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Introdução, Prólogo e Epílogo

Introdução

Seja bem-vindo nobre leitor, ao fantástico mundo de Tagmar. Você possui em mãos o primeiro volume de nossa ambientação expandida: O Livro dos Reinos. Nas páginas que se seguem apresentaremos toda a vastidão do Mundo Conhecido, com seus reinos, cidades, florestas, montanhas e diversos outros locais fantásticos que sempre povoaram a imaginação dos bravos aventureiros.

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Prólogo

Era o ano de 1450 após o grande cataclismo que abalou todo o Mundo Conhecido, e não importava o que fizéssemos, o frio parecia aumentar a cada minuto. Já era a terceira vez que Eurid tentava em vão avivar o fogo da lareira, remexendo a lenha com um atiçador de ferro. Entretanto, as chamas fracas teimavam em desaparecer por entre a madeira, fugindo da ponta de ferro como crianças brincado de esconder. Eurid deu um longo suspiro e arremessou o atiçador com força contra o chão de pedra, fazendo o barulho ecoar por toda a sala.

– Os escribas são conhecidos por possuírem uma paciência inabalável, Eurid.
Falei em tom sarcástico, enquanto cobria meus ombros com algumas peles de urso, as enrolando como se fossem um casulo.

– Perdoe-me senhor, mas creio que não teremos o calor do fogo como companheiro esta noite, o inverno nessa parte de Ludgrim é extremamente feroz.
Respondeu Eurid, deixando escapar um leve rubor ao caminhar em direção a sua mesa de trabalho.
Já fazia meses que estávamos trabalhando juntos. Eu ditava enquanto Eurid escrevia, e como ele escrevia. Diversos rolos de pergaminhos já haviam sido levados para serem copiados, e uma quantidade ainda maior empilhava-se ao pé da mesa, com muitos ainda por vir.
Eurid remexeu a tinta do frasco com a ponta da pena para desfazer uma fina crosta de gelo que havia se formado. Retirou um pergaminho novo de um cesto de palha e o esticou sobre a mesa, preparando-se para escrever. No entanto, algo lhe veio à mente e ele me olhou intrigado, recolocando a pena no frasco de tinta.
Começou Eurid, me olhando com o cenho franzido.
– Perdoe-me senhor, mas os últimos escritos que levei deixaram as pessoas um pouco confusas. Muitos pensavam que a Seita Bankdi havia surgido em Verrogar, e não na Levânia. Isto é certo?
Eurid não era como os outros escribas, que apenas escreviam o que lhes vinha aos ouvidos, sem a menor preocupação ou interesse sobre o que estavam registrando. Ele lia e refletia sobre todas as minhas palavras, e argumentava como um magistrado em busca da veracidade no testemunho de um criminoso. E eu gostava daquilo.
Procurei falar com solenidade, enquanto apertava ainda mais a pele de urso contra meu próprio corpo.
– Este é um erro comum, muitos realmente pensam assim, mas a verdade é que os primeiros aparecimentos da Seita se deram no reino da Levânia, e em pouco tempo, todo o mundo sucumbiu ao seu poder.
Eurid me olhava com ar interrogativo, com suas feições transbordando dúvidas. Ele já ouvira, como todos em Ludgrim e em outros reinos, as histórias sobre a Seita e sua passagem por Tagmar. Entretanto, nunca da boca de alguém que de fato participou daquelas batalhas, alguém que houvesse enfrentado as flechas envenenadas, cortado carne bankdi e estado ao lado do Mais Sábio. Eu fiz todas estas coisas, e sabia que minhas palavras pesavam mais que as dos outros.
Levantei e caminhei até a janela destravando a tranca para abri-la. Uma rajada de vento entrou sem o menor pudor, como se houvesse sido convidado, preenchendo toda a sala da torre com seu ar gélido que fazia o frio penetrar fundo nos ossos. As partes expostas do meu corpo ardiam como brasa, quando tocadas pelo vento gélido. Mas valia o sacrifício. Do alto daquela torre era possível ver toda a cidade de Donatar, e toda a extensão de terra mais além, com seus montes de florestas verdes e cumes brancos, que formavam vales, por onde rios serpenteavam até não poderem mais ser vistos.
