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No Topo da Montanha

Autor: Bhreno Meirelles

1435 - algum lugar nas Montanhas de Sotopor...

Aqui estamos isolados do resto do mundo, vivendo numa cidadela incrustada num vale escondido na cordilheira de Sotopor. As notícias de fora não chegam até nós, e não há aqui mensageiro bravo o suficiente para atravessar essas montanhas infestadas de bestas selvagens -- os que tentaram nunca mais voltaram.

Esta cidadela chama-se Dargarom, e era habitada por apenas alguns montanheses, até que os dragões chegaram.

Eles vieram em revoadas, matando e destruindo tudo em seu caminho. Fui mandado para cá junto com todos os que eram velhos demais ou jovens demais para lutar contra os dragões ou realizar a travessia das planícies até o lago Denégrio. Desde então Dargarom é nosso lar, e aqui esperamos a mensagem dos que fizeram a travessia, dizendo que os dragões foram afugentados e que Abadom se reerguia novamente, mas essa mensagem nunca veio.

Pelo silêncio do mundo lá fora, presumíamos que o dragões tinham exterminado todo o povo de Abadom, todo o povo de Tagmar, e que agora esse refúgio desolado e escondido era tudo que restava da humanidade; pensávamos que éramos os últimos sobreviventes. Pensávamos isso até o dia em que o forasteiro apareceu às portas da nossa Cidadela.

Até aquele dia, nosso vale ainda não tinha recebido visitas nem de amigos nem de inimigos, e nosso povo amedrontado não soube o que fazer quando o forasteiro subiu pelas escadarias da Cidadela. Ele trajava uma couraça vermelha que parecia feita de escamas e um elmo do mesmo material em formato de cabeça de dragão. O forasteiro portava as armas mais esquisitas que já tínhamos visto: uma foice longa de ossos, um bumerangue com cinco pontas curvas, e uma corrente, enrolada em seu tronco e braços, com uma maça estrela em uma ponta, e um gancho na outra. Ele parou na praça em frente ao palácio, e esperou.

Nosso povo curioso, não mais que cem pessoas, reuniu-se ao redor do forasteiro. Nossos seis homens-de-armas, a única defesa da cidadela, também estavam lá. Todos cochichavam e observavam de longe, mas ninguém dirigia a palavra ao viajante. Eu fui até ele.

"Forasteiro" eu disse "Sou o Senhor da Cidadela de Dargarom. Represento o Rei de Abadom aqui nesse vale. Exijo que você se identifique"

"Meu nome é Argom" disse o forasteiro.

"O que é você?"

"Sou um caçador de dragões"

"O que você faz aqui?"

"Tenho contas a acertar com um dragão que mora nessas montanhas. Uma erupção bloqueou o caminho até seu covil. Eu procurava um outro caminho quando esbarrei nessa cidade de vocês"

Fiz muitas outras perguntas, às quais o forasteiro respondia com o mesmo tom de voz, não dizendo nada além do que lhe perguntávamos. Pelas suas respostas, descobrimos que o povo Abadrim ainda resistia lá fora apesar de reduzido às margens do Lago Denégrio, mas que a dinastia real não existia mais. Descobrimos que o mundo seguia seu curso apesar da tragédia em nosso reino. Descobrimos que nós que fugimos para as montanhas fomos esquecidos, dados por perdidos.

O assombro dessas revelações foi grande, mas não suplantou a cautela de um povo acostumado a se esconder. Mesmo com notícias de vida lá fora, aquelas montanhas ainda eram aterradoras e perigosas, e não deveríamos exaltar-nos fugindo por elas sem proteção.

"Não estamos acostumados a receber visitantes" eu disse ao estrangeiro "Mas queremos que se sinta à vontade em Dargarom. Descanse aqui, Argom, caçador de dragões. E em breve poderá nos mostrar o caminho até as planícies, para que nos reencontremos com o restante dos Abadrim"

"Isso eu não posso fazer" disse Argom "Tenho pressa, e devo partir agora. Também não posso levá-los às planícies. Estou indo para o caminho contrário. Montanha acima, não abaixo"

Os conselheiros aproximaram-se e sussurraram aos meus ouvidos, dizendo que era arriscado deixar esse forasteiro sair da cidade agora que ele sabia de sua localização secreta, que ele poderia expor esse segredo que nos tinha mantido seguros até então.

"Forasteiro" eu disse "Só permitiremos que saia do vale se for para guiar-nos até as planícies, sob nossa escolta. Caso contrário, será mantido prisioneiro aqui"

"E quem fará cumprir suas ordens, Alteza?" Argom disse "Com qual exército virá me prender?"

