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Por Airton França Diniz Junior
- Por que temos de morrer?
A voz do guerreiro terminou a frase quase num sussurro enquanto olhava para mim, sem esperança, no chão, sua vida esvaindo-se ante seus olhos. O que eu era para ele? Um algoz de seus crimes? Um justiceiro que veio pôr fim aos seus dias pecaminosos na terra? Um feiticeiro que por infortúnio do destino cruzou seu caminho?
Eu o observei sem piedade, sem compaixão, esperando que o ceifador cumprisse sua tarefa hedionda e levasse seu espírito ao ciclo infrutífero do esquecimento. Um ciclo que um dia eu iria quebrar. Aguardei até que o véu turvasse seus olhos e o sopro da existência se apagasse de seu corpo. Sentei sobre sua carcaça, peguei minha lâmina e dirigi a adaga para sua garganta enrugada, suja e fedorenta. Penetrei a pálida carne buscando os vasos do pescoço e extraí seu sangue escuro, o outrora líquido vital. Enquanto observava-o preencher o receptáculo do que poderia vir a ser uma poção, entreguei minha mente ao devaneio de como me tornara o que eu era hoje e de quando me transformara naquele pesquisador da imortalidade, da transcendência, da busca pelo elixir da eternidade, do conhecimento da vida e da morte, de descobrir ter a mesma natureza íntima dos primordiais e dos não-nascidos. Quando meus olhos se tornaram frios o suficiente, quando me olhei tão profundamente pela primeira vez e vi um mármore duro e alvo perdido na imensidão gélida de uma nevasca eterna? Quando?
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O céu acinzentado das Geleiras foi tomado por uma súbita nuvem escarlate acastanhada. Um trovoar retumbante ecoou pela região. Lonios suava frio, respirava profundamente e lutava contra a teimosia de seus olhos que insistiam em permanecer fechados. A concentração atingiu o máximo. Energias místicas fluíram através de seu corpo.
A coloração do céu, que parecera, a princípio, uma miragem ilusória, agora se solidificara, como se prestes a despejar alguma praga horrenda sobre os que estavam sob ela.
Lonios executou um elaborado gesto arcano. Súbito, imensos blocos de rocha meio fumegantes caíram literalmente do céu sobre o lagarto gigante de duas cabeças cuspidor de gelo que praticamente devastara seu bando.
O feitiço proibido fora evocado. Um gosto amargo atravessou os lábios do mago; ele jurara ao seu mentor e diante de Palier nunca utilizá-lo, um juramento de sangue, diante do Colégio, como era o costume tendo em vista sua situação. Ele sabia as consequências da quebra deste. Mas de que adiantaria o conhecimento sem os frutos deste? Ainda mais naquela situação crítica. Por que a divindade protetora dos magos e do saber limitaria o seu uso? Mesmo que esse saber viesse da forma que Lonios o adquirira. Seria Palier tão arrogante a ponto de punir seu seguidor simplesmente por usar o conhecimento para se manter vivo e aos seus confrades?
Uma sucessão tonitruante de explosões se seguiu erguendo uma enorme nuvem de gelo que bloqueou a visão. Correntes de vento gélido varreram o local do embate; pequenos fragmentos de rocha e espículas de gelo atingiram a face de Lonios que teve de abrigar-se no chão. O bombardeio continuou enquanto o céu voltava lentamente ao azul cinzento. Ao final, a vil criatura parecia agonizar silenciosamente em meio aos escombros do que outrora fora seu covil. Suas bocas tentando inutilmente livrar-se do sangue, que saia em golfadas intermitentes. Sua respiração nauseabunda bafejando pequenas correntes de ar enregeladas cada vez mais fracas.
A nuvem dissipou-se e por sobre o corpo caído Lonios viu erguer-se a figura imponente de seu irmão Doriam, o arrogante sacerdote. Na face, um sorriso orgulhoso e presunçoso, como se fora o próprio a derrotar o algoz de seus companheiros caídos. Em suas mãos, a espada sagrada de sua ordem, aquela que as regras de seu credo proibiam de retirar do templo sagrado. Alguns golpes e as cabeças da criatura-demônio rolaram aos pés de Tiar, o guerreiro, coberto de gelo, sangue e sujeira. O último sobrevivente além deles. Ele espetou uma delas com seu montante e sentou-se sobre a outra. A luta findara. Bastava colher os materiais que o artífice de Telas encomendara a eles, e poderiam sair daquela região maldita. Uma fogueira e um guisado quente os esperavam. Além de um polpudo pagamento.