Senti os movimentos de Eurid e me virei para encará-lo. Ele estava ajoelhado em frente à lareira remexendo a madeira com o atiçador, em mais uma tentativa de aquecer nossos corpos. Olhei novamente em direção aos vales de Ludgrim e estremeci com mais uma rajada de vento.

– Eurid, largue isso e venha para continuarmos o trabalho. O movimento da escrita irá aquecê-lo.
– Mas Kerdal, e o senhor? Não está com frio?
Perguntou o escriba, com uma preocupação que me pareceu genuína.
– Sim, estou! Mas essa pele de urso irá aquecer meu corpo, e minhas lembranças aquecerão minha alma.
Respondi, enquanto ajeitava as peles sobre meus ombros.
Eurid sentou-se à mesa remexendo novamente a pena no frasco de tinta e rompendo uma nova crosta de gelo que havia se formado.
– Sobre o que escreveremos hoje, senhor? Perguntou Eurid, displicente, enquanto enumerava os pergaminhos.
– Sobre o começo do fim da Seita, Eurid.
– Como assim, senhor?
Olhei novamente os extensos vales, com suas árvores e rios, e beijei com ternura e reverência o símbolo de Crizagom que sempre carregava comigo.
– Falaremos hoje, Eurid, de quando as coisas realmente começaram a mudar. De quando a esperança retornou aos corações dos homens, iniciando o fim das forças infernais. Falaremos hoje, da Batalha dos Mil Mártires, e de como foi recuperada a Pedra Negra, nossa grande arma contra a dominação dos Príncipes Demônios.
Eurid me olhou espantado, mas logo se ocupou a escrever, e eu, como que em um transe, mergulhei em minhas lembranças, enquanto o som rabiscado da pena arranhando o pergaminho era substituído por sons de conversas e discussões. De repente, o ar ficou tremendamente quente e abafado.



***



Andreus desenrolou o mapa da cidade de Zanta em cima de uma pesada mesa e apoiou seu elmo em uma das pontas do mapa, duas manoplas em outras duas e uma lamparina na ponta restante. A sala era terrivelmente pequena, na verdade, era a cozinha de uma casa abandonada, cujo dono havia fugido ou morrido em meio ao caos. Ela estava apinhada de gente, todos paladinos de Crizagom, com suas armaduras, armas e escudos. Como Andreus, estávamos cansados e sujos, e poucos de nós haviam dormido mais que uma hora ou duas, de cada vez, nos últimos três dias de batalhas. E como os soldados que aguardavam do lado de fora da casa, estávamos à beira da exaustão completa.
Estiquei o pescoço na esperança de obter algum vislumbre do mapa, mas tive de me contentar em apenas ouvir o que nosso líder dizia.
– Os malditos bankdis estão por toda parte, e nossos batedores avistaram reforços chegando por aqui, aqui e aqui.
Ele apontava no mapa os locais em que o inimigo estava, e embora eu não conseguisse ver, percebi que estávamos perigosamente cercados.
Lembro-me que logo no início, possuíamos uma grande quantidade de soldados, entre homens do rei, sacerdotes e paladinos de Crizagom, mas tivemos muitas baixas nos primeiros ataques, com muitos de nossos irmãos caindo vítimas de flechas envenenadas. Agora, entre sacerdotes e paladinos, contávamos com pouco mais de mil devotos de Crizagom e nenhum soldado do reino, inclusive, o próprio rei Juliam havia morrido no primeiro confronto, ao tentar salvar seu filho de um cerco bankdi.
– Nosso único objetivo é recuperar a Pedra Negra.
A voz de Andreus soou alto acima dos murmúrios de aprovação.
– Mas não será fácil, pois ela deve estar muito bem protegida.
– E como iremos achá-la, senhor? – Perguntou Cavam, transferindo seu olhar do mapa para os olhos de nosso mestre.
– Há milhares de malditos demonistas lá fora!
Eu e Cavam, havíamos nos conhecido ainda noviços, quando construíamos juntos um pequeno templo do outro lado do vale norte, e nossa amizade apenas se fortaleceu com o passar do tempo, ele – além de ser o segundo em comando – era um guerreiro experiente e leal aos preceitos de Crizagom, sendo suas palavras sempre muito bem aceitas, por isso, muitos soldados murmuraram concordando enquanto olhavam para Andreus ávidos por uma resposta segura e convincente.
