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por Luiz Antonio Salgueiro
Piotre era pescador, assim como seu pai. Natural de Calco, vivia no vilarejo de Barn, às margens do Frefo, o grande rio que serve de fronteira oeste com Plana, e onde desenvolvem suas atividades. Apesar da pouca renda, Piotre conseguia escrever seu nome e ler as palavras com certa dificuldade – um fato não tão incomum em Calco. Apesar da atividade familiar, Piotre não estava feliz. Ele queria conhecer o mundo, como a maioria dos jovens, mas não tinha coragem de abandonar seus pais, especialmente sua mãe doente.
Entretanto, logo após seu 17o aniversário, Piotre surpreendeu-se quando ia, pela manhã, até o barco com seu pai para mais um dia de trabalho. Enquanto se preparavam para zarpar, como se fosse a coisa mais natural do mundo, seu pai lhe disse:
- Piotre, eu e sua mãe achamos que já está na hora de você viajar até Saravossa e visitar a Grande Biblioteca.
Aquele foi um grande dia para Piotre. A Grande Biblioteca, dizem, concentra todo o conhecimento do mundo conhecido, e muito mais... Ela se localiza em Saravossa, a capital de Calco. E Piotre nunca estivera numa grande cidade.
Dias depois, após excitação crescente, Piotre estava pronto para partir. Sua mãe lhe preparara um farnel com peixe seco, pão e uma botija de vinho. Seu pai lhe deu 7 moedas de prata e 5 de cobre, produto de mais de um mês de trabalho. Então ele finalmente se preparou para a longa viagem.
Arrumou sua muda de roupa na pequena bolsa que levava a tiracolo, onde levava também sua pederneira, colocou no cinto seu punhal e o pequeno gládio usado que seu pai lhe dera para a viagem. Despediu-se de sua vida e, em passos largos, abandonou a vila que chamava de lar.
Seus pais não sabiam, mas Piotre não pretendia retornar. Aquilo era um adeus definitivo e, de costas para eles, Piotre chorou enquanto caminhava rumo à sua nova vida.
***
No segundo dia de caminhada, já deixara para trás o caminho que levava à Floresta de Aberdin, onde viviam os meio-elfos e era intensa a movimentação. Piotre preferira seguir a pequena trilha à esquerda, que o mantinha mais próximo do Frefo e o deixava mais seguro. Qualquer problema, acreditava ele, era só virar a oeste e buscar socorro numa das vilas de pescadores dali.
O sol começara a se por e Piotre decidira preparar alguma coisa para comer e descansar, pois teria um longo dia de caminhada. Afastando-se um pouco do caminho, em busca de gravetos para acender uma fogueira, Piotre ouviu um bufar grave e o ruído de patas pesadas escavando o chão. Cauteloso, ele afastou os arbustos pesados para ver o que se passava e viu-se surpreendido por um belíssimo e enorme corcel negro.
De crina espessa, completamente selado e com arreios decorados com botões de prata, estava bufando e escavando o solo com sua pata direita. Afora o movimento ritmado da pata e o bufar do animal, ele não se movia, exceção feita quando balançava sua cabeçorra de cima para baixo para, em seguida, sacudi-la lateralmente.
- Ele seria ótimo para minha viagem – pensou Piotre – mas como pegá-lo?
Com cuidado, Piotre pousou a bolsa que levava a tiracolo na grama e desafivelou seu cinto para que o gládio que o pai lhe dera não fizesse barulho. Manteve apenas o pequeno punhal na cintura e, com bastante cautela, foi avançando por entre os arbustos, evitando o mínimo estalar de gravetos.
O belo animal parecia não notar ou não se importar com sua presença, e Piotre foi se aproximando cada vez mais. A sela e os arreios indicavam que o cavalo era domado e não deveria apresentar grande resistência, uma vez que deveria estar acostumado à presença humana. Lentamente ele continuou avançando até o animal.
O cavalo olhou para ele e não apresentou grande resistência quando Piotre segurou-lhe as rédeas, limitando-se a um pequeno relinchar. Piotre lhe afagou o pescoço e sua mão ficou úmida e pegajosa. Na pouca claridade que ainda havia ele viu sua palma da mão vermelha, coberta de sangue. O animal não parecia estar ferido, e só então Piotre viu, a cerca de três metros, o corpo.
Caído ao solo, de bruços e rosto enterrado ao chão, estava o cavaleiro. A grama ao seu redor estava mais escura, e Piotre imaginou que seria sangue, pois a escuridão da noite avançava a passos rápidos. Após o choque inicial, Piotre avançou até o corpo. Com delicadeza ele o virou e logo percebeu que nada poderia fazer.
O rosto do cavaleiro era uma massa de sangue, carne e osso, totalmente disforme, apesar do elmo aberto que usava. A placa da armadura no peito do cavaleiro ostentava o selo da Casa Real, indicando que se tratava de um membro da Guarda do Cetro Prateado. Piotre olhou em volta, mas nenhum sinal da maça folheada de prata e adornada com o selo real, arma utilizada e que dava nome àquela milícia de elite a serviço do governo.
Com os dedos trêmulos, ele procurou alguma forma de identificar o cavaleiro (um broche, anel, tatuagem), mas não conseguiu perceber nada. Piotre ficou sem saber o que fazer. Afinal, poderiam pensar que fora ele quem assassinara o cavaleiro. Mas ele não poderia deixar seu corpo ali, para ser devorado pelos animais. Nem mesmo abandonar o cavalo à própria sorte.
De maneira cerimoniosa, Piotre despiu e enterrou o cavaleiro, assinalando o local para que pudesse encontrá-lo se necessário. Seu elmo ou sua armadura poderiam ajudar em seu reconhecimento.
