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Por Airton França Diniz Junior
“O inverno deste ano promete... Ainda bem que amanhã estarei longe de tudo isso!”.
O pensamento lampejou na mente de Tanos enquanto ele erguia mais uma caneca de cerveja. A espelunca do velho Robam, àquela hora da noite e com o tempo que fazia lá fora, parecia anormalmente cheia. A tempestade de neve que rugia em Brual não espantara a clientela fiel do sexagenário taverneiro. Elas não eram incomuns no inverno do sul de Eredra, mas a daquela noite estava mais forte que o habitual.
Antes de pedir mais uma dose, ele já se decidira. Seria sua última caneca por aquela noite. Tinha de se deitar logo, pois o dia seguinte seria atarefado. Chamou a atendente, uma bonita jovem de cabelos escuros, corpo sinuoso e olhos negros, que ele nunca tinha visto por aquelas bandas e que despertara olhares cobiçosos em vários fregueses, inclusive nele mesmo. Será que o velho Robam estava dormindo com ela? E, a propósito, ele não vira o taverneiro no local naquela noite...
- Minha querida beldade, me veja mais uma cerveja, sim?
A jovem olhou-o profundamente e sorriu.
- Tem certeza de que quer beber mais uma, senhor? Não parece estar muito bem.
Tanos deu uma gargalhada. Encorajado pelos humores do álcool, estendeu suas mãos calejadas e tocou no braço da atendente. A pele dela era deliciosamente macia.
- Minha querida, como se chama?
Ela encolheu-se ante o toque daquelas mãos ríspidas e grossas.
- Arine, meu senhor.
Ele chegou-se à moça e falou com uma voz ébria e arrastada:
- Pois saiba, Arine... que não será uma simples caneca de cerveja que irá dar cabo de um homem como eu. Já sobrevivi a coisas muito piores... Fique tranquila. Agora me veja logo esta bebida que eu quero ir embora.
A atendente serviu a caneca do líquido espumante com uma expressão indecifrável no rosto e virou-se para atender outro cliente.
Rindo da atitude da moça, ele pegou o grande copo de vidro com certa dificuldade. Ela tinha razão. Já estava embriagado. Depois de tantas doses, até gestos simples requeriam um pouco mais de concentração. Levou o copo até a boca e virou num único gole, garganta abaixo. O líquido desceu lentamente provocando uma sensação de calor e prazer por todo o seu corpo.
A sensação lembrava vagamente a excitação que sentia quando ainda era um matador profissional, um assassino, um “sombra mortal”. Aquele calor que lhe percorria o corpo, a sensação de poder, de domínio, que aguçava seus instintos frente à vítima. Prazeres diferentes, mas igualmente inebriantes para ele.
Apesar de lembrar como se sentia, Tanos não era mais o mesmo. Estava ficando velho e cansado demais para esses antigos costumes. Cansado daquela vida, das mortes, das fugas, das faces pálidas e sem vida de suas inúmeras vítimas. Um dos únicos prazeres disponíveis naquela altura da vida, ele encontrava em alguns copos de cerveja nas noites frias e insípidas de Brual.
Como um dos “sombras”, ele se tornara um dos mais habilidosos de todo o grupo. Conhecia segredos e informações que envolviam a podridão política de vários governos e membros da sociedade. Também sabia coisas demais da Guilda. Já dera cabo de um sem número de pessoas, importantes ou nem tanto. Escapara de inúmeros ardis e colecionara algumas cicatrizes profundas, tanto no corpo como na alma. Durante sua vida conseguira juntar uma quantia razoável que lhe garantiria uma velhice tranquila, se sobrevivesse para usufruí-la. E era o que ele pretendia a partir do dia seguinte. Resolvera dar um basta. Em segredo absoluto, arranjara um meio de partir na primeira caravana para Plana e lá iniciaria uma nova vida. Abandonaria os “sombras” e tudo o que se referia a eles. Fugiria para longe dos fantasmas que assolavam suas noites insones...
Resolvera comemorar a liberdade com uma última visita à taverna do velho Robam. Mas se excedera na comemoração.