– Como eu disse, essa tal de Pedra Negra deve estar muito bem protegida.
Respondeu Andreus com um sorriso forçado.
– De forma que devemos procurá-la onde houver a maior concentração de poder do inimigo, ou seja, onde o Lorde Infernal estiver, lá estará a pedra.
Os guerreiros apinhados na sala se entreolharam, buscando uns nos outros uma boa objeção para aquela loucura. Contudo, o argumento de Andreus fazia sentido, e todos fizeram um sinal pedindo a proteção do deus da justiça para a batalha que estava por vir, inclusive eu.
Olhei para Targo, que estava ao meu lado, e ele me retribuiu o olhar com um sorriso. Ele era o melhor guerreiro que eu conhecera, com quase dois metros de altura, impressionava por sua inteligência e raciocínio rápido. Fora ele quem me treinara, e a ele era grato por ter salvado minha vida uma dúzia de vezes.
– Senhor, com todo o respeito.
Uma voz vinda do outro lado da sala atraiu nossa atenção. Era um jovem rapaz, ordenado paladino havia pouco tempo, cujo nome não me lembro.
– Os homens estão falando em se render! O exército inimigo é quase cinco vezes maior que o nosso e já dominou a maior parte da cidade. Não podemos vencer e...
Andreus reagiu irado.
– Vencer? Quem falou em vencer, garoto? Quando vi os malditos rompendo nossas defesas e passando aos milhares pelos portões da cidade soube que não poderíamos vencer. Isso não tem nada a ver com vitória, tem a ver com lutar por um ideal, honrando nossos votos e promessas. Se falharmos, não haverá mais Tagmar.
– Mas então...
O jovem ficou pálido enquanto fitava o mestre da Ordem de Crizagom com um olhar incrédulo.
– O que o senhor pretende fazer?
Andreus olhou cada rosto naquela sala, e eu senti uma incrível força quando seus olhos encontraram os meus. Ele deu um longo e profundo suspiro e retirou as duas manoplas que apoiavam o mapa.
Enquanto calçava as manoplas de ferro, recomeçou Andreus.
– Fui um devoto de Crizagom a minha vida inteira! Justiça, honra, bravura, disciplina e estratégia, são preceitos que sempre estiveram comigo.
– Já carregava suas palavras na boca e sua espada nas mãos antes mesmo de me tornar um homem. E mais uma vez tenho a oportunidade de fazer a justiça valer nessas terras, e não pretendo desperdiçá-la. Um homem pode esperar a vida toda por um momento como este e nunca chegar a ele. Alguns simplesmente ficam velhos e doentes, morrendo em alguma cama fedorenta, mas nós vamos morrer morreremos jovens e fortes, e eu não gostaria que fosse de outra forma.
O jovem continuou...
– Mas nós podemos sair da cidade, ir para as montanhas da cordilheira de Keiss...
Andreus o interrompeu
– Venham para fora, andem! Não vou gastar saliva com vocês!
Andreus prendeu a bainha de sua espada na cintura e pegou o elmo na mesa, caminhando com passos largos em direção a porta, na qual aguardavam do lado de cerca de mil guerreiros seguidores de seu deus, todos eles sujos e cansados, com bandagens sobre seus ferimentos. Mas mesmo estando num estado tão deplorável, eles não pareciam derrotados, e esse pensamento trouxe lágrimas aos olhos de Andreus, fazendo com que suas palavras saíssem em jorros de fúria.
– Sou Andreus Tonar e todos me conhecem. Sou o mestre da Ordem de Crizagom e, assim como vocês, estou morrendo de medo. Gostaria de estar em uma confortável casa à beira de um lago, com uma boa mulher e filhos. Sei que poucas coisas são mais importantes do que sonhos, família e os prazeres da carne. Contudo, algumas coisas são, e esse conhecimento é o que nos torna homens.
Eu estava a poucos metros atrás de Andreus, e daquela posição, pude ver lágrimas brotando nos olhos de uma dúzia de soldados e, para minha surpresa, nos meus também. Andreus desceu a pequena escada da casa e infiltrou-se no meio da multidão, de onde tomou fôlego para que sua voz chegasse nítida a todos os ouvidos.
