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Prólogo .

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A guerra de verdade não é como nos livros.

Nas histórias que ouvia quando criança, cavaleiros de armaduras brilhantes derrotavam dragões e salvavam princesas; disputavam duelos honrosos de cavalaria, onde montavam magníficos garanhões e eram ovacionados por multidões como heróis. Nas batalhas, lutavam com amor, eram leais a seus senhores e nunca recuavam do combate.

Eu, Kerdal, gostava dessas histórias. Tanto que sempre sonhei em me tornar um cavaleiro quando chegasse a idade apropriada. Em cavalgar pelos campos de Ludgrim brandindo minha espada afiada e derrotando todo e qualquer inimigo do rei; desfilar montado sobre um grande garanhão de pêlos brancos e cascos negros; em receber honras e liderar exércitos.

Bons tempos.

E naqueles dias estivera pensando muito nesses tempos remotos. Lembro-me de ter pensado exatamente isso enquanto cavalgava pelas estradas do nordeste de Filanti a caminho de Chats, a capital, acompanhado de 100 homens. Ficava lembrado de meu pai e imaginando o que teria acontecido com ele. Não recebia notícias suas havia mais de um século e as perspectivas não eram boas, com todo o sul de Tagmar tomado pelos malditos bankdis. Como eu odiava aqueles seres infernais. Eles haviam chegado sorrateiramente, se infiltrando nas castas mais elevadas de alguns reinos, tomando o controle à força em outros e, de repente, o mundo parecia ter virado de cabeça para baixo. Naquele outono de 1380 DC, o Mundo Conhecido passava, talvez, por sua maior provação. Filanti era o único reino ainda de pé, mas, assim como eu, cambaleava bastante.

As estradas em Filanti eram boas, muito boas, o que tornara o comércio bastante próspero e possibilitara o crescimento do Reino. Era possível atravessar 100 quilômetros em pouco mais da metade do tempo que se gastava em outros países. Entretanto, mesmo com toda essa qualidade das estradas, cavalgar se tornará uma tortura depois de nossa passagem pela vila de Leand. Meu corpo inteiro doía, minha cabeça latejava e minha alma sofria com todas as coisas horríveis que havia presenciado naquela pequena vila.

– Mestre Kerdal! Mestre Kerdal! – a voz de Dalmo irrompeu pelas fileiras me esbofeteando como a mão de uma mulher raivosa. Dalmo era meu imediato, encarregado de manter a ordem nas fileiras. Não me lembrava de onde vinha; do sul, eu acho. Ele era também meu atual braço-direto e me fazia lembrar muito de Altiom, um velho amigo, morto há muito tempo. Não que os dois se parecessem fisicamente, mas algo em Dalmo me lembrava a força e sobriedade de Altiom e isso me agradava profundamente.

– O que está havendo, Dalmo? – perguntei ao contemplar o rosto ansioso do rapaz.

– Morfans encontrou a trilha – Respondeu Dalmo. - Ela estava bem fora de nossa rota.

– Como assim “bem fora de nossa rota”? – Andar por entre os montes havia se mostrado mais difícil do que eu esperava. Com aquela paisagem indistinta era fácil se perder, mas mesmo assim não pensava estar tão longe da rota original e saber disso me surpreendeu.

– Segundo Marfans, temos que pegar uma trilha que segue para o sul.

– E onde está ele? Chame-o aqui, Dalmo.

– Sim senhor - Dalmo fez sua saudação, puxou com força as rédeas do cavalo e se afastou com velocidade.

Olhei-o enquanto se afastava. Era uma tarde fria, mas fria do que me lembro e muito mais do que gostaria. Claro, não chegava nem perto do frio que fazia em Ludgrim em determinadas épocas do ano, mas algo naqueles corredores estreitos entre as montanhas fazia a temperatura cair consideravelmente. A cordilheira de Keiss era famosa por seus ventos uivantes, que varriam os corredores de rochas assobiando como lobos famintos saídos do próprio inferno e muitos homens evitavam essas passagens mais estreitas associando os uivos a espíritos malignos.