Enfiou a mão no bolso e tirou algumas moedas para pagar pelas bebidas. Pegou duas delas ao acaso e depositou sobre o balcão de madeira. Sua vista embaçada o impediu de identificar a quantia exata, mas ele captou enquanto preparava-se para sair, o olhar espantado da atendente, suas mãos hábeis literalmente voarem para cima das moedas e sair correndo para o fundo do bar.
“Quantia a mais” – ele pensou dando de costas. Não faria falta.
Lá fora a tempestade de neve havia diminuído de intensidade. O frio nunca lhe agradara. Lembrava muito bem de quando visitou Conti, numa de suas viagens, muitos anos atrás. Suas andanças pelas noites agitadas de Muli e seu serviço como matador naquela cidade vieram-lhe a mente. Uma névoa triste cobriu seus olhos.
“Coisas do passado” – ele pensou. Ainda assim, lembrou-se, rindo, dos problemas que teve e de suas implicações nos seus hábitos até algum tempo atrás. Agora, viver ou morrer fazia grande diferença, algo que não pensava muito no passado.
No caminho até a porta de saída, ele teve a real noção de quão bêbado estava. Tudo parecia rodar à sua frente. Mesas, cadeiras, luzes e o próprio chão giravam constantemente. Seu estômago embrulhou. Apoiando-se por vezes em alguns clientes, ele venceu com dificuldade o caminho até a saída. Se seus superiores o vissem agora...
Empurrou a porta. A liberdade o aguardava.
O vento gelado pareceu despertá-lo por alguns instantes e enquanto vestia seu casaco marrom, percebeu que não conseguiria chegar a sua casa esta noite. Dotado ainda de algum resquício de lucidez, concluiu que deveria passar a madrugada na estalagem da velha Neage, próxima ao bar.
Enfiando os pés na espessa camada de neve que se formara, seguiu lentamente, munido de toda sua concentração para não escorregar ou tropeçar nas próprias pernas.
***
A noite estava escura e os ventos gélidos e cortantes não pareciam causar dano algum à atarracada silhueta masculina que permanecia, há algumas horas, envolta em seu casaco de pele de urso, de frente a taverna, observando todo o movimento.
Rogar era um anão forte e encorpado que fora condicionado a enfrentar qualquer tipo de temperatura adversa. No seu ofício, as viagens eram constantes e para as mais diferentes localidades. Ele poderia passar noites nas Geleiras ou dias nos desertos da Levânia e sobreviver utilizando-se de técnicas secretas, aprendidas durante seus anos de duro treinamento. Seu vigor físico era notável e suas habilidades incomuns para alguém de sua raça, faziam justiça à sua ocupação.
Rogar era um assassino profissional de elite, um “sombra” especializado em eliminar “incômodos”. Algumas pessoas sabiam demais, outras de menos, mas contrariavam gente muito poderosa. Ele era o mediador, o juiz e o carrasco entre as partes. Claro que a parte menos favorecida acabava sempre eliminada.
Ele se julgava o melhor na sua arte. Não conhecia os demais “companheiros” de profissão, mas sua soberba e arrogância eram ímpares. Sempre exigia os melhores contratos e os melhores pagamentos. Em sua empáfia, imaginava-se melhor até que Teo, o lendário e nunca visto líder da Guilda e em seus delírios egocêntricos, imaginava-se matando Teo e assumindo a chefia dos Sombras Mortais. Suas atitudes gritavam os desejos mais profundos de seu coração.
Mas antes tinha um contrato a cumprir. O sujeito com aparência de velho dentro da taverna seria sua vítima esta noite.
No contrato as ordens eram claras: uma morte limpa, sem resquícios ou pistas fortuitas. Sem testemunhas ou falhas. Tudo deveria parecer um acidente. Seu pagamento integral dependia disso. Pelo menos eram as palavras contidas no pergaminho que recebera há dois dias. A descrição da sua vítima era bem pormenorizada... Algo raro naqueles dias, mas ele não se importou com o fato. Até o local onde o mesmo morava fora fornecido. Tinha sido fácil para o anão localizar e seguir o humano até aquele local.
