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Diário de Um Viajante Planar

Diário de Um Viajante Planar



O Começo

Lembro vagamente do antigo eu. Se não estiver enganado, era um privilegiado mago da antiga Moldania, nascera em uma família nobre, ainda cedo em meus estudos tivera acesso a qualquer tomo de magia que pedisse a meu pai - que o encomendava a comerciantes ou até mesmo a contrabandistas, tudo para me satisfazer. Seu nome já não lembro, acho que era parecido com o meu, que também não lembro. São poucas as memórias que permaneceram intactas depois do grande experimento. Ou talvez nada disso seja parte de minha memória, seja apenas fruto de sonhos e devaneios. Talvez eu tivesse sido um promissor pesquisador de magia, enlouquecido pela curiosidade e pelo poder.

O fato é que lembro de meus últimos momentos antes de partir. Foi alguns anos antes do fim do segundo ciclo. Fazia tempo, havia encontrado relatos sobre o uso de transporte dimensional em escala épica. E estava pesquisando uma forma de usar essa magia para conhecer os famosos planos sobre os quais acadêmicos, magos, e até mesmo sacerdotes tanto debatiam.

Havia decidido começar minha viagem pelo plano da água. Achei o plano mais promissor, pois temia que o plano do ar pudesse me oferecer uma queda sem fim ou rodopios tonteantes causados por furações e ventanias; temia que ao chegar no plano da terra, minha matéria se chocasse com a matéria dura das rochas; o plano do fogo então, estava fora de cogitação. Os demais planos, então conhecidos, não me atreveria a tocar, pois eram lar de criaturas divinas ou infernais, ou naquele tempo pareciam intangíveis, como o éter, a luz e a treva.

Meses se passaram de preparação. Estudei os feitiços mais poderosos que me permitissem respirar, me locomover, e conjurar magias embaixo da água, ou mesmo me proteger do frio congelante que pudesse encontrar.

O Ritual

O ritual para a viagem planar foi caro e custoso. Muitos riram de minha intenção. Achavam que não daria em nada, ou que acabaria me matando no experimento. De certa forma, estavam certos. O dia daquele experimento foi a última vez que o antigo eu pisou nesta terra, e ele jamais retornou.

Foi preciso coletar restos materiais de seres elementais e outras criaturas místicas. O custo para conseguir tais materiais foi alto. Foi preciso contratar aventureiros, e até mesmo negociar no mercado negro para juntar todos os ingredientes.

Para potencializar o ritual, encontrei um local próximo a água, e a céu aberto. Precisava ainda levar restos mortais de criaturas místicas deste plano, para usar como canalizadores do ritual da volta. Quando tudo estava pronto, eu já era um homem de meia idade, que perdera a juventude, a família e a riqueza correndo atrás de um devaneio. Não havia como voltar atrás.

Aquele eu estava o mais preparado para o ritual que alguma pessoa jamais esteve. Mas nem toda essa preparação foi suficiente para o que viria depois.

No fatídico dia, preparei os elementos em um círculo mágico na beira de um lago, que era fundo o bastante para me imergir. Primeiro me preparei com algumas magias defensivas e utilitárias, incluindo respiração debaixo d´água. Recitei as palavras, uni meu mana aos elementos, consumindo-os, e por fim, mergulhei no lago.

Deixando tudo para trás

Ao tentar emergir, não encontrei mais o ar na superfície da água. Até onde pude explorar, não havia superfície, tudo era água. Não sei quanto tempo permaneci desorientado. Mas quando dei por mim, o efeito dos feitiços que havia usado para me preparar já estava para se esgotar. Era preciso conjurá-los novamente. Foi quando vi as primeiras criaturas, e confirmei que não estava mais no plano material.

Hoje sei que as criaturas eram Neuromedusas, ou águas vivas neurais, mas na época apenas vi as bolsas de luz multicolorida se aproximando lentamente entre as correntes de água. Quando chegaram perto, percebi que pequenos raios saíam de uma para a outra, e todas se moviam como se fossem um só ser, ou melhor, como um enxame só que aquático - não, como um cardume se movendo em uníssono. Quando uma neuromedusa mudava de cor, logo as outras mudavam de cor em cadeia. Elas me cercaram. Sem perder mais tempo, comecei a conjurar meus feitiços, mas fui interrompido por uma forte dor causada pela primeira criatura, que havia se agarrado em minha perna. Antes que pudesse reagir, já havia pelo menos uma dezena delas presas a meu corpo.