Dos nossos seis homens-de-armas, nenhum se mostrava disposto a opôr-se ao viajante sinistro. Mesmo os conselheiros afastaram-se de mim. Argom encarava-me, e a pequena multidão olhava-nos imóvel. O forasteiro estava certo; a força de Dargarom era escassa, e mesmo que houvesse mais soldados, eles nunca ousariam atacar um homem que dizia caçar dragões. Ainda assim, eu não poderia deixá-lo fazer o que quisesse. Com um exército tão pequeno, nossa sobrevivência dependia do segredo da nossa posição, e se esse segredo fosse quebrado antes que fugíssemos para as planícies, poderíamos ser exterminados. Mas sem parar Argom à força, só haveria um jeito de garantir que ele não traísse a posição de Dargarom:

"Muito bem" eu disse "Escoltaremos você até esse tal dragão então. E quando voltarmos, tomaremos o caminho até as planícies"

"Não tenho objeção" disse Argom.

A tensão sobre o povo da cidadela dissipou-se; os cochichos recomeçaram. Voltei-me aos homens-de-armas e convoquei-os para acompanhar Argom. Eles permaneceram em silêncio, olhando para baixo. Eles não ousaram recusar, mas percebi que não queriam ir. Não por covardia. Agora que sabiam que havia vida para lá das montanhas, eles guardavam seu ânimo e coragem para atravessar o caminho até as planícies, e não para uma jornada em direção à boca de um dragão. Mas alguém precisava vigiar o forasteiro, então gritei:

"Acompanharei o estrangeiro, homens e mulheres de Dargarom. Encontraremo-nos quando eu voltar. Até lá, vocês são livres para ir às planícies por si mesmos e encontrar o restante dos Abadrim. Mas sejam cautelosos! As montanhas são perigosas! E aos que chegarem primeiro aos outros Abadrim, peçam-lhes ajuda para trazer os que ainda estão na Cidadela. Se eu demorar, não esperem por mim"

Em menos de uma hora estava tudo pronto para a partida. Deixei o comando de Dargarom com o mais experiente dos homens-em-armas e com o menos covarde dos conselheiros. Eu levava um punhal, uma espada longa e um escudo. Sobre a cota de malha, vesti um tabardo com as armas do outrora orgulhoso reino de Abadom. Eu e Argom caminhamos em direção ao portal mais alto da cidadela. Quando chegamos aos portões, um dos homens-de-armas veio correndo.

"Senhor" ele disse, ajoelhando-se a minha frente "Me perdoe, mas posso acompanhá-lo? Até o covil do dragão?"

Ele era o mais jovem dos homens-de-armas; não devia ser mais que uma criança de colo quando os dragões dominaram Abadom e fugimos para cá.

"Você deve seguir os outros" eu disse "Uma longa vida espera por você nas margens do Denégrio."

"Não posso ir para lá, senhor. O remorso não me deixaria. Devo acompanhá-lo nessa jornada, senhor"

"Não tenho dúvida da sua lealdade. Você não precisa prová-la seguindo-me até o dragão. Vá embora"

"Eu sei, senhor. Desculpe-me. Mas não é só isso, não é só lealdade. Tem mais uma coisa..."

"O que é?"

"Quero ser um matador de dragões, senhor. Quando fomos convocados, na praça, não tive coragem de falar nada. Mas depois percebi que não aguentaria de remorso se perdesse essa chance. Deixe-me ir, senhor. Por favor"

"Qual seu nome?"

"Ulnem"

"E sua família?"

"Não tenho, senhor. Eu vim para cá órfão, trazido por meu avô. Mas ele morreu de velhice faz dois anos. Agora sou só eu"

"Muito bem. Então venha conosco, Ulnem"

Argom guiou-nos montanha acima, e pela primeira vez em quinze anos, eu saí do vale de Dargarom.

****


O caminho que tomávamos levava-nos ora a norte, ora a oeste, mas sempre para cima. Às vezes percorríamos trilhas estreitas cercadas de paredões de rocha, às vezes caminhos que serpentavam pelo flanco íngreme das montanhas, ou passávamos por túneis, subíamos escadas talhadas na rocha e atravessávamos pontes de madeira e corda penduradas sobre precipícios enevoados. Eram caminhos utilizados pelos audaciosos mineradores que exploravam Sotopor antes dos dragões chegarem. Agora esses caminhos pareciam abandonados, mas a fumaça que víamos subindo através dos picos mostrava que não vagávamos sozinhos por ali.