– Irmãos, não há necessidade de adiar o inevitável. Juntem os homens, todos em posição para atacarmos a maior coluna do exército inimigo. Quem quiser ir embora, que vá com a minha benção. Encontrem outra vida em algum lugar e não ousem dizer que um dia lutaram por Crizagom, já aos que ficarem, quero todos perfilados aqui, fazendo uma barreira com os escudos com, no mínimo, vinte homens de profundidade. Lutaremos aqui, na rua principal da cidade de Zanta, pois isso nos dará bastante espaço e as casas ao redor impedirão que os malditos nos flanqueiem. Agora vão! E que Crizagom esteja com vocês!
Ele bateu com o punho cerrado contra o peitoral de ferro e, logo em seguida, projetou o braço para frente, como se desse um soco no ar, enquanto pronunciava o grito da Ordem de Crizagom.
– Honra e Força!
Seu grito, foi acompanhado por centenas de vozes e depois de uma hora de preparativos estávamos todos ali, prontos para esmagar nossos inimigos.
Eu estava na primeira fila quando o exército demonista surgiu no início da rua principal que dava para o castelo de Zanta, ele havia sido construído no alto de uma colina e nós nos posicionamos a menos de um quilômetro de seus muros, para termos a vantagem de lutar na parte alta da cidade, de onde estava, eu podia ver o tamanho do exército inimigo, uma verdadeira horda de demonistas que preenchia toda a extensão da rua. E a cada minuto brotavam mais e mais, como se saídos do chão, vindos diretamente das profundezas dos planos infernais.
Ao meu lado estavam meu melhor amigo e o meu tutor, Cavam estava a minha direita, enquanto Targo cobria o meu flanco esquerdo, eu não conseguia pensar em melhores companhias com quem dividir carcaças bankdis.
O exército inimigo hesitou quando avistou nossa guarnição devidamente posicionada, após um breve soar de uma corneta, esta parou completamente a cerca de quinhentos passos de distância. Um homem careca, com o corpo pintado de vermelho e nu até a cintura, se adiantou.
– Seus vermes!!!
Gritou o homem, com o dedo percorrendo nossas fileiras.
– Vocês não passam de porcos imundos e suas mães de cadelas miseráveis. Todos vocês morrerão hoje e eu oferecerei seus corpos ensanguentados ao meu senhor.
Aquilo era claramente uma provocação, mas, obedientes, nenhum de nossos homens se adiantou, respondeu ou atacou. Vendo que suas palavras foram jogadas ao vento, o demonista começou a pular e a uivar como um animal, rodopiando e proferindo palavrões.
– Suas línguas apodrecerão, suas tripas criarão vermes e seus olhos ficarão pretos. Vocês assistirão ao estupro de suas mulheres e ao assassinato de seus filhos e tudo o que apreciam nesse mundo será destruído.
Ele cuspiu em nossa direção e seu rosto se contorceu em um sorriso macabro. Voltou caminhando lentamente para as suas fileiras, onde foi ovacionado como um herói.
Olhei assustado para Cavam e ele me deu alguns tapinhas nas costas para espantar meu temor óbvio, que retribui com um aceno de cabeça e, após um longo suspiro, comecei a entoar um de nossos cânticos preferidos nos cultos a Crizagom: “A Canção da Justiça“, sendo seguido pelas vozes de todos os bravos guerreiros de Crizagom que lá estavam.
Desde aquele dia até hoje nunca mais ouvi essa canção tão bem cantada como naquele trecho da rua principal de Zanta. Éramos poucos, mas éramos os melhores guerreiros de Crizagom. Não havia em nossas fileiras um homem fraco sequer, e apenas poucos eram jovens. A maior parte era de guerreiros experientes, endurecidos pela guerra e fortalecidos pela fé. Não havia um homem ali em quem não pudéssemos confiar, e cuja coragem fosse fraquejar por algum momento. Embora eu fosse o único meio-elfo nas linhas de batalhas, nunca fui discriminado, éramos todos irmãos e eu me sentia em casa. Cantávamos para aplacar nossos temores e dúvidas, e para abafar a zombaria do inimigo. E como cantamos naquele dia.
A canção terminou com um urro feroz. Senti-me terrivelmente bem-disposto, como se as bênçãos de Crizagom estivessem comigo, e não era o único, pois mesmo antes desse urro terminar, Targo tinha caminhado para fora de nossa formação desafiando os inimigos. Os chamou de cães do inferno, cuspiu em suas honras e os convidou a sentir o peso de sua espada.