O inimigo tombara, mas Lonios realizara o que por juramento solene prometera nunca fazer; Doriam também procedera contra o que gerações de sábios sacerdotes orientaram jamais fazer.
Uma vitória fora alcançada, mas dois juramentos foram quebrados.
O destino teria contas a acertar com ambos...
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O receptáculo encheu-se. Levantei-o de modo que ficasse à frente de meus olhos; misturei pó de ossos junto com extrato seco de veneno de escorpião negro e agitei-o até que o líquido perdesse o escuro tom magenta e ficasse quase transparente para que eu olhasse através dele. Além de mim descortinava-se o esboço de uma montanha, mas também haviam árvores. Uma floresta...
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As árvores demônios da floresta de Tambar em Ludgrim ergueram-se na sombria clareira ao redor do grupo como imensos monólitos vivos prestes a desmoronar sobre eles. Estranhos olhos rubros dardejavam ódio em faces distorcidas e agonizantes que se projetavam de seus troncos; longos galhos sinuosos cheios de folhas escuras e grandes espinhos pareciam como garras prontas para dilacerar suas carnes; e enormes fendas cheias de presas escuras e seiva fétida e viscosa se abriram para engolir os mercenários.
Ante tal visão, ficara claro porque as patrulhas não retornavam. A caravana também nunca mais seria encontrada.
Elder, o rastreador, e Zio, o ladino, se tornaram as primeiras vítimas. Surpreendidos pelas raízes das árvores, que se ergueram serpeando do solo, não tiveram como reagir e desapareceram nas profundezas da floresta, arrastados por elas. Seus gritos de aflição e horror quebrando o silêncio sepulcral do ambiente.
O combate começou. O grupo estava nitidamente em inferioridade, mas era corajoso e lutava com bravura ímpar. O mago procurou se proteger enquanto pensava em que feitiço usar.
Cruine acertou suas pendências com Tiar naquele dia. Após derrubar um par de árvores com seu imenso montante, ele foi colhido ao meio por alguns espinhos de um galho que atravessaram sua armadura e, antes que alguém pudesse ajudá-lo, sumiu no interior da fenda de uma das árvores. O tronco começou a se contorcer, os galhos chocaram-se uns com os outros, derrubando as poucas folhas que neles havia e os gritos desesperados do guerreiro ecoaram em meio ao fragor da luta. A seiva viscosa da árvore tornou-se avermelhada e, num instante, tudo estava acabado.
Doriam urrou de raiva e avançou com a espada sagrada de sua ordem sobre o algoz do companheiro. A fúria estampada no rosto. De nada valeram os gritos de alerta de Lonios para o irmão. Dali a instantes o bravo sacerdote era atirado para trás, com vários ferimentos trespassando seu corpo. Sua vida esvaindo-se rapidamente, juntamente com seu sangue.
O mago pensou rápido, porém de maneira imprudente. A fórmula arcana já estava em seus lábios e os gestos foram elaborados apressadamente. Uma enorme bola chamejante partiu de suas mãos e foi chocar-se com uma das árvores-demônio, expandindo-se além do esperado por ele. As chamas alastraram-se, lambendo o corpo de Doriam e engolfando também os dois guerreiros restantes do grupo.
O místico ficou paralisado, seus membros gelados, presos, enquanto via o fogo mágico consumir a existência de árvores, monstros, homens e seu próprio sangue...
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As lembranças trazem um breve esgar aos meus lábios, repuxando a pele cicatrizada de meu rosto. Olho para o receptáculo e vejo que o líquido ficou completamente transparente. Guardo o frasco junto com os demais e manejo novamente a adaga descendo até o tórax do guerreiro. Cuidadosamente abro uma larga incisão do lado esquerdo, afastando carne e ossos até chegar a seu coração. Fico impressionado como aprendi tudo isso; esses conhecimentos do corpo mortal, de seu interior e de seus componentes. O conhecimento de tudo que me transformou, abriu minha mente, me fez abandonar a futilidade do riso, a hipocrisia da alegria e a inutilidade da busca do domínio dos elementos.