A porta do bar se abriu. Era seu alvo que partia cambaleante pela rua. O assassino saiu de seu esconderijo notando que tudo seria mais fácil nesta noite. O homem era alto e robusto, mas estava completamente bêbado, o que lhe dava uma grande vantagem. O que algumas doses consideráveis de álcool no organismo de um humano não faziam no mesmo...
Ele sabia que algumas canecas de cerveja eredri eram o suficiente para causar perdas importantes em algumas funções mentais como percepção de distância, agilidade e velocidade. Eram informações muito úteis para um exímio matador profissional como ele.
Movendo-se com grande destreza, o assassino se aproximou pela retaguarda. Seus olhos fixaram-se na vítima enquanto os outros sentidos se mantinham atentos à volta de seu perímetro. Os músculos contraídos estavam prontos para agir no momento certo. Seria bem rápido.
Aproximar sorrateiramente e surpreender...
Podia ouvir os passos vacilantes do homem e sua respiração ofegante.
E então, agiu.
Com grande velocidade atacou a vítima surpresa dando-lhe um potente golpe no joelho direito e imobilizando-a pelo pescoço quando esta vergou sob o peso da dor. Esta era uma técnica simples. Interromper a respiração até que seu oponente perdesse a consciência.
O homem tentou debater-se por um tempo, inclusive utilizando alguns golpes incomuns para sua pessoa, mas, além de embriagado, ele não tinha força suficiente para vencer seu algoz e Rogar tinha braços robustos que apertavam como um torniquete. Pouco tempo se passou e o velho bêbado desabou inconsciente. Seu rosto chocou-se violentamente contra uma parte de chão descoberto provocando um corte na testa.
O assassino olhou em volta.
Ouvia apenas vozes vindas do interior da taverna. Ninguém se atrevera a sair naquela madrugada fria com uma tempestade de neve ainda caindo. Agachou-se sobre a vítima e a posicionou de costas no chão. Com uma das mãos ele raspou o chão coberto por uma fina camada de neve até juntar uma quantidade razoável ao lado do desafortunado homem. Logo depois, abriu a boca do bêbado o máximo que conseguiu. Lentamente foi enfiando a neve amontoada pela garganta do velho até preencher cada espaço vazio.
Era sua técnica mais fina. A morte branca...
Ela consistia em bloquear a respiração do alvo até que este morresse asfixiado. A neve iria interromper suas vias respiratórias tempo suficiente para matá-lo. Logo depois, o calor que ainda restaria no próprio corpo lentamente derreteria qualquer vestígio de neve em sua garganta.
Era a morte limpa que seu contrato pedia. Dinheiro fácil de ser ganho.
Levantou-se e rapidamente e começou a preparar o cenário para dar a falsa impressão de acidente. Ninguém iria suspeitar de um bêbado que tropeçara, batera a cabeça no chão, desmaiara e se asfixiara com a cabeça enfiada em alguns centímetros de neve.
Ele, entretanto, logo estaria longe dali, provavelmente iria para o sul de Ludgrim. Agrimir era um local tranquilo e isolado.
Olhou novamente para sua vítima. Quem será que ele era?
Numa fração de segundos, algo inesperado aconteceu. Sentiu uma dor aguda no pescoço, bem no local descoberto de seu casaco. Levou as mãos, por puro reflexo até o local da dor.
Uma expressão de horror tomou sua face.
Seus dedos tocaram um minúsculo dardo profundamente encravado em sua pele amorenada. Tentou girar o corpo para localizar o agressor, mas quase instantaneamente seu corpo endureceu e seus músculos não mais obedeciam aos seus comandos. Sua respiração se tornou difícil, seu coração bateu mais rápido e parecia querer explodir dentro do seu tórax. Seus olhos vidraram e ele tombou.
Antes que atingisse o chão, seu corpo estava morto.
***
Uma silhueta emergiu agachada, das sombras do fundo de uma pequena viela que saia dos fundos da taverna. Estava envolta em um volumoso casaco branco e em suas mãos carregava um pequeno tubo cilíndrico feito de madeira. Na semiescuridão de seu refúgio ela observou o corpo do anão desabar sobre o do velho bêbado da taverna.