Fomos postos à prova apenas dois dias depois de sair de Dargarom. Um grupo de orcos emboscou-nos na beira de um desfiladeiro que contornava uma escarpa. Ulnem e eu sacamos armas e lutamos. Do outro lado do desfiladeiro, mais perto da beira, Argom desenrolou sua corrente e começou a rodopiá-la. A ponta do gancho e a ponta da maça-estrela balançavam em círculos ao seu redor, rasgando e golpeando os orcos que se aproximavam, e quando eles tentavam afastar-se, os círculos expandiam-se e o aço vergastava-os. Às vezes o caçador de dragões fazia uma das pontas enganchar em algum orco, e então arrastava-o para soltá-lo na beira do precipício. O caçador repetia o truque e gargalhava quando via as caras de pavor e ouvia os gritos de desespero dos orcos que caíam para a morte.

A luta acabou. Ulnem e eu permanecíamos de pé, mas cheios de ferimentos e escoriações. Argom sequer tinha sido tocado; os orcos não chegaram nem a dois metros dele.

Quando achávamos que o perigo tinha passado, ouvimos um estrondo vindo de cima. Orcos escondidos no topo da escarpa haviam derrubado uma rocha enorme, e uma torrente de pedregulhos desceu rolando em nossa direção. Eram muitos pedregulhos e muito rápidos para escaparmos. Então Argom estendeu a mão em direção a torrente de rochas e murmurou palavras que não pude ouvir. Uma semi-esfera translúcida se formou ao nosso redor, e os pedregulhos que a atingiram foram defletidos. Os orcos sobre a escarpa viraram-se para fugir. Argom apontou para eles, disse mais palavras, e um trovão vermelho saltou dos seus dedos para atingir e matar os orcos.

"Você pratica magia?!" eu disse.

"De nada" disse Argom, e saiu caminhando para longe do desfiladeiro.

Antes de sairmos de lá, Ulnem aproximou-se de mim e disse:

"Senhor. Esse homem é um mago?"

"É o que parece" eu disse.

"Éssa é a primeira vez que vejo um mago, mas eu sempre achei que magos carregassem cajados, e não foices!"

"Deve ser um tipo diferente de mago" eu disse, tentando não trair minha inexperiência, pois na verdade também era a primeira vez que eu via um mago, ou seja lá o que esse forasteiro estranho fosse.

"Devemos confiar nele?" perguntou Ulnem.

"Não temos escolha. Devemos vigiá-lo para que não revele a localização de Dargarom a nenhum inimigo. Vamos"

"E Ulnem" eu ainda disse "Você se saiu bem para sua primeira batalha"

"Verdade? Quer dizer: obrigado, senhor"

Ulnem, mas aquela também era minha primeira batalha contra inimigos de verdade. Continuamos o caminho para o interior da cordilheira. Paramos de subir, e agora seguíamos por vales suspensos cercados de vulcões. Várias vezes tivemos que saltar sobre rios de lava que cruzavam nosso caminho. Pelo céu, sempre víamos um pássaro grande voando em círculos; percebemos que na verdade era um grifo.

Na quarta noite de viagem, enquanto acampávamos, ouvimos o retumbar de tambores. Subimos até a cumeeira do vale e observamos o que parecia ser uma reunião do outro lado. Até onde nossa vista alcançava, havia seres híbridos ao redor de inúmeras fogueiras, pelo menos cem deles; eram humanoides com traços reptílicos, e estavam envolvidos em danças tribais e em cânticos sinistros acompanhados pelos tambores. No centro dessa reunião, havia uma estaca na qual estava amarrada uma humana.

"É uma humana ali? Há humanos nessa região das montanhas?" eu disse.

"Não que eu saiba" disse Argom "Mas talvez esses seres tenham descido às planícies para capturá-la"

Os cânticos e os tambores pararam. Os híbridos abriram espaço, e de dentro da escuridão veio se arrastando a criatura mais odiosa que eu já tinha visto até então. Parecia uma salamandra, mas do tamanho de um crocodilo gigante, com pelo menos vinte metros da cabeça à ponta da cauda. Tinha escamas negras com manchas ígneas que pulsavam com um brilho de insanidade. A criatura arrastava-se em direção à humana, e às vezes entreabria a bocarra, que emanava um fulgor venenoso de fogo.

"O que é aquilo? É um dragão?" disse Ulnem.

"Não" disse Argom "É uma aberração. Às vezes os dragões cruzam com criaturas estranhas, como as salamandras. A cria não vai ser tão poderosa ou inteligente quanto um dragão verdadeiro, mas herdará um pouco do tamanho descomunal e da disposição maligna do progenitor. Essas abominações às vezes são adoradas por tribos humanoides, e sacrifícios são oferecidos. Parece ser o caso"

"Vamos ajudá-la" eu disse.