Cada vez que eu tentava lançar uma magia para me defender, algo estranho acontecia. Eu esquecia as palavras, e acabava esquecendo o feitiço. Tentei pensar em todos os feitiços que sabia, e de repente não sabia mais nenhum, até não saber mais nem o que era a magia. Neste momento, o desespero invadiu minha mente, lembranças de minha vida passando por meus olhos, e a dor se tornando cada vez mais forte. Aqueles monstros me causavam uma espécie de choque químico, e uma sensação de invasão, medo e roubo tomava minha mente. Elas estavam se alimentando de minhas memórias!

Uma ajuda inesperada

No momento mais escuro, minhas memórias e meus sentimentos já tinham se esgotado completamente. Aceitei a dor, aceitei que iria morrer. E então esqueci o que era dor e o que era a morte. Mas neste momento tudo mudou. A começar por minha sorte. Uma espécie translúcida de peixe me abocanhou junto com aquelas águas vivas malditas, e as engoliu, prendendo-me de alguma forma dentro de sua boca.

Em meio a suas veias pulsantes, de dentro de sua boca eu conseguia ver diretamente seu gigante e complexo cérebro, e até mesmo seus globos oculares. Foi quando percebi que naquele lugar havia ar! Respirei. Desnorteado, apenas olhei para aqueles grandes olhos e cérebro. Eles viraram para mim e eu a escutei. Não com os ouvidos, mas com a minha mente.

Forasteiro! O que acha que está fazendo aqui. Esta região é perigosa. Mas vejo que você não é nem mesmo deste mundo, ou deste plano, como vocês magos chamam.

Ele me chamou de mago, estranhei aquela palavra. O que seria um mago? De repente, um susto! Como me chamo?! Até isso as malditas criaturas levaram de mim.

A criatura parecia acompanhar meus pensamentos, pois logo me respondeu:

Você foi atacado por um cardume de neuromedusas. Elas se alimentam de pensamento e memórias. Você pertence a outro lugar. Sei de alguém que poderá lhe ajudar, mas fazem alguns anos que não o vejo. Teremos que procurá-lo junto. Como você é o primeiro de sua espécie que aparece por aqui, o chamarei de Primus.

- Obrigado por me resgatar - falei.

Depois titubeei, e pensei "preciso falar?". A resposta veio imediatamente:

Não.

E quando comecei a pensar como chamar a criatura, a voz em minha mente falou:

Você é um humano. Eu sou uma cianomentis, ou mente azul. Mas pode me chamar de Coralis, é como meus amigos me chamam.


Os primeiros passos

Durante a maior parte da viagem com Coralis em busca de seu amigo, permaneci dentro de sua boca, ou hospedado em bolhas de ar que ela fazia. Percebi que ela conseguia manipular e fazer muitas coisas sem nenhum contato físico. Aquilo me intrigava. Pelo menos minha curiosidade foi sanada, pois lhe perguntei:

- Como você consegue fazer essas coisas, como mover um coral ou falar comigo, sem movimentar nenhuma parte de seu corpo para isso. Isso é a tal magia, de que você falou antes?

No que ele me respondeu:

Bem, é um tipo diferente de magia do que lhe trouxe aqui. Veja bem, neste mundo, alguns de nós possuem essa habilidade. Fazemos as coisas se moverem com o poder do pensamento.

Fascinado com o que ela falara, perguntei:

- Há como eu conseguir fazer isso também?

E ela me respondeu:

Você já está fazendo, enquanto se comunica comigo. O ataque das neuromedusas levou algo de você, mas também deixou espaço para algo poderoso florescer. Quando eu me comuniquei com você, esse espaço livre era como um fertilizante. Quando meu poder tocou sua mente, meu poder germinou nesse campo fértil em sua cabeça. Desavisadamente, acabei "dando a luz" a você.

Confuso, perguntei:

- Como assim, você é minha mãe? Eu nasci de uma semente? Mas você mesma me disse que não sou daqui!