Em seguida, uma corneta soou tão alto por de trás das linhas inimigas que me fez estremecer. Cavam tocou o meu braço e eu dei um salto para o lado com o susto. Ele riu de mim e pôs a mão em meu ombro, chegando seu rosto mais próximo de meu ouvido para que sua voz não fosse abafada pela corneta estridente.
– Kerdal, saiba que foi um prazer e, acima de tudo, uma honra lutar ao seu lado.
Ele se afastou e desembainhou a espada, e antes que eu pudesse protestar contra suas palavras agourentas, todos os guerreiros ao meu redor desembainharam suas espadas, e o grito de Andreus me fez olhar para frente, enfim o inimigo estava avançando.
Não demorou muito para as duas forças se chocarem, e durante o primeiro embate, dezenas de corpos bankdis ganharam o chão. O exército inimigo podia ser grande – e era – mas não chegava perto de nossos guerreiros em habilidade militar. Matávamos com facilidade e logo nosso avanço foi interrompido por uma coluna de corpos que se amontoavam sob nossos pés. A mistura de sangue e terra tornara o terreno lamacento e escorregadio, de forma que eu tive de me apoiar por duas vezes em Cavam para não cair e ser pisoteado por meus próprios companheiros.
Eu estava golpeando com minha espada para cima e para baixo num frenesi involuntário, e meu braço começou a ficar dormente devido ao cansaço. Não aguentaria aquele ritmo por muito tempo. Naquele momento, percebi que era exatamente esse o plano do inimigo: eles tinham um exército fraco, de modo que matávamos sem dificuldade, mas a proporção era absurdamente desigual, com cerca de cinco inimigos para cada um de nós. E assim que cansássemos, seriamos engolidos por um mar de demonistas.
Tentei forçar passagem para frente, em direção a Andreus, mas não consegui dar mais de três passos. Gritei para que recuassem, mas ninguém me deu ouvidos. E porque dariam? Estávamos matando e vencendo, mas indo para uma armadilha.
Foi então que o Lorde Infernal em pessoa surgiu de trás de seu exército, brandindo uma maça-de-armas gigantesca e vestido com sua armadura negra que cobria todo o corpo. O próprio Demônio era quase quatro vezes maior que Targo, e cada passo seu cobria três metros com facilidade, fazendo-o avançar com grande velocidade em nossa direção.
O primeiro golpe foi arrasador, rompendo nossas defesas com facilidade, derrubando três de nossos guerreiros, e cada golpe de sua arma derrubava três ou quatro homens de uma só vez, e ele avançava como um cozinheiro enxotando os ratos de sua cozinha.
Vi quando Andreus direcionou uma coluna de soldados para bloquear o caminho do dele, seria uma manobra difícil, mas os guerreiros a realizaram com eficiência e disciplina exemplar, movendo-se como se fosse um só corpo.
Um homem com o rosto pintado tentou me espetar com sua lança, mas a desviei com meu escudo e o cortei por baixo, fazendo-o cair, enquanto Cavam completava o trabalho furando seu pescoço antes que levantasse.
Outro demonista veio ao meu encontro brandindo um martelo e, mais uma vez, seu golpe se perdeu em meu escudo, no entanto, esse homem era bem mais rápido que o primeiro e eu não consegui desviar do seu segundo golpe que pegou em cheio o flanco direito do meu elmo.
Um barulho ensurdecedor ressoou em meu ouvido, um zunido agudo preenchia meus ouvidos me deixando parcialmente surdo, o sangue escorreu pelo meu pescoço e avancei como um animal em direção ao infeliz que me feriu, meu ódio era tanto que o cortei três vezes mesmo depois de morto.
Vi o Lorde Demônio proferir palavras estranhas, com sua voz grossa e tripla, como se mais de uma alma caída habitasse aquele corpo infernal, Targo gritou algo que não pude entender, ele me empurrou para o lado esquerdo com suas mãos enormes e num instante depois houve uma grande explosão nas fileiras à frente, e uma chuva de fogo e pedras caiu sobre nossas cabeças.