Procurei por entre os homens a carroça de madeira e o baú que ela transportava. Eu deveria estar indo para Azanti, mas havia recebido ordens de escoltar o baú até Chats antes de seguir para o norte e já estávamos há dias seguindo as estradas sem encontrar problemas até Morfans nos dizer que estávamos seguindo pelo caminho errado, que se continuássemos perderíamos muito mais tempo além de passar por lugares perigosos, onde talvez houvesse inimigos à espreita. Ele era um guia famoso no norte de Filanti, fato que me persuadiu a contratá-lo como guia, embora não precisasse, pois possuímos mapas recentes e eu já havia passado por aquela estrada. Mas droga, o homem era um guia e morava no local, de forma que resolvi confiar em seus conselhos.

– Kerdal! – Gritou o guia - Mandou me chamar?

– Sim, Morfans. – Desci do cavalo e me aproximei de uma fogueira que havia sido recentemente acesa. Em geral, eu proibia fogueiras nos territórios onde pudesse haver inimigos, mas as últimas informações que tinha era que as forças bankdis ainda não haviam conseguido penetrar fundo em Filanti, de forma que não haveria inimigos por perto. Além disso, os homens estavam cansados, com frio e com o moral abatido, o que tornava aquele calor de fogueira muito bem vindo, até para um sulista como eu. Fiz um sinal para que Morfans apeasse do cavalo e me acompanhasse até a fogueira.

– Dalmo me disse que estamos indo pelo caminho errado. – Retirei as manoplas de ferro e estendi as mãos em direção ao fogo, sentindo o prazer do calor quase que instantaneamente. – E disse também que você encontrou uma trilha que nos levará para o sul. É isso?

Morfans era um homem alto, tão alto quanto eu. Era forte e levava algumas cicatrizes no rosto, sugerindo que também era um combatente. Seus cabelos longos estavam soltos e sua barba espessa lhe conferia um ar de selvageria. Quando se abaixou próximo à fogueira pude ver algo pendurado em seu pescoço que parecia ser um medalhão amarrado a um cordão. Ele notou meu olhar e ocultou ainda mais o objeto para dentro do casaco de peles.

– É quase isso, senhor. Não que estejamos indo pelo caminho errado, pelo contrário. Em tempos normais, essa seria a melhor opção. – Ele fez uma pausa para apreciar o fogo, depois deu de ombro como se aquilo que acabara de dizer não fosse verdadeiramente importante. – O caso é que essa estrada não continua tão boa nos próximos quilômetros e eu conheço uma trilha muito boa que podemos usar para ir por fora da estrada. Ela segue para o sul por uns dois quilômetros e depois vai para sudoeste. Na minha opinião é uma rota mais segura, principalmente quando estamos carregando tanto ouro.

Arregalei os olhos diante daquela afirmação.

– Ouro?! Que ouro? Do que você está falando, homem?

Morfans deu um risinho como se gostasse do jogo.

– Eu tenho reparado, senhor. – Ele começou a falar ainda de cabeça baixa, estendendo as mãos para o fogo e as esfregando ocasionalmente. – Não carregamos muita bagagem, somente o essencial para podermos ir mais rápido. Entretanto, levamos conosco uma carroça com um baú, que é guardada por cinco soldados. Só pode ser ouro – ele levantou a cabeça sorrindo – e muito!

Me levantei bruscamente e levei minha mão instintivamente ao punho de minha espada e esse movimento deve ter assustado o guia, porque se levantou tão rápido quanto eu. O sorriso cínico havia sumido do seu rosto dando lugar a uma expressão de medo.

– Você anda nos espionando Morfans? – Perguntei quanto caminhava em sua direção. – É isso? Anda nos estudando? Acha que tem ouro naquele baú? – Ele ficou parado enquanto eu me aproximava e cheguei tão perto que pude ouvir sua respiração e poderia continuar ouvindo mesmo que mil montanhas uivassem ao mesmo tempo. – Responda!

Alguns homens sentiram minha hostilidade e se aproximaram. Morfans permanecia imóvel, seus olhos encarando os meus, e depois de alguns instantes já não possuía uma expressão de medo, mas de desafio. Na verdade, acho que ele se assustou com meu movimento brusco, mas se recuperou depressa e aquele sorriso malicioso voltou a seus lábios.