Tenho o coração em minhas mãos ensanguentadas. Um órgão singelo, que parece quase pulsar ainda, como se meu desejo de conhecimento pudesse fazê-lo palpitar. Ele me lembrava outro coração...
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Lonios sabia o que dera errado. A investida no covil do bruxo necromante fora bem planejada nos mínimos detalhes. Eles deveriam resgatar a noiva aprisionada do filho de um nobre de Pechara e sair tão furtivamente como entraram. As chances de algo inesperado ocorrer eram mínimas.
Mas tudo dera errado. Nambar, o ladino – sempre ele – tivera a estúpida ideia de mexer num baú trancado e não conseguira desarmar a armadilha elétrica que estava instalada. Agora jazia, eletrocutado, sobre o objeto de seu mortal desejo. Infelizmente, o barulho atraíra a atenção dos servos desmortos do feiticeiro que acorreram ao local aos borbotões.
Suas energias místicas estavam no fim e seus sortilégios mais potentes não podiam ser usados naquele local apertado. Não cometeria o mesmo erro que custara a vida de Doriam, seu irmão morto, perdido para sempre e que o marcara para o resto da vida, tanto no corpo como no espírito. Por quê? Para quê? A fatalidade do ocorrido ao sacerdote ainda pesava enormemente em sua consciência. Martelava seus pensamentos e corroía sua alma. E a culpa, sua maldita culpa... A lembrança do juramento quebrado veio-lhe à mente; seriam os deuses tão vingativos assim?
Seria o destino final de todos servirem de alimento aos vermes da terra ou de serem escravos de algum poder divino ou das trevas? Estaria Doriam condenado ao esquecimento? Estaria ele sentenciado a viver com aquele sentimento o resto de sua fútil existência? Não, deveria haver outra resposta, outro sentido; não podia ser simplesmente assim.
“E há outro sentido”... Uma voz na sua cabeça...
Sacudiu a face queimada, surpreso, enquanto observava impotente, Ravem cair diante de uma dezena de mortos-vivos. Carnos tentou resgatá-la, mas, mesmo destruindo os monstros, chegou tarde demais.
Subitamente, dois corpos se ergueram do meio da carnificina. Presos no horrendo hiato que separa a vida e a morte moviam-se vagarosamente em sua direção. Os rostos – que davam a impressão de que as criaturas, quando vivas, eram mulheres – estavam desfigurados. Suas roupas, agora rasgadas e em trapos, transpareciam ser finas e usadas por damas de nobre nascimento. Uma delas parecia usar um anel na mão direita...
Será que...? Não, não poderia ser... Aquilo seria uma piada dos deuses?
“Ninguém precisa morrer. Não precisa deixar de existir”. Outra vez aquela voz. O que estava acontecendo?
– Seres das trevas, que a luz de Selimom resplandeça e a escuridão seja banida de sua existência – a bravata veio de Helair, a sacerdotisa. Com um gesto de fé, mostrou às almas penadas o talismã metálico com o símbolo do Senhor da Paz. Um bruxuleante feixe de luz esmeralda fez com que os últimos inimigos conhecessem o descanso eterno.
“Deixa-me mostrar que a morte não precisa ser temida. Além dos reinos de Cruine estão os segredos da vida eterna, da imortalidade. Abandone o temor, a crença, os elementos; abrace a dúvida, o questionamento, os segredos. Deixa-me mostrar-lhe o caminho; contemple o oceano incandescente e renegue o ciclo do esquecimento”. A voz ficava cada vez mais forte, mais audível, seus argumentos mais palatáveis, aceitáveis.
Helair e Carnos acorreram para os fundos do recinto, procurando arrombar a porta que acreditavam levar para fora daquele salão de horrores.
– Lonios, vem! – gritou o guerreiro.
“Sei o quanto desejas conhecer os segredos além do véu do caos, do suposto fim de tudo. De ter respostas para seus questionamentos. Sei o quanto desejas, no fundo do teu coração, transcender os primordiais. A recompensa te espera”.