E ela pacientemente respondeu, em minha mente:

Não este tipo de mãe. Nem este tipo de semente, usava sentido figurado. Quando um de nós, portadores desta habilidade, concentra muito poder na mente de outro ser, damos a luz (ou seja, o poder) para este ser. Que poderá então treinar suas próprias habilidades usando esta luz. A propósito, você está falando por dois canais, escolha a boca ou a mente.

Admirado, e ainda confuso, mas sobretudo curioso, perguntei mentalmente:

Tem como você me ensinar a mover coisas, com essa habilidade?

Neste momento, eu poderia sentir meu pensamento tocando a mente dela, que prontamente me respondeu na minha própria cabeça:

Posso lhe mostrar. Talvez você consiga até mesmo se mover e respirar por conta própria, se desenvolver suas habilidades corretamente.

A viagem era para um lugar muito distante e custaria ainda um grande tempo. No caminho, pude praticar e aprimorar a comunicação telepática, que era parte da disciplina - como estas habilidades eram chamadas - da Empatia. Ela logo me propôs outros exercícios desta disciplina, como sentir as emoções e as intenções dela ou das outras criaturas; ou projetar as minhas próprias emoções, manipulando as das criaturas a nossa volta.

Logo depois, eu também aprendi a disciplina da Meditação, para projetar escudos mentais e impedir que meus sentimentos ou pensamentos fossem detectados ou manipulados. A defesa requeria um pouco mais de concentração. Ela dizia que os meditadores mais avançados conseguiam manipular o próprio corpo a ponto de se autorregenerar, de se proteger do frio e do calor, ou mesmo de alterar funções vitais básicas como o próprio mecanismo de respiração.

A próxima disciplina que ela me ensinou foi a da Cinesia, que ela exercia com tanta maestria criando bolhas de ar e fazendo-as dançar em intrincados formatos geométricos. Ela também conseguia mover pedaços de corais, grandes conchas ou carcaças de criaturas mortas. Mas depois de muitas tentativas eu ainda mal podia fazer bolhas grandes o suficiente para me manter respirando ar sem a ajuda dela. Além da telecinese, ela demonstrou que ao concentrar ondas mentais cinéticas se podia lançar raios capazes de ferir criaturas para se defender, ou formar redes telecinéticas para capturar presas. Com mais alguns exercícios, concentrando a energia cinética, fui capaz de criar pequenas esferas de luz. Mas ela podia criar calor ou frio controlando a agitação da matéria em minúsculos pontos concentrados.

A última disciplina que ela chegou a tentar me ensinar antes de chegarmos no nosso destino foi a da Sensitividade. Com exercícios complexos de concentração, eu aprendi como podia ampliar meu campo de visão ou capacidade auditiva, e suspeitava que logo poderia fazer o mesmo em outros sentidos. Ela me explicava que era capaz de projetar todos os seus sentidos para grandes distâncias de seu corpo, mas eu mal conseguia expandir o alcance de um dos sentidos naquele momento.

A esta altura ambos concordávamos que eu era particularmente bom na Empatia, mas apresentava dificuldade nas outras disciplinas. Minha curiosidade era como uma fome, e eu ansiava para conhecer as outras disciplinas que ela poderia me ensinar. Mas ela disse que eu deveria dominar estas quatro, que eram o básico que eu necessitava naquele momento para sobreviver sem precisar dela, antes de partir para disciplinas mais avançadas que me permitiriam transmutar meu corpo com metamorfoses diversas, exercitar e ampliar meu poder mental, materializar ou desmaterializar objetos.

O Grande Coral

Finalmente chegamos ao lugar onde Coralis esperava encontrar seu amigo. Era dentro de um coral de proporções épicas. A medida que nos aproximávamos do coral, ele ia se agigantando, até se tornar maior que o horizonte. Era uma grande massa de corais que formava um labirinto de cavernas, e permitia que uma grande gama de vegetação marinha e criaturas vivessem em suas superfícies. O coral e a vegetação emitiam pulsos multicoloridos que às vezes eram ecoados em diferentes direções.

Uma grande massa de coral se destacou há algumas léguas de onde estávamos. Parecia uma ilha se aproximando de nós, com o detalhe de ter quatro grandes nadadeiras e uma cabeçorra. Só conseguia pensar que o ser era uma espécie de tartaruga gigante. Tartarislante. Ela me corrigiu.


Primus Mentis

Verbetes que fazem referência

Ambientação Extraoficial

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