– Acho, senhor – Disse ele ainda sorrindo. – Mas não estou interessado em seu ouro, não além do que me deve por guiá-lo através das montanhas. Disse aquilo tentando ajudar.

Nesse momento todo os meus sentidos gritavam. Já havia passado por muita coisa desde que saí de minha vila em Ludgrim e achava ter adquirido um sentido natural para avaliar o perigo e meu instinto dizia que deveria arrancar a cabeça daquele homem ali, naquele momento, mas não o fiz. Seu nome havia sido indicado por muita gente, inclusive pelo governante de Fétor e eu não poderia assassinar um homem só porque pensava besteira e ria a toa. Resolvi esquecer.

– Tudo bem, Morfans. Tudo bem. Vamos seguir pela trilha que você sugeriu. Mas vou lhe dar um conselho. Concentre-se no caminho e esqueça o baú. Lá não tem ouro, nem prata, nem qualquer outra coisa que lhe interesse.

– Certo, senhor. O senhor é quem manda. Posso ir agora?

– Pode. – Respondi de má vontade.

Ele fez uma reverência um tanto quanto exagerada e se afastou. Dalmo veio ao meu encontro com expressão abalada.

– O que aconteceu, senhor? – Perguntou

– Nada, Dalmo. Nada. Prepare as coisas e avise aos homens. – Olhei novamente para o baú. - Nós iremos para o sul.

***

A trilha para o sul era realmente boa. Na verdade, quase uma estrada, apesar de estreita, que serpenteava por entre os montes. Depois de meu desentendimento com Morfans, coloquei Dalmo de olho nele. Não lhe dei muitos detalhes, disse apenas que ficasse de olhos abertos. E toda vez que acampávamos, liberava o guia da obrigação de ficar de guarda e dobrei o número de homens que guardavam o baú.

Esse maldito baú havia dado o que falar. Nossa missão era escoltá-lo até Chats e entregá-lo ao próprio rei. Quando soube que teríamos de atravessar toda a cordilheira de Keiss num período tão curto e ainda seríamos obrigados e levar uma carroça com um baú idiota, que deveria ser protegido a todo custo, eu recusei peremptoriamente, até ser dissuadido pelo governante de Fétor. Afinal, marcharíamos muito mais rápido sem a carroça ou poderíamos usá-la para levar mantimentos, mas éramos obrigados a racionar comida para transportar o maldito baú. Eu não sabia o que havia dentro dele, só sabia que não era ouro, pois estava leve demais. Era um baú pequeno, feito de madeira e ferro, com uma grossa fechadura de onde pendia um grande cadeado. Havia diversos símbolos entalhados nele, os quais não conhecia e nem me interessava. Mas o fato é que deveria haver algo de importante lá dentro e, além do mais, havia dado minha palavra o que me obrigava a protegê-lo.

Depois de percorremos aproximadamente dois quilômetros, pegamos outra trilha, dessa vez seguindo para sudoeste. Não era tão boa quanto a primeira, mas nos atrasaria pouco. Os paredões de rocha que nos cercavam eram altos e muito íngremes, com pouquíssimas saliências, o que impedia qualquer emboscada vinda de cima. Sem contar que por ser uma passagem estreita, se fossemos atacados, poderíamos nos defender formando paredes de escudos com uma boa profundidade de homens e aos poucos acabei chagando a conclusão que fora uma ótima idéia seguir por aquele caminho. Talvez o guia não fosse tão ruim assim, apenas um idiota querendo bancar o esperto.

Marchamos por vários dias sem muitos problemas. Um de nossos cavalos perdeu a ferradura e um homem ficou doente, mas fora esses dois ocorridos a viagem era tranqüila. Parávamos para acampar ao entardecer e voltávamos a marchar pouco antes de o dia clarear. Toda manhã Dalmo e eu percorríamos o acampamento acordando os homens com gritos e sacolejos fortes, o que fazia com que resmungassem bastante. Alguns inclusive xingavam quando eram sacudidos, até Dalmo os encorajar com banhos de água fria.