"Melhor não" disse Argom "Eles estão em número muito grande, e tem a vantagem de estar em seu próprio terreno. Não conseguiríamos nem lutar nem fugir. É melhor continuarmos ocultos"

"Você não pode fazer nada, com sua magia?" perguntou Ulnem.

"Lamento" disse Argom.

"Não podemos ficar só olhando. Eu vou até lá!" eu disse.

Argom segurou-me.

"Poupe seu heroísmo, Alteza" ele disse "Ela já está perdida. Se formos lá, estaremos também. Em outra ocasião poderemos vingá-la, ou evitar que outros sejam capturados. Mas agora não há nada a se fazer."

A mulher amarrada gritava de pavor enquanto a abominação rastejava até ela. Não consegui mais olhar. Desci da cumeeira. Ulnem e Argom seguiram-me. Em nosso acampamento improvisado, ainda ouvimos os gritos de pânico da mulher aumentando, reverberando pela noite ominosa, e então tornando-se débeis, meros estertores gorgolejantes, e desaparecendo.

Na manhã seguinte, continuamos nossa jornada. Com nossa moral alquebrada, cada passo era mais difícil que o anterior. Nos dois dias seguintes fomos atacados incessantemente por harpias e bandos de orcos. Ulnem e eu saíamos das batalhas sempre esfolados, cortados e mordidos; meu escudo tinha sido despedaçado. Argom, contudo, permanecia intocável, com suas correntes formando furacões de aço ao redor de si. E quando os inimigos tentavam escapar, ele arremessava o bumerangue de cinco pontas, que decepava as asas das harpias ou as pernas dos orcos, e então finalizava o inimigo abatido com um golpe de foice; outra de suas táticas preferidas era cravar o gancho da corrente em algum inimigo, puxá-lo com o braço direito, e quando estivesse próximo o suficiente, decapitá-lo com a foice no esquerdo. O grifo no céu ainda descrevia círculos sobre os picos nevados.

Começamos a subir novamente, e então chegamos às montanhas mais altas, onde era sempre frio e a névoa era densa. Sabíamos que o covil do dragão estava perto, pois agora não éramos mais incomodados nem por harpias nem por orcos. Nenhum tipo de criatura ousava errar por tão perto dos domínios do dragão, e mesmo o grifo desapareceu do céu.

No ocaso do sétimo dia de viagem, quando o poente já tingia de vermelho as vertentes das montanhas, avistamos uma figura encapuzada escondida atrás de uma pedra em um entroncamento da trilha. A coisa de capuz fugiu por um dos braços do entroncamento quando nos viu. Ulnem e eu corremos atrás dela, subindo por um caminho que serpenteava ao redor da montanha umas três vezes, e então parava em frente a uma porta de pedra. A porta era toda entalhada com runas, cravada na montanha, e perfeitamente camuflada para quem não olhasse bem de perto. Batemos na porta e gritamos:

"Olá! Somos humanos! Não precisa temer. Viemos de Abadom"

"Abadom?" disse uma voz áspera e cavernosa de trás da porta.

"O que fazem aqui?" continuou a voz.

"Viemos caçar um dragão" Ulnem disse.

A porta abriu-se. Um anão de barba cinzenta e vestes gastas apareceu de trás dela. Ele disse:

"Faz mais de dez anos que não vejo um humano, ou qualquer outra coisa que não seja um monstro maldito. Estou surpreso"

"Também estamos surpresos" eu disse "Não esperávamos achar alguém de uma raça civilizada tão longe nessas montanhas horríveis"

"É. Sim. Estamos todos surpresos" disse o anão "Olha, eu não costumo convidar para minha casa pessoas que não conheço direito. Mas acho que as pessoas que conheço não me visitarão tão cedo. Além do mais, se estão caçando dragões, e não me caçando, já é alguma coisa. Entrem, não é seguro ficar conversando aqui fora"

Argom, que veio caminhando sem pressa atrás de nós, tinha chegado. O anão olhou desconfiado para ele, e disse:

"Ele está com vocês?"

"Sim, está" eu disse.

"Então venham" disse o anão "Entrem todos. O sol já vai se pôr"

Depois de entrarmos, o anão levou-nos por um túnel que descia para o interior da montanha. Chegamos a um salão arruinado com várias passagens escuras nas paredes.

"Esperem aqui" disse o anão, e entrou por uma das passagens.

Muitas correntes de ar passavam pelo lugar, mas não havia nenhuma abertura pela qual a luz do sol ou das estrelas pudesse entrar. Éramos iluminados pelas chamas de um candeeiro onde ardia carboreto.