Uma mistura de fumaça e poeira encobriu minha visão, uma nuvem cinza-avermelhada pairava baixo e um forte odor de enxofre me fazia tossir, e eu logo comecei a pensar que o inferno deveria ser daquele jeito.
Em volta, escutei homens moribundos gemendo, enquanto os feridos imploravam por uma ajuda que não viria e paladinos gritando ordens para seus homens buscando reunir seus companheiros e sem dúvida, observar aquilo foi um verdadeiro inferno.
Ainda cambaleante, caminhei por entre os corpos procurando um rosto conhecido, mas não encontrei nenhum, a fumaça começava a se dispersar quando me vi cercado por um número crescente de sacerdotes.
Em meio ao caos que se seguiu à explosão, todos haviam se separado de seus respectivos líderes e minha armadura entalhada com o símbolo da Ordem de Crizagom – que denunciava minha posição de comando – atraia os homens de menor patente, acostumados a seguir ordens, fazendo com que me rodeassem como moscas no mel.
– Juntos!
Gritei para organizar o grupo.
– Em linha, em linha!
Esse grito foi para direcionar os sacerdotes para um grande grupo de demonistas que surgiu morro abaixo, correndo e gritando; era cerca de três vezes maior que o nosso, mas ao nos ver parou, afinal, portávamos armaduras completas e nosso olhar transbordava ódio e violência. Gritei, percebendo a indecisão do inimigo.
– Ataquem!
Soltei um grito de guerra e lancei-me morro abaixo. Não pensei que seria uma luta fácil, mas o terror do inimigo era tão evidente, que estava na hora de aumentar esse terror.
Gritávamos correndo em direção a chacina. Era um grito de vitória, feito propositalmente para causar o medo num inimigo já abalado. Os demonistas ainda eram em maior número, mas estavam sem fôlego e sem moral.
Perfurei o peito de um homem e cortei o braço de outro, brandia minha espada de um lado para outro, como se estivesse abrindo caminho em uma mata fechada. Nesse tipo de investida não há tática, apenas um deleite insano em massacrar os inimigos. Matávamos e nos deliciávamos com o medo nos olhos deles, enquanto sua retaguarda fugia em completo desespero.
Eles ainda poderiam ter nos derrotado, pois seu número era muito maior, mas é difícil lutar subindo um morro, e nosso ataque súbito havia derrubado seu ânimo, além disso, muitos demonistas estavam alucinados, numa espécie de transe.
Um homem alucinado luta bem na vitória, mas na derrota entra em pânico rapidamente. Paramos e deixamos os que sobraram fugir. Não havia necessidade de nos cansarmos correndo atrás do inimigo, pois tínhamos vencido e para provar isso, ficamos em pé sobre seus corpos e muitos metros do chão a nossa frente estavam cobertos com seu sangue.
Retirei o elmo amassado pelo golpe do martelo e senti minha cabeça latejar e minha visão escurecer, cambaleei e fui amparado por um dos sacerdotes que agora me seguiam.
– O senhor está bem?
Perguntou-me um deles.
– Estou bem. Foi só uma tontura.
– O senhor perdeu muito sangue, precisa descansar.
– Descansarei quando tivermos vencido, rapaz.
Respondi, esforçando-me para levantar, naquele momento meus amigos precisavam de ajuda e eu não podia demonstrar fraqueza.
Minha visão estava turva e eu mal conseguia distinguir os vultos ao meu redor. Tentei seguir em frente guiando-me pelos sons da batalha, mas minhas pernas me traíram e cai de joelhos no chão ensanguentado. Percebi uma silhueta enorme, cercada por variais outras menores, vindo em minha direção. Tive certeza de que eram os outros paladinos de Crizagom confrontando o Lorde Infernal, e usei a espada como apoio para ficar de pé e ir ajudá-los.
De repente, um forte clarão surgiu em minha frente e uma nova explosão me arremessou metros para trás. Bati com o rosto no chão e um gosto de ferro me veio à boca. Com um esforço sobre-humano coloquei-me de pé e mais vultos apareceram ao meu lado. Fui tomado por uma alegria indescritível e uma nova onda de otimismo invadiu minha alma fazendo meu corpo estremecer.