Depois de cerca de duas semanas marchando a paisagem mudou. As montanhas se afastaram umas das outras deixando o caminho muito mais largo. Notei também que havia muito mais vegetação rasteira e até um riacho de águas calmas, que imaginei ser algum afluente do rio Topeu. Pelos meus cálculos, deveríamos estar a cerca de uma semana da cidade de Povariana, o que me deixou entusiasmado, pois seria uma boa oportunidade de comer comida de verdade e dormir numa cama decente, mesmo que por uma ou duas noites. Assim, mandei que apertássemos o passo.

Seguimos o riacho por mais dois dias até encontrar uma cabana de madeira abandonada junto às águas. Revistei a construção e notei que ninguém vivia ali há alguns meses. Havia muita poeira e nenhum pertence. Entretanto, havia também uma cama de palha, meio quebrada, mas que seria um ótimo presente depois de tantas noites dormindo no chão duro e pedregoso. Sacudi um pouco a poente e cobri a palha com minha capa e, embora ainda fosse cedo, decidi que passaríamos a noite ali, junto ao riacho.

Foi uma tarde divertida. Lembro-me bem dela porque há muito tempo não ouvia tantas gargalhadas. Aproveitamos a luz do dia para prepararmos um bom acampamento. Cuidamos dos cavalos, consertamos nossas roupas e armaduras, afiamos o fio das espadas, pescamos e tomamos banho no riacho. Lembro-me de todos rirem quando Morfans entrou na água, e devido ao frio, xingou palavrões que eu nem mesmo sabia que existiam. Caçoamos muito dele e para provar que éramos fortes e corajosos, entramos todos na água gelada, saindo roxos, tremendo e felizes.

Quando você passa muito tempo com as mesmas pessoas, compartilhando comida, pertences e até a vida em algumas ocasiões, criam-se laços, fortes. Aqueles homens eram como irmãos para mim e a cada dia ficávamos mais unidos. Até minha implicância com Morfans havia desaparecido e eu ficava feliz por tê-lo no grupo.

Aquela noite foi quase perfeita. Tivemos um grande banquete com peixe fresco, queijo duro e vinho azedo. Contamos histórias ao lado das fogueiras e quase esqueci que o mundo estava preste a acabar; que existiam inimigos poderosos invadindo nossas casas, queimando nossas cidades e estuprando nossas mulheres, e quando a lua ficou alta, quase completamente coberta pelas nuvens escuras que pressagiavam chuva, ordenei que Dalmo colocasse homens de guarda e organizasse o revezamento da noite. Peguei minhas coisas, fui para a cabana e deitei em minha cama de palha improvisada, dormido quase que imediatamente. Não lembro o que sonhei aquela noite, só lembro de ter sido um sonho bom, tão bom que relutei em acordar, apesar dos gritos. Era como se desejasse ficar para sempre naquele mundo de fantasia, onde tudo era belo e fácil. Mas eu não podia, tinha deveres e obrigações; tinha missões e objetivos e era obrigado a acordar do sonho e voltar ao pesadelo.

Sim, ao pesadelo. Porque havíamos caído numa emboscada.

***

Como disse anteriormente, a guerra de verdade não é como nos livros. Meu pai costumava contar histórias de reis, princesas e guerreiros. Mas nessas histórias não havia tanto sangue, tanto grito, nem tanto medo. Não havia membros mutilados ou pessoas queimadas se debatendo na esperança de apagar as chamas que lhe consumiam a pele. Não haviam orcos trucidando homens caídos e desarmados, nem esquartejando e saqueando seus corpos, muito menos demonistas lançando esferas incandescentes de suas mãos, que explodiam em calor, medo e morte. Mas naquela noite de outono de 1380 DC, próximo a um riacho em meio a cordilheira de Keiss, todas estas coisas aconteceram.

Acordei com gritos de alerta. Meu susto foi tão grande que pensei que o céu estivesse desabando em cima de nossas cabeças. Pulei da cama de palha como se já estivesse de pé, peguei minha espada e saí seminu da cabana.