Depois de um tempo o anão voltou, trazendo um balde d'água, outro de cogumelos, uma jarra e dois peixes brancos e cegos espetados num arpão.

"Corre um rio subterrâneo lá embaixo" ele disse "Há muitos peixes, mas hoje só consegui dois"

Comemos os peixes e os cogumelos assados em uma fogueira alimentada por carvão. O anão também ofereceu-nos vinho da jarra.

"Eu prefiro cerveja" ele disse "Mas o último tonel acabou faz uns dez anos. Então me contento com vinho"

O anão disse que se chamava Gedraul, e contou sua história:

"Muitos do meu povo viviam aqui. Explorávamos ferro, ouro e pedras preciosas. Há muitos veios nessas montanhas. Mas então vieram os dragões. Muitos companheiros foram mortos"

"Só restou você?" perguntou Ulnem.

"Ainda havia mais alguns" disse Gedraul "Mas aos poucos eles ficavam loucos, e tentavam encontrar um caminho para longe daqui, seja pelas montanhas, seja pelos túneis. Se conseguiram chegar ou não, não sei dizer. Agora, sou o último aqui"

Também contamos-lhe nossa história e nosso intento contra o dragão. Convidamos o anão para ir conosco, ou pelo menos voltar conosco, depois de terminada a missão. Gedraul disse:

"Boa sorte para vocês. Tomara que matem aquele dragão desgraçado. Mas eu ficarei aqui. Meu lugar é a montanha, e minha vida é minerar"

"Mas você não pode lucrar por seu trabalho se permanecer aqui" eu disse "Deve voltar para as planícies, onde há pessoas para comprar seu minério"

"Se as pessoas vierem aqui comprar, venderei meu minério." disse o anão "Mas se não têm coragem para vir, também não irei até elas. Não sou mercador, sou minerador"

"Você poderia ficar rico se descesse às planícies com o produto desses 10 anos de trabalho" disse Ulnem.

"Ha! Abaixo de nós há mais ouro e pedras preciosas do que mercador algum possa me dar. Basta extraí-los da rocha." disse Gedraul "E além disso, posso conseguir peixe e água lá embaixo. Não tenho motivo para fugir daqui como um covarde só porque algum dragão estúpido acha que é o dono das montanhas. Não lhe darei esse prazer! Ficarei aqui até o fim dos meus dias!"

Terminamos a refeição em silêncio. Gedraul levantou-se e disse:

"Agora já é noite lá fora. Descansem. Podem escolher qualquer quarto; nenhum está ocupado"

O anão saiu por uma das passagens escuras. O som de seus passos na pedra diminuiu até desaparecer.

"Sujeitinho teimoso" disse Argom, e também saiu por uma outra passagem escura.

"Boa noite, senhor" disse Ulnem, e retirou-se.

Depois de um tempo em silêncio olhando para as brasas do carvão, também entrei em uma das salas arruinadas para dormir. Amanhã seria o último dia da jornada. Amanhã enfrentaríamos o dragão.

****


No dia seguinte, Gedraul levou-nos até a porta entalhada. Argom seguiu trilha abaixo sem se despedir ou agradecer ao anão. Gedraul ignorou a desfeita.

"Muito obrigado pela hospitalidade, mestre Gedraul" eu disse.

"Muito obrigado, mestre Gedraul" repetiu Ulnem.

"Eu queria presentear-lhes com alguma arma que pudessem usar contra o dragão. Havia muitas aqui, mas os covardes que fugiram levaram todas" disse o anão.

"Não precisa preocupar-se. Mas eu gostaria de reiterar o pedido para que nos acompanhe..."

"Aquele sujeito com vocês" interrompeu-me Gedraul em voz baixa "Ele pratica artes arcanas não é?"

"Sim! Ele é um mago! Como você sabe?" disse Ulnem.

"Tenho faro para esse tipo de gente. Não confio neles" disse o anão "Mas mago não usa armadura. Ele deve ser alguma outra coisa"

"Que outra coisa ele poderia ser?” disse Ulnem.

Gedraul tirou dos bolsos duas pedras com caracteres entalhados.

"Seja o que for. Peguem isso" ele disse, e colocou as pedras em nossas mãos. "São pedras rúnicas. Vão protegê-los de magia, ou de qualquer dessas velhacarias que não seja natural"

"Acho que isso não é necessário, mestre Gedraul" eu disse "Podemos confiar em Argom..."

"Levem as pedras mesmo assim! Boa sorte, e adeus!" o anão já puxava a porta de pedra quando gritei:

"Espere! Mestre Gedraul, venha conosco!"

