidores de Cruine – talvez o mais fervoroso de todos – até a tragédia abater sobre sua vida. Até o mundo não lhe parecer outra coisa se não um lugar estranho. Até todas suas crenças e ensinamentos não fazerem mais sentido algum e ele achar que foi abandonado por seu amado e adorado deus. Até o dia em que, no cumprimento de seu dever, Listam caiu em desgraça e foi transformado em um vampiro.

Foi há muito tempo. Numa época em que pouco se sabia da verdade. Quando as mentiras e os mentirosos governavam, e um homem, apenas um homem, personificava toda a esperança. Foram tempos difíceis; quando criaturas infernais caminhavam entre homens de pouca fé. Quando cidades interiras caiam subjugadas por demônios e os odiados de Cruine se levantavam as centenas dos campos de batalhas, para se juntarem às já numerosas forças inimigas. Parece que foi ontem, pensou Listam. As vozes de seus amigos ainda ecoando em sua mente perturbada; ecos de tempos remotos, de eras passadas, trazidos de volta agarrados a turbilhões de emoções. Não entre aí! Gritava um de seus amigos. Não entre aí! Ninguém conseguira ver ao certo que tipo de mostro havia buscado refúgio no templo antigo, mas certamente era uma criatura maligna e Listam era corajoso demais para recuar, e odiava demais as criaturas malignas para não persegui-la.

E assim, ele a perseguiu.

***
A escada terminava em um corredor escuro, com paredes úmidas e cobertas de limo, e escombros podiam ser percebidos espalhados por toda a parte. A podridão tornara o ar pesado, fazendo seus pulmões arderem como se estivessem em brasa. Não havia qualquer sinal de luz, o que o obrigou a acender uma tocha, apenas para descobrir que nas paredes não havia limo, mas sim, sangue, ainda quente, escorrendo lentamente pelas grossas frestas das paredes de alvenaria. Da mesma forma como no chão não havia escombros, mas corpos, muitos, dos mais variados. Os poucos rostos ainda inteiros possuíam expressões assustadas, demonstrando o tipo de horror que presenciaram nos últimos instantes de vida. Um horror que Listam estava prestes a compartilhar.

O que outrora fora um templo sagrado agora não passava de um lugar profano, transformado em covil por uma criatura infernal. Mas ela pagaria esta afronta. Pagaria com a própria existência.

Os outros haviam ficado para trás e Listam não os culpava. O que estava fazendo era loucura, mas confiava cegamente na proteção e na força de Cruine, e se atiraria de um penhasco se isso fosse agradar seu deus. Mas o que O agradava era a destruição de mortos-vivos e não de seus próprios seguidores, por isso Listam estava tão confiante. Não tinha o que temer tendo o deus responsável pela vida e pela morte ao seu lado. Assim sendo, só precisava avançar pelo corredor escuro e fazer valer sua crença e sua vontade.

Depois de alguns passos notou algo se mexendo um pouco mais à frente. Havia chegado a hora. Em questão de segundos a criatura que ali se escondia conheceria seu algoz.

Foi tudo muito rápido.

A estocada fora perfeita: firme e reta... mas errara o alvo. A criatura de alguma forma se movia com uma velocidade estonteante, como os ventos que cortam os paredões de pedra da cordilheira de Keiss. Listam tentou se recuperar da surpresa causada pela rapidez do inimigo. Puxou a espada para si e a girou sobre a cabeça num movimento longo, buscando atingir o vulto que percebera às suas costas. Mais um erro. A espada chocou-se contra o chão de pedra com tamanha força que fez todo o corpo do sacerdote estremecer, deixando seu braço dolorido.

Listam parou arfante em posição de defesa. Sentiu sua boca seca e seus músculos rijos de tensão. O maldito era mais forte do que imaginava. Não era, portanto, um dos mortos-vivos com os quais estava acostumado a lutar. Esse era diferente: rápido, forte e perigoso. Sentiu o suor escorrer por seu rosto e arder em determinado ponto. Aproximou-se da tocha e usou o reflexo de sua espada para inspecionar sua face, e o que viu o deixou apavorado. Três grandes cortes, como garras de um animal, atravessavam todo seu rosto, um errara por pouco seu olho esquerdo. O mostro o havia ferido e ele nem percebera. Não conseguiria derrotar essa criatura pela forma convencional, só lhe restava o poder divino, o milagre que há muito descobrira poder evocar. Mas Listam hesitou ao olhar os cortes uma segunda vez e pagou caro por essa hesitação. Não havia escapatória. Quando iniciou sua oração era tarde demais.

A criatura agarrou-lhe num abraço apertado. Listam debateu-se como um peixe arpoado, mas por mais que tentasse, não conseguia se libertar, o monstro possuía uma força descomunal. Sentiu algo tocar com suavidade seu pescoço tenso. Em poucos segundos seu corpo ficou dormente, seu estômago embrulhado e sua visão turva. Não demorou muito para que toda sua força se esvaísse e ele pôde ouvir apenas o barulho do choque entre metal e pedra quando sua espada caiu no chão, antes que sua consciência o abandonasse por completo. Estava terminado. O caçador fora caçado.

***
Agora Listam entendia perfeitamente o que acontecera naquela noite e sabia exatamente que tipo de criatura enfrentara, principalmente porque se tornara uma delas. Ele só não compreendia porque logo com ele. Porque seu amado deus, Cruine, deixara acontecer uma tragédia dessas com seu mais fiel seguidor. Perguntas para as quais provavelmente não haveria respostas.

As nuvens encobriram a grande lua que tanto o encantava e do alto da amurada do fortim abandonado, que ficava encravado nas montanhas, Listam observava as dezenas de pontos brilhantes que subiam lentamente a trilha da colina em direção aos portões externos. Os aldeões finalmente o descobriram. Mais cedo ou mais tarde isso teria de acontecer. Por mais ignorantes que fossem, os aldeões terminariam por associar as mortes de seus animais de pasto ao seu novo vizinho, e viriam lhe fazer uma pequena visita, armados de paus, pedras e foices para obrigá-lo a deixá-los em paz.

Agora, restava-lhe aceitar o destino que aquelas pessoas haviam traçado para ele, ou resistir e tornar todas as mulheres que certamente ficaram na aldeia viúvas, e seus filhos, órfãos. E como na vez anterior, quando se refugiou próximo a uma vila, Listam escolheria a segunda opção, pois por mais que abominasse sua existência e odiasse no que havia se transformado, seu instinto não deixaria que se entregasse à destruição. Ele lutaria e seguiria nesta semivida até que Cruine, o deus para quem dedicou todos os seus dias, lhe dedicasse também alguma atenção e lhe concedesse alguma piedade.

Lá do alto, Listam ouviu os gritos difusos e as batidas no portão. Girou nos calcanhares se pôs a descer lentamente a longa escada de pedra. Estava na hora. Ele não queria que fosse assim. Lutava, tentava resistir de todas as formas, mas algo dentro de si tornava seu esforço inútil. Uma espécie de instinto maligno mais forte que sua fé; que seus princípios. Sua humanidade se extinguia aos poucos, Listam tinha certeza, e por isso apertou o passo. Afinal, seus vizinhos haviam chegado e não era de bom tom deixá-los esperando.

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Crônicas de Tagmar-volume 1

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