Estava feito. O alvo fora eliminado.
Missão executada. Levou a mão ao pergaminho que continha as instruções detalhadas do que deveria fazer para que pudesse adentrar à Guilda. Elas haviam ordenado a morte da vítima a qualquer custo. E isto fora realizado. Fácil até. Suja? Sim, talvez, porém precisa.
Um discreto sorriso iniciou-se na face do algoz enquanto guardava sua arma de sopro. Ele retirou a máscara branca e jogou para trás o capuz do casaco revelando uma jovem e feminina face branca e aveludada, de traços leves, olhos negros e cabelos escuros. Ergueu-se. Seus contornos sinuosos se desenharam em sombras voluptuosas nas paredes. A tempestade ainda lavrava, mas amenizara um pouco mais. Ela voltou seus olhos para sua sombra e recordou-se dos olhares cheios de luxúria que a acompanharam durante toda a noite, na taverna. Lembrou também da conversa que tivera com o bêbado.
“Minha querida, como se chama?” – Ele perguntara.
“Arine, meu senhor”. – ela mentira.
Sorriu. Poucas vezes tinha se permitido sorrir como fazia agora. Se soubesse, se tivesse imaginado que a missão seria tão fácil assim, não teria perdido a noite de sono anterior. Havia conseguido ludibriar o velho sexagenário dono da taverna para que a contratasse como atendente já que o alvo de seu alvo frequentava aquele lugar, conforme lhe dissera as instruções no pergaminho. Uma pequena promessa de uma noite cheia de prazeres convenceu o idoso a lhe arrumar o emprego. Homens... Tão fáceis de serem manipulados.
Agora ele se encontrava rígido e inerte no depósito nos fundos de seu estabelecimento. Ela assumira a função de atendente até a vítima de seu alvo sair da taverna, totalmente embriagado. Ele ainda a presenteara com duas moedas de prata colocadas erroneamente sobre o balcão. Saíra rapidamente pelos fundos e se posicionara na saída da viela. Quando dessem por falta dela e do dono da taverna ela já estaria longe dali.
Preferiu usar sua arma de sopro a confrontar diretamente seu objetivo. Algo mais sutil, como um verdadeiro assassino o faria. O veneno que o dardo levava era sua mais nova descoberta. Rápido, fulminante e desaparecia em pouco tempo.
Enfiou a mão no bolso de seu casaco e retirou uma garrafa de vinho de Conti. Uma última recordação do velho Robam. Deu um grande gole. Absorvia o momento de prazer que sentia a cada missão terminada com sucesso. E esta ainda era a mais importante de sua curta trajetória de assassina em Eredra. Abrir-se-iam portas nunca antes imaginadas. Só tinha mais uma coisa a fazer. Tirar o anel do dedo do anão e colocar num local pré-estabelecido no contrato.
Pensou ouvir algo se aproximando, mas nada tiraria sua concentração do prazer que estava usufruindo, da agradável sensação de se sentir valorizada, de se sentir importante.
O vento trouxe um odor estranho. Em seus treinamentos ela fora instruída para reconhecer cheiros, mas o aroma do vinho lhe impregnava as narinas. Respirou fundo mais uma vez e então percebeu, tarde demais, que odor era aquele.
Suor misturado à aguardente eredri de péssima qualidade.
Uma mão pesada pousou sobre seu ombro esquerdo fazendo gelar seu abdome e tencionando os músculos. Seu coração disparou.
Ela soube que cometera um grave e fatal erro. “Estúpida! Idiota!” Um sem número de imprecações varreu sua mente.
Entregue ao seu destino, relaxou os ombros e lentamente virou o rosto buscando visualizar seu executor.
Surpreendeu-lhe ver um velho barbudo e maltrapilho encarando-lhe, cambaleante, e dizer, com os olhos bem vermelhos:
- Dá um trago, dona?
Ela suspirou profunda e longamente e deu a garrafa inteira.
***
Enquanto tomava um gole do vinho que a moça havia-lhe dado, Teo pensava o que iria fazer. Dois empecilhos eliminados. Ela era descuidada e pouco experiente, mas tinha a história do novo veneno. E aquele corpo...
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