O que vi do lado de fora não se parecia em nada com o lugar tranqüilo e calmo onde havíamos acampado. Estava tudo um caos, como se fosse o próprio inferno e eu esperei ver um dos senhores infernais sentado num trono gigantesco adornado por cabeças humanas, elficas e anãs. Mas o que vi foi fogo, muito fogo. Algumas carcaças de cavalos e corpos de homens estavam em chamas. Um passou correndo por mim, completamente envolto em fogo, em direção ao riacho, mas não resistiu e caiu antes de alcançar as águas calmas. Diversos corpos estavam jogados no chão com braços, pernas e cabeças cortadas. Muitos ainda vivos tentavam fugir e eram perseguidos por orcos armados com machados, as laminas vermelhas brilhavam à luz da lua. Era uma carnificina generalizada.

Saí completamente da cabana e fui imediatamente atacado por um orco. Era gigantesco e usava um machado de guerra completamente sujo de sangue. Ele golpeou forte de cima para baixo e teria me partido ao meio se não tivesse desviado para o lado. Aproveitei meu movimento rápido e desferi um golpe com minha espada no sentido inverso, de baixo para cima, e decepei a mão que segurava o machado. A criatura ainda tentou me dar um soco com a mão esquerda, mas esquivei novamente e estoquei firme na lateral de seu corpo, trespassando seu rim. Torci a espada a puxei com força para que não ficasse presa com a sucção da carne e o gigantesco orco caiu como uma árvore no chão ensangüentado.

Outros dois orcos vieram ao meu encontro, estavam armados com espadas e escudos. O primeiro tentou estocar desajeitadamente e eu apenas usei minha espada para empurrar a dele para o lado e dei um murro forte em seu rosto, fazendo com que cambaleasse para trás com o nariz quebrado. Virei-me para o outro que tentava me cortar com um movimento parecido com o feito pelo primeiro que matei. Novamente esquivei-me do golpe e tentei repetir meu ataque buscando decepar sua mão, mas ele se movimentou rápido e me atacou com um golpe lateral, nossas espadas se chocaram, eu dei um passou para frente diminuindo a distancia que tínhamos, girei meus braços com força num movimento circular, fazendo a espada do orco voar de sua mão caindo em algum lugar distante. Agi rápido e cortei-lhe a garganta antes que tentasse algo e me virei para o orco de nariz quebrado, bufando de ódio, querendo mais sangue.

É incrível como somos tão diferentes em determinadas situações. Eu era um paladino de Crisagom, era calmo e muitas vezes inseguro quanto a minha liderança e as conseqüências de determinadas atitudes. Entretanto, quando estava em um combate, me sentia em casa. Era como se tudo se movesse mais devagar e eu soubesse exatamente o que fazer, quando fazer e como fazer. Eu praticamente podia prever os movimentos de meus inimigos e rechaçá-los como facilidade. Eu não pensava mais no futuro, o que faria depois, apenas que aquele era meu território, aqueles eram meus homens morrendo e todos os que estivessem ali iriam pagar pelo que fizeram.

Foi quando eu os vi. Por isso sabia que tínhamos sido emboscados. No meio de todo aquele caos havia dois homens, eram baixos, usavam mantos vermelhos e tinham as cabeças raspadas. Pareciam comandar a emboscada feita pelos orcos e por isso me dirigi a eles com meu coração trasbordando ódio e minha espada implorando por mais sangue inimigo. Um deles me viu, sorriu e estendeu as mãos em minha direção. Por um momento pensei que fosse se render, mas então uma esfera flamejante saltou de seus dedos e voou em minha direção com uma velocidade surpreendente, e eu teria sucumbido em chamas se não tivesse sido jogado de lado por alguém. Ainda assim fui arremessado alguns metros pela força da explosão, senti minhas costas arderem e caí de cara no chão, comento lama feita de terra e sangue.

Me recuperei depressa da queda e levantei com velocidade. No choque, minha espada havia caído distante e a vi cair junto do homem que salvara minha vida, e confesso que fiquei surpreso. Era Morfans.

Estava caído de costas com a face coberto de sangue, tanto que o reconheci devido ao colar que tinha visto em seu pescoço há algumas semanas atrás, e não por seu rosto. Era um grande amuleto redondo, adornado com insígnias de Selimom e preso a um cordão simples. Incrivelmente, parecia ser o único objeto em seu corpo que não estava manchado de vermelho.