Apesar da visão turva, era possível perceber que essas novas silhuetas possuíam asas, e luzes envolviam seus corpos, além de portarem armas brilhantes. Eram os enviados sagrados de meu deus, portadores de sua honra e sua bravura, e sua aparição em meio ao caos fez meu corpo empertigar de orgulho. Voaram com velocidade em direção à figura gigantesca e começaram imediatamente a atacá-la.
Minha visão aos poucos foi se normalizando e eu pude, enfim, avaliar nossa real situação. O que vi fez meu coração saltar de alegria, quase saindo pela boca, o Lorde Infernal estava caído no chão com dezenas de enviados golpeando-o freneticamente. Terríveis estrondos ressoavam do céu pressagiando uma tempestade, e dezenas de relâmpagos desciam com ferocidade à terra, chocando-se diretamente com o Lorde Demônio, atraídos para ele pelo poder divino. Há alguns metros atrás, cerca de cem sacerdotes formavam uma barreira de escudos para bloquear o caminho entre a parte baixa da cidade e o local onde estava caído o Lorde Demônio, de onde uma nova turba de demonistas vinha em auxilio ao seu senhor.
Estes sacerdotes estavam protegendo também a única passagem para o lado leste da cidade, alguns feridos e a Pedra Negra que Cavam segurava! Com a queda do Demônio ele havia conseguido recuperar a pedra e quando vi o temido artefato nas mãos do meu melhor amigo, corri em sua direção e ele me recebeu com um abraço apertado. Seu ombro estava sangrando e o corpo de Andreus jazia sem vida ao seu lado. Notei uma dúzia de outros paladinos mortos e o dobro de feridos ao redor, e Targo estava agonizando entre eles. Ajoelhei-me ao seu lado e segurei sua cabeça. Sua boca tremia, seus olhos reviravam-se e ele apertava a barriga com força para que suas tripas não saíssem através de um corte que ia de uma ponta a outra de seu abdômen.
– Kerdal...
Ele tentou dizer-me algo, mas sua voz saiu baixa, quase como um miado.
– Calma amigo, não se esforce. Descanse e você ficará bem.
Apressei-me em dizer, enquanto segurava sua mão com força.
Ele tentou falar novamente, mas dessa vez não emitiu som algum. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu não pude conter o choro. Targo havia sido meu tutor e devia minha vida a ele, no entanto, agora quando ele mais precisava, eu nada podia fazer. Mais uma vez ele tentou falar, mas seu corpo se contorceu com um espasmo e, logo em seguida, ficou completamente imóvel.
– Adeus, velho amigo. Que Crizagom o receba com todas as bênçãos e honras dignas de um verdadeiro herói.
Sussurrei em seu ouvido, abraçando seu corpo e chorando como uma criança.
Cavam tocou meu ombro com ternura e pude ver o pesar em seus olhos. Ele esticou uma das mãos tremulas e estendeu-me a Pedra Negra. Era uma esfera perfeita, do tamanho do punho de um homem, e não parecia ser tão poderosa quanto diziam.
– Guarde-a, Kerdal! Você deve levá-la para um local seguro. Leve-a para o Grande Sábio, ele saberá o que fazer. Eu vi um grupo de sacerdotes com você, eles poderão escoltá-lo para fora de Azanti.
– Mas e você, vem comigo?
Ele fez um gesto para os sacerdotes que ainda formavam uma frágil coluna na rua principal de Zanta para proteger nossa posição.
– Você pode ir, e pode levar a pedra – disse Cavam, peremptório.
Então, gritou um dos sacerdotes que havia ouvido nossa conversa.
– Perdoe-me senhor, mas se vamos embora, teremos de sair agora, o exército deles está se preparando para atacar novamente.
– Eu não posso ir, Kerdal! Alguém tem de ficar e guiar suas almas através dos portões de Cruine.
Falou, apontando novamente para os homens perfilados, seu ombro estava cortado e sua armadura inútil, mas não havia escolha. Andreus e Targo estavam mortos e a maioria dos nossos irmãos haviam perdido suas vidas lutando contra o exército demonista e seu senhor, portanto, ele era o novo mestre da Ordem de Crizagom.
– Eu posso ficar!
Falei com os olhos transbordando lágrimas.
– Não seja imbecil, rapaz! Você não pode lutar com esse ferimento na cabeça, além disso, preciso de alguém de confiança para manter a pedra em segurança. Vá Kerdal, por mim.