"Ficarei aqui. Boa sorte" disse o anão, e a porta de pedra se fechou.

"Mestre Gedraul!" eu gritei.

"Vão embora!" disse a voz cavernosa de trás da porta.

Ainda gritei mais umas duas vezes, mas nenhuma resposta veio.

Ulnem e eu descemos a trilha, e encontramos Argom no entroncamento de onde tínhamos nos desviado no dia anterior. Tomamos o outro braço do entroncamento, o caminho do covil do dragão, subindo em direção à montanha mais alta.

Menos de três horas subindo pela trilha íngreme, e chegamos à boca de uma caverna, que abria-se negra e esfumaçada na vertente branca da montanha. Estávamos a trinta ou quarenta metros do topo quebrado, mas tudo já era coberto de neve.

Entramos pela caverna e caminhamos túnel adentro. Enquanto seguíamos, a luz do sol ficava para trás, e uma outra luz, ígnea e quente, ia brilhando na caverna. Meus olhos ardiam com a fumaça que preenchia o túnel. Argom ia à frente, e parou quando chegamos a uma enorme galeria abocanhada por estalagmites e estalactites de hematita avermelhada. Quando nossos olhos se acostumaram à penumbra cor de sangue, divisamos, por entre a floresta de estalagmites e a névoa que se enrolava ao redor dos troncos de pedra, a criatura que buscávamos. Deitado sobre uma imensa pilha de moedas de ouro, pedras preciosas e joias, estava o dragão vermelho. Seu corpo monumental estava imóvel, suas asas fechadas, e seu olho direito cego, cruzado por uma enorme cicatriz. Mas seu olho esquerdo estava aberto, e olhava direto para nós.

Argom quebrou o silêncio, falando em uma língua que eu não conhecia, mas, pela sonoridade, podia identificar: dragoniano.

O dragão respondeu no mesmo idioma, com voz grave e potente. Os dois conversaram assim por cerca de um minuto, enquanto Ulnem e eu permanecíamos imóveis. Então Argom caminhou até dragão e pegou para si algo do seu tesouro: um porta-pergaminho brocado de ouro. Ele ficou lá, lado a lado com o dragão, olhando para nós.

Foi então que senti que havia algo errado.

Lembrei-me do motivo de ter acompanhado Argom: não deixá-lo revelar a posição da nossa cidadela secreta. Eu tinha resistido à viagem e a seus perigos até agora, mantendo o passo ao lado do caçador de dragões e vigiando seus movimentos e suas palavras. Mas naquele último minuto, naquele minuto de conversa em dragoniano, senti que minha missão havia falhado.

Com o desespero quebrando a crosta de medo que atava minhas palavras, eu disse:

"Argom, o que está acontecendo?"

Mas quem respondeu foi o dragão:

"O que aconteceu..." disse com a voz atroadora, em nossa língua "foi que seu amigo e eu fizemos um acordo. Dei-lhe um item de meu tesouro. E em troca, ele deu vocês para mim"

"É mentira" eu disse, olhando para Argom "O dragão está blefando, não é?"

"Desculpem-me" disse o caçador de dragões "Eu precisava desse item do tesouro de Alfandrak. Foi por isso que vim o caminho todo até aqui"

"Não!" eu disse "Eu lembro de você dizendo que esbarrou na gente por acaso, porque o outro caminho estava bloqueado. Você não sabia que iria nos encontrar. Então não pode ter planejado nos trair se nem sabia que nos encontraria"

"É verdade" disse Argom "Tomei o caminho das montanhas para matar Alfandrak e tomar seu tesouro. Mas lutar contra dragões é um negócio arriscado. Então, quando encontrei vocês, descobri que havia um jeito mais fácil..."

A risada estrondosa do dragão reverberou pela caverna.

"Admitam que foram enganados! Mas Argom ainda não contou tudo. Vocês valem muito pouco para trocar por um de meus tesouros. Então Argom também revelou onde fica a cidade de vocês, onde poderei saquear mais riquezas..."

"Desculpem-me. Há um motivo para tudo isso..." disse Argom, e com mais algumas palavras sussurradas, ele desapareceu e apareceu no túnel pelo qual tínhamos vindo, muitos metros atrás. De lá, ele caminhou para fora.

O dragão permaneceu deitado, mas abriu suas imensas asas, que poderiam atacar a qualquer distância ali entre as rochas da caverna. Nessa hora percebi que não poderíamos mais fugir. A luta começava, e não poderíamos virar as costas ao inimigo. Ulnem agarrou o punho da espada.