Me aproximei do corpo estendido de Morfans e peguei minha espada. A explosão havia tocado fogo na cabana e o calor e a fumaça tomavam conta do local, tornando difícil enxergar e quase impossível respirar. Meus olhos lacrimejavam muito e meus pulmões ardiam como se estivessem também em chamas.

Embainhei minha espada e levantei o corpo do guia colocando nas costas e aproveitei a cobertura que a fumaça dava para correr com ele para longe dali. Mas não havia para onde ir. Estávamos num local quase descampado, longe de qualquer cobertura, e pensei em carregar Morfans para o outro lado do riacho, mas não conseguiria atravessar as águas com a rapidez necessária e isso também pouco ajudaria, assim decidir encarar o inevitável. Sopesei o corpo do guia e o coloquei com cuidado no chão. Desembainhei minha espada e me virei para a fumaça densa que preenchia quase todo o acampamento. Percorri com os olhos toda a extensão que pude em busca de algum de meus homens, mas não encontrei ninguém. Estávamos sozinhos, apenas nós dois: Crisagom e eu.

***

Não nasci em uma família religiosa, nem numa família de combatentes, mas meu pai sempre dizia que o destino nos governava. Dizia que poderíamos fazer o que quiséssemos, mas no fim, a decisão dos deuses prevaleceria.

As lendas dizem que nossa história é escrita por nosso deus criador no momento em que nascemos e depois entregue a Cruine para que Ele descida a hora que devemos partir. E que podemos fazer o que for que não poderemos escapar do destino traçado pelos deuses. Mas às vezes acontecem imprevistos. Afinal, todos os deuses devem se divertir. Eles estão lá, governando nossas vidas e, cedo ou tarde, acabamos passando nas mãos de cada um deles. Digo isso porque em algum momento Plandis – em toda sua loucura - deve ter achado divertido que um filho de fazendeiro se tornasse guerreiro, e depois se tornasse sacerdote, e depois viesse a ser paladino e acabasse sozinho em um descampado a quilômetro de casa, cercado por dezenas de orcos e ameaçado por dois demonistas. E que esse fazendeiro/guerreiro/sacerdote/paladino estando numa situação tão adversa, ainda carregasse consigo o artefato mágico mais importante daqueles tempos.

É claro que cheguei a essa conclusão muito depois, já que apenas mais tarde saberia de toda a verdade e naquela hora não tinha tempo de pensar em tudo isso, apenas de empunhar minha espada e encarar a ameaça que vinha em minha direção.

O dia começava a clarear, a fumaça aos poucos ia se dispersando e eu pude avistar os dois demonistas abrindo o baú de madeira. Mas pude ver também uma dúzia de orcos vindo em minha direção, trazendo consigo ódio, ferocidade e suas armas sangrentas.

Eu não tinha a menor chance.

E com esse pensamento ajoelhei os ouvindo comemorarem e zombarem. Mas eu não estava me rendendo, e sim, rezando, pedindo ajuda para Aquele que nunca me havia faltado nas horas mais delicieis.

– Crisagom, Senhor da justiça, da honra e da verdade – lembro-me de ter dito isso bem baixo, quase em sussurro – perdoe-me se em algum momento falhei e acabei por permitir está situação. Mas levo Seu nome mesmo aos que não ouvem; espalho Sua palavras em terras infiéis e empunho Sua espada contras vossos inimigos e, nesse momento, como em tantas outras vezes, preciso de Sua ajuda. – O dia clareava depressa e junto com a luz do dia veio a chuva. Eu permanecia de olhos fechados ignorando o perigo que se aproximava e sentia as gotas de água chocando-se contra meu rosto, se misturando às minhas lágrimas. – Dei-me força e sabedoria para levar, mais uma vez, Sua justiça aos inimigos desta terra.

– Então Leve-a, Kerdal!