Sim, apagar da existência o dia em que extinguira a chama da vida de Doriam, de nunca mais viver corroído pela culpa, de conhecer os segredos que prolongam a existência, de se libertar das amarras das parcas e de conhecer a fundo os mistérios escondidos além das barreiras de Cruine. A sabedoria sem restrições...
O que precisaria fazer?
– Lonios, que diabos, mago! O que está esperando? – a voz de Helair trovejou no interior do recinto.
“Ninguém que não seja como você pode compreendê-lo. Somente você pode ter acesso aos mistérios, NINGUÉM MAIS”.
A partir dali borrões de lembranças...
Energias místicas fluindo, vozes guturais, gestos, gritos, fogo, raios, dor, silêncio, um fulgor luminoso de uma lâmina, sangue, muito sangue.
Lonios se recorda de ter o coração de Helair nas mãos e o apresentar a uma forma fantasmagórica, encapuzada e negra que surgira à sua frente. Olhos brilhantes fulguravam em um rosto de semblante duro e sem expressão. Em suas mãos um anel com uma opala polida e uma estrela de prata engastada sobre ela, foi-lhe oferecido.
– Seja bem-vindo, irmão; eu sou Nabu. Todos os teus confrades te saúdam!
– Mestre!
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Guardo o coração em outra caixa, junto com os demais que já havia retirado. Eles me servirão para muitos estudos. Levanto e olho para os que tombaram ali na clareira. Mais um grupo de aventureiros enviados para dar fim a minha existência. Eu não sorrio, nem ao menos esboço ares de satisfação. Não há por que. Hoje, acho que se havia algum sentimento ou emoção em mim, ficou obscurecido no passado, nas cinzas que consumiram meu velho eu. Hoje, acredito que vivi o suficiente para saber como é inútil a felicidade. Uma ilusão. Só o conhecimento resta. Só o conhecimento pode vencer a ignorância e abrir o véu dos mistérios da vida e da morte. E transcender a morte é conhecer os segredos da vida.
Arrumo cuidadosamente os componentes do feitiço no chão. Meus olhos vislumbram os servos parados a poucos metros atrás de mim aguardando a chegada dos novos irmãos. Concentro-me e sinto o mar de fogo e caos emergir em meu interior. Recito a fórmula exatamente como aprendi. O gestual como ensinado. Componentes sendo consumidos. Um ligeiro relampejar verde enegrecido emana dos corpos caídos. Músculos rijos começam a se mover, tendões a se retesar, articulações rangem e, por fim, os corpos mutilados se erguem.
Um pequeno sorriso, tênue e infantil, parece esboçar em meus lábios, mas ele rapidamente desaparece. Contemplo meus novos “filhos”. Minha herança para este mundo decaído e preso às limitações impostas pelos deuses.
Volto-me e me dirijo para a torre onde resido nas encostas das montanhas de Keiss. Caminho segurando meu cajado. Hoje sou forte o suficiente para não precisar me apoiar nele; no futuro, não serei velho o suficiente para fazê-lo. Os grilhões de Cruine não me aterrorizam mais e seus guardiões não me inspiram mais respeito. Não me importo com os deuses; são egoístas ao extremo ao privar seus chamados filhos de um tesouro que se arrazoam pertencer somente a eles. Também não me importo com as pessoas. Suas existências são fúteis e breves. Contentam-se com o parco período que vivem nesta vida. Aceitam, passivamente, serem limitados pelos primordiais, jogados no ciclo vicioso sem fim da morte e renascimento, perdendo tudo o que conquistaram anteriormente. Preferem brincar com seus joguinhos infantis de poder e glória efêmera. Seu castigo merecido é serem servos, como estes que me seguem.
Não me tornarei um deles. Daqui, do alto das montanhas, observarei seus reinos caírem e suas pueris esperanças se desvanecerem; pois eu me divirto com a morte e ela não me conhece mais pelo meu nome. Os mortais também não recordam mais o meu nome, envolto em brumas do desconhecido, pois me tornei mais que um nome poderia ser; tornei-me uma lenda, alguém a ser temido e evitado. Alguém que busca a chave da eternidade. Não sou mais Lonios. Sou apenas O Necromante.
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Verbetes que fazem referência
Crônicas de Tagmar-volume 2
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