Mas antes do primeiro golpe, o dragão falou:

"Vocês querem lutar? Estão tão ansiosos para morrer? Mas não se preocupem, não sou tão desleal quanto aquele desprezível Argom, sempre andando para lá e para cá, fazendo e recebendo favores de demônios. Eu adoraria matá-lo se esbarrasse nele novamente, e só não o fiz agora pois sempre mantenho os acordos que faço, e é isso que lhes proponho agora, um acordo..."

"É simples" continuou o dragão "Vejo, pelas runas que carregam, que conheceram o anão que habita nessas montanhas. Desejo matá-lo há muito tempo, mas onde ele se esconde não posso alcançá-lo. Então tudo que precisam fazer é chamá-lo para a superfície, onde estarei esperando. Em troca, deixarei que fujam"

Ulnem e eu entreolhamo-nos. Nos olhos do jovem homem-de-armas eu vi a bravura de quem sabe vai morrer, e não se importa; a loucura de quem encara a morte, e não a teme. Ele deve ter visto a mesma coisa em meus olhos, pois sacou a espada ao mesmo tempo que eu, e disse:

"Você não pode comprar a todos com seus acordos sujos, dragão"

"Não trairemos nosso amigo" eu disse "Somos guerreiros de Abadom, e nossa honra não se dobrará"

O olho do dragão faiscou de fúria.

"Então, pereçam..."

Não houve tempo para arrepender-nos de nossa estúpida bravura. A boca do dragão encheu-se de chamas, mas consegui pular para trás de uma das estalagmites quando ele assoprou. Ulnem tinha pulado para o outro lado, e agora escondia-se onde eu não podia ver. O dragão não via nenhum de nós, e procurava-nos rosnando, cuspindo fogo a esmo e esticando o pescoço por entre as estalagmites.

Fiquei me esgueirando de uma rocha à outra, procurando cobertura do olho do dragão conforme ele se aproximava. Olhei para o túnel que levava à saída, mas lá não havia nenhuma rocha ou curva que servisse de cobertura, e o dragão veria-nos caso tentássemos fugir. Então olhei para cima. Havia estalagmites enormes que quase chegavam ao teto da galeria, havia um buraco no teto, e havia estalactites germinadas umas as outras que formavam pontes entre si. Escalei uma estalagmite alta, com cuidado para que o dragão não me visse nem ouvisse, e do topo pulei para uma ponte dependurada nas estalactites. Lá de cima, fiquei observando e pensando; se arrancasse o olho que sobrava do dragão, ele ficaria cego, e talvez pudéssemos esperar derrotá-lo. Então aguardei, vendo o dragão rastejar no chão da caverna procurando por nós. Aguardei até que a cabeça da criatura ficasse exatamente embaixo da ponte onde eu estava, e então pulei.

Caí com a espada mirando o olho do dragão. Eu vinha de cima, e a criatura não poderia me enxergar, mas por algum sentido sobrenatural, pelo barulho da minha espada rasgando o ar, ou por mera sorte, a criatura percebeu-me e desviou a cabeça.

Minha espada talhou um corte no pescoço do dragão, derramando sangue vermelho escuro. Logo depois, uma pancada da asa esquerda arremessou-me até perto do túnel de saída. A espada caiu de minhas mãos. Então o dragão estava sobre mim, com o pescoço sangrando e rosnando de raiva. Eu estava caído, sem minha espada. A boca do dragão abriu-se e veio em minha direção. Mas antes que chegasse, algo caiu do teto. Ulnem tinha pensado a mesma coisa que eu, tinha escalado até as estalactites, tinha aguardado, e tinha pulado sobre o dragão. Mas dessa vez a criatura não percebeu, e a espada de Ulnem varou seu olho esquerdo. Antes que um rugido ensurdecedor de fúria tomasse a caverna, pude ouvir a voz cristalina de Ulnem gritando:

"Consegui, senhor! Ceguei o dragão!"

A criatura debateu-se selvagemente, e Ulnem foi arremessado contra a parede da caverna, do lado oposto aonde eu estava. Ele já se havia levantado e corrido para onde sua espada tinha caído. Ele abaixou-se para pegá-la, mas quando se levantou, a cauda serrilhada do dragão acertou-o em cheio, arrastou-o, e esmagou-o contra a parede. O corpo do rapaz foi partido em dois. Assim morreu Ulnem, o mais jovem homem-de-armas de Dargarom, o mais corajoso.

Agora o dragão era pura cólera, cuspindo fogo para todos os lados, debatendo-se e destruindo estalagmites e estalactites com golpes selvagens das garras, asas e cauda. Virei-me na direção do túnel e fugi aterrorizado.