A voz era grave e poderosa que invadiu meu corpo ativando todos os meus sentidos, e meu coração deu um pulo como se quisesse saltar de meu peito e lutar também. Abri os olhos e vi os orcos que vinham em minha direção parados, assustados e me virei para contemplar algo que nunca mais esquecerei. Um meio-elfo alto e muito forte me encarava com ar superior, mas cativante. Era envolto em algo que parecia fogo e empunhava um bastão de uma luz muito brilhante, quase ofuscante, como se fosse o próprio sol em forma de arma.

– Fui enviado para ajudá-lo – disse a criatura. – O que deseja fazer?

– Já sei! – falei. O que estava acontecendo era algo extraordinário e de repente fui tomado por um turbilhão de sentimentos que iam de orgulho até coragem, passando por raiva, confiança e certezas. Virei-me e corri na direção dos demonistas, gritando para o enviado o que ele devia fazer. – Cuide dos orcos. Eu pego os desgraçados malditos! – E achei ter visto ele sorrir, mas deve ter sido apenas impressão minha.

A chuva apertou e fiquei rapidamente encharcado. Estava descalço, usava uma calça de couro, tinha o peito nu e empunhava minha espada, Meus cabelos longos e normalmente desgrenhados estavam escorridos e grudados na cabeça e por mais de uma vez, tive de passar a mão nos olhos para retirar o excesso d’água. Parei a uns 50 passos dos dois demonistas, que me olhavam com cautela. Seus mantos também estavam encharcados.

Até pouco tempo atrás, eu devia parecer um louco, lutando contra feiticeiros sem qualquer proteção e usando apenas uma espada simples, mas o surgimento do enviado havia posto receio em seus rostos e eu fiquei feliz com isso, porque sabia que agora estava em vantagem. Um homem pode lutar com as mãos nuas, mas não pode lutar sem coragem e eu me atrevo a dizer que minha ousadia, minha aparência e o milagre realizado pouco antes causaram medo nos corações deles, se é que possuíam algum.

Eles ergueram as mãos e eu esperei pelo pior. Estava confiante, mas não era idiota. Sabia que não teria muitas chances se usassem seus poderem infernais, mas de repente eu tive a certeza que Crisagom estava ao meu lado e me ajudava, tanto que só faltava segurar Ele mesmo minha espada.

Eu estava de costas para a luta do enviado com os orcos e não podia ver o que estava acontecendo, mas pude ouvir seu rugido e, talvez por instinto, fechei os olhos. Foi quando percebi um grande clarão, que me fez lacrimejar mesmo estando de costas e de olhos fechados. Quando os abri todos pareciam cegos e o enviado exterminava os orcos como se fossem pragas numa lavoura.

Me virei para os demonistas e ambos estavam cambaleantes, esfregando as mãos nos olhos e gritando que estavam cegos. Eu quase ri de satisfação e liberei toda minha ira de uma só vez. Cuspi insultos, disse que pagariam por cada homem morto aquele dia e roguei para que Crisagom os torturasse pessoalmente. Apontei minha espada para o céu e rezei que a punição não tardasse e que os malditos embarcasse imediatamente para o reino de Cruine. Quando baixei com força a espada, um grande relâmpago acompanhou meu movimento, descendo das nuvens negras, serpenteando brilhante no céu cinza. Ele bifurcou e acertou em cheio os dois demonistas, atravessando seus corpos e os fazendo desabar como carcaças vazias. Me virei para o enviado que já havia cumprido a parte dele e agora me olhava com seriedade.

– Obrigado. – Agradeci, mas ele não respondeu. Apenas se desmanchou em luz, como um raio de sol no crepúsculo. Caminhei até os corpos dos demonistas e peguei de volta o baú. Seu cadeado havia sido quebrado e a tampa estava aberta. Dentro havia um amuleto redondo, com inscrições e entalhes estranhos, tendo apenas uma imagen identificável: o entalhe de um nariz torto sobre um olho aguçado. Alguém teria de me explicar o que era aquele item pelo qual arrisquei minha vida, mas isso ficaria para mais tarde, pois havia muito que fazer. Ainda precisava reunir meu grupo que havia dispersado, enterrar os mortos e cuidar dos feridos. E rápido...

... Porque algo me dizia que as emoções não haviam acabado.

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