Cavam me deu um abraço tão forte que quase partiu minhas costelas, ainda relutante, já um pouco recuperado, consegui fazer a reverência de nossa ordem e girei nos calcanhares, mas antes que partisse, Cavam segurou meu braço.
– Tome! Leve isso também!
Ele entregou-me um amuleto de ferro, com um símbolo estranho entalhado na parte frontal.
– O que é isso?
– A chave para fora da cidade, lembra daquele pequeno templo do outro lado do vale?
Respondeu Cavam com uma piscadela.
– Sim.
– Quem bom, agora vá! E que Crizagom o guie e o proteja.
– Mas o que tem o templo?
Perguntei curioso.
– Vá! Ande!
Rosnou Cavam, olhei no fundo de seus olhos e corri em direção ao portão leste, seguido pelos sacerdotes que agora formavam minha escolta.

Epílogo

Donatar, outono de 1500 D.C.

O som arrastado e intermitente produzido pelo atrito entre a ponta úmida da pena e o pergaminho de pele de carneiro, preenchia todo o aposento. No centro, um corpo pequeno e frágil, com seus longos cabelos brancos, debruçava-se sobre uma pesada mesa de carvalho, rabiscando as grossas folhas de um livro em um ritmo frenético, como se cada frase fosse a última.
Já tinha quase cinquenta anos desde que o velho escriba resolvera dedicar toda a sua vida a registrar uma história, um testemunho da fascinante e conturbada terra na qual vivia e os anos de confinamento só fizeram piorar sua já debilitada saúde.
Agora, toda simples respiração tornara-se um árduo esforço pela sobrevivência, causando-lhe terríveis dores no peito, a cada dia que passava, sua vista cansada demonstrava sinais do desgaste e o tremular da chama da vela que iluminava seus manuscritos, fazia com que as letras parecessem vivas, sorrindo e dançando, como se zombassem de seu esforço, mas o velho tinha um objetivo, uma missão, e ele iria cumpri-la.
A cada pausa para respirar, o velho lembrava-se de seu antigo amigo meio-elfo. Eles haviam trabalhado juntos por quase meio século e frequentemente sentia falta de suas conversas em frente à lareira.
Graças a estes relatos, que o velho pode compor a maior parte de seu trabalho. Já fazia cerca de cinco anos que seu amigo falecera vítima da febre e, mesmo assim, o velho lembrava de cada frase sua como se houvessem sido proferidas momentos antes e isso lhe dava forças para continuar.
Enquanto escrevia, imagens de sangrentas batalhas lhe vinham à mente: A ascensão e queda de reis; A união e discórdia entre as muitas raças; templos construídos, destruídos e construídos novamente.
Histórias de um mundo vivo constituíam as lembranças dos testemunhos de seu antigo companheiro, que eram imediatamente transportadas para o papel, como se não houvesse ligação alguma entre sua memória e a pena que segurava.
O velho respirou fundo e uma tosse rasgou o silêncio como um trovão abafado, explodindo de dentro de seu peito em um ruído seco e sufocante acompanhado de uma dor alucinante que fez curvar-se ainda mais sobre a mesa e a cada nova tentativa de respirar parecia trazer consigo garras invisíveis que arranhavam sua garganta sendo acompanhada de uma grande dor.
Com uma voz fraca, saindo quase como um chiado, sussurrou ele:
– Tenho de aguentar... falta tão pouco!
Com a pena pesando mais a cada letra, rabiscou a última vírgula, a última palavra e, por fim, o último ponto.
– Enfim... está terminado!
Sussurrou novamente, dessa vez não ouvindo sua própria voz.
O velho fechou o grosso livro e ficou durante algum tempo observando a capa, foi a última vez que contemplava aquele título. Claro, aquela era apenas uma pequena parte; outras histórias deveriam ser contadas e outros livros escritos, mas não por ele. O velho escriba havia feito a sua parte, havia cumprido a sua missão.
Apesar de todo o seu esforço, infelizmente ele não testemunharia a continuação de seus registros e nem conheceria seus autores, pois o fechar do livro viera junto com seu último suspiro, que agora repousava seu corpo abatido sobre a sua maior obra: um livro grosso com capa de couro, cujo título – escrito com belas letras douradas – denunciava a importância de seu conteúdo.

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