Depois que alcancei a boca do túnel, continuei correndo trilha abaixo. Ouvi um estrondo, e vi pedras flamejantes caindo ao meu redor, então vi a sombra imensa do dragão sobre o chão. Continuei correndo como um desesperado, tão rápido que nem vi quando um pé saiu da reentrância de uma rocha na trilha e estendeu-se à minha frente. Tropecei no pé e caí no chão. Era Argom, escondido na reentrância. Ele disse:

"Não esperava vê-lo de novo"

O dragão chegou assoprando fogo. O sopro passou longe de nós, mas mesmo assim pudemos sentir a rajada de calor.

"Parece que terei que resolver esse problema" disse Argom, e correu em direção ao dragão.

Encolhi-me dentro da reentrância daquela rocha, paralisado pelo terror. Não ousei olhar, mas pude ouvir os urros do dragão, sentir as rajadas de calor de suas baforadas, ver os clarões das mágicas de Argom, e perceber a terra tremendo com a batalha titânica.

Em meio ao pavor, comecei a sentir vergonha. Ulnem tinha morrido lutando, Argom batalhava sozinho contra o dragão, e eu estava escondido. Senti-me um covarde, mas quando reuni forças para sair do esconderijo, a batalha já havia terminado.

O dragão jazia morto, estendido sobre um platô. Argom estava de pé, mas tinha o braço esquerdo completamente fraturado, com os ossos saltando para fora da pele; sua armadura de escamas vermelhas estava rasgada em vários lugares, o elmo tinha sumido, e sua face estava coberta de fuligem.

"Parece que tudo acabou bem, Alteza" ele disse "O dragão está morto, eu tenho o item que preciso, e sua cidadela está salva.

Ele continuou:

"Poderíamos ir para casa, vivos e felizes. Mas não iremos. Quero lutar contra você, Alteza, até a morte"

"Por quê? Você quer o resto do tesouro do dragão só para você? Pode pegá-lo. Não quero aquele tesouro maldito!" eu disse.

"Na verdade, não é só pelo tesouro. Quero matá-lo desde o momento em que o vi, Alteza. Tenho me controlado, mas agora que meu sangue ferveu, não poderei mais evitar. Queira você ou não, nós lutaremos"

Antes que eu pudesse dizer algo, Argom estendeu a mão direita e sussurrou. Sua palma disparou uma bola de fogo em minha direção. Mas quando as chamas me envolveram e explodiram, não senti dor.

As runas gravadas na rocha de Gedraul brilharam. As chamas dissiparam-se, e eu estava ileso.

"Anão desgraçado!" disse Argom. Então ele balançou a corrente. O gancho cravou-se em meu ombro como um anzol, e Argom puxou-me em sua direção. Essa era sua tática. Ele teria me decapitado com a foice se seu braço esquerdo ainda pudesse levantá-la. Vi a frustração em seus olhos quando ele percebeu o erro, mas eu já estava perto demais, e Argom não pôde fazer nada quando soquei sua cara com toda força. O caçador estatelou-se no chão.

Tinha perdido minha espada no covil do dragão, mas ainda tinha meu punhal. Naquele momento eu poderia ter matado Argom, e acabado com tudo. Mas hesitei em matar um inimigo caído e tão machucado. Argom percebeu minha incerteza e atacou. Mesmo fraco como estava, ele levantou-se num só pulo, sacou o bumerangue de cinco pontas e golpeou-me, abrindo um corte que atravessou meu peito do ombro à cintura. Ele atacou de novo, e por pouco não arrancou minha cabeça; a ponta do bumerangue rasgou minha face. E atacou uma terceira vez; consegui desviar, mas tropecei para trás e caí de costas no chão. Argom ergueu o bumerangue para o golpe final. Pude ver como seu rosto estava pálido onde as gotas de suor riscavam a fuligem. Sua armadura vermelha brilhava como se também estivesse suando. Mas não era suor, era sangue, e do próprio Argom. O caçador de dragões tremia. Sua mão vacilou, e o bumerangue caiu no chão. Argom desmaiou.

Levantei-me, pensando em Ulnem. Fui em direção ao covil do dragão para procurar o corpo do rapaz, mas a entrada do túnel estava soterrada. Quando voltei ao local da batalha final, o corpo do dragão ainda estava lá, mas Argom e suas armas haviam sumido. O grifo dos primeiros dias de viagem descrevia círculos no céu.

Olhei pela última vez para o dragão morto, e então tomei a trilha montanha abaixo, de volta a Dargarom.

Verbetes que fazem referência

Crônicas de Tagmar Volume 3

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