A noite agora já estendia seu negro manto e ele precisava descansar. Amarrou as rédeas do cavalo, para que este não fugisse, fez uma fogueira e adormeceu, cansado e nervoso.
O que o dia seguinte lhe reservaria?
***
O sono de Piotre não foi reparador, mas agitado pela imagem do cavaleiro morto e seu rosto desfigurado. Quando acordou, o sol já ia alto e sua barriga reclamava de fome. Só então percebeu que não comera nada desde o meio do dia de ontem.
Enquanto mastigava um pouco de pão e peixe seco, observava o cavalo que pastava ao lado da fogueira já apagada. Deveria seguir seu projeto inicial e buscar ajuda numa das vilas pesqueiras à margem do Frefo ou deveria seguir em direção a Torojai, a maior cidade próxima?
Piotre ajoelhou-se ao lado da cova onde enterrara o cavaleiro e fez uma prece a Ganis, sua deusa, pedindo sua intervenção junto a Cruine, senhor da morte, para que este acompanhasse o cavaleiro até o paraíso. Decidido, guardou todas as coisas e aproximou-se do cavalo, lhe afagando o rosto. Ele nunca montara um cavalo e estava nervoso.
O animal era imenso e o jovem pescador engoliu em seco. Segurando firmemente as rédeas com uma das mãos e a sela com a outra, colocou um dos pés no estribo e içou-se sobre o animal, arremessando a outra perna sobre ele e sentando-se na sela. O cavalo movimentou-se lateralmente, reclamando um pouco, e Piotre quase foi ao chão. Com algum custo, segurando firmemente sela e rédeas, cutucou o animal com os calcanhares e ele avançou num pequeno pulo.
Claramente o animal estranhava o montador, mas aos poucos ambos foram se acostumando um ao outro e, em instantes, já caminhavam suavemente pela estrada em direção a Torojai.
A chuva alcançou-os no meio da tarde. Forte, inesperada. Usando a montaria, Piotre seguia mais rápido, mas não tinha confiança de apressar o passo, pois tinha medo de cair daquele grande animal. E a chuva só atrapalhava mais seus planos.
Logo após uma curva suave na estrada, Piotre viu uma trilha à esquerda que, certamente, levaria a algum vilarejo pesqueiro às margens do Frefo e ele não teve dúvidas. Com certa dificuldade guiou o cavalo para a trilha, em direção a horizontes mais familiares e em busca de abrigo contra aquela tempestade.
***
Ultrapassando um pequeno bosque, Piotre viu-se numa colina com a pequena trilha a serpentear abaixo em direção dum vilarejo, como imaginava. Não contava, entretanto, em ver aquelas cabanas incendiadas em sua maioria, ainda mais pela chuva que caía.
Enquanto observava estarrecido a queima do vilarejo, foi surpreendido por um pequeno grupo de pessoas. O grupo era formado por três idosos e duas mulheres, uma das quais carregava no colo uma criança, que se lançaram sobre ele suplicando ajuda e falando, todos, ao mesmo tempo.
Após a surpresa inicial, quando teve dificuldade em controlar o cavalo, Piotre viu todos caírem de joelhos ao chão. Então um humano que aparentava mais idade – depois de pedir aos demais que ficassem em silêncio – começou a falar.
- Bendito seja Crisagom, por trazê-lo hoje aqui, nobre cavaleiro. Veja – e ele apontou o vilarejo – Curtado está em chamas! Um grupo de trols está atacando o vilarejo. Precisamos da sua ajuda, cavaleiro.
Piotre percebeu que haviam o confundido com o miliciano do governo, que segue pelo País para manter a ordem, certamente em razão do cavalo e da armadura presa à sela. Ele chegou a pensar em contar a verdade, mas quem garantiria que aquelas pessoas acreditariam nele? E se pensassem que era mais um ladrão ou assassino? Sem ver outra opção, Piotre disse:
- Calma, cidadão. Você disse... trols? – perguntou Piotre, enquanto pensava: “mas que diabo é um trol?”
- Sim, cavaleiro. Quatro ou cinco trols nos pegaram desprevenidos e, aproveitando que a maioria dos homens estavam pescando, invadiram o vilarejo. Mataram aqueles que poderiam resistir e atearam fogo nas casas... estão prendendo as crianças e as mulheres, certamente para vendê-las como escravos ou para servir de refeição.
- Certo, certo... – disse Piotre, enquanto pensava como agir – Aguardem aqui e afastem-se da trilha. Escondam-se nos arbustos e esperem eu retornar. Caso amanheça e eu ainda não tenha voltado, corram em busca de ajuda.
O pequeno grupo agradeceu. O velho, antes de desaparecer no meio da mata, disse que Blator e Crezir o acompanhariam e manteriam Cruine longe de seu caminho. Piotre acenou agradecendo e, apavorado, começou a descer a trilha até o vilarejo.
Conforme ia se aproximando do vilarejo, composto por cerca de oito a dez casas, pelo que podia ver, Piotre escutava gritos que lhe arrepiavam a espinha. Mas o pior ele escutou logo a seguir: eram risadas!
Cauteloso, Piotre deixou a trilha e, com as mãos trêmulas, vestiu a armadura do cavaleiro e colocou seu elmo. A escuridão da noite não deixaria que percebessem que o elmo e armadura eram de tamanho maior do que ele. Então Piotre olhou para o céu, elevando uma prece aos deuses e pedindo proteção. Sacou seu gládio e foi avançando lentamente, ao largo da trilha, em direção ao vilarejo.
A algazarra era tão grande que não se ouvia o chapinhar das patas do cavalo no piso lamacento. Da entrada do vilarejo Piotre pôde ver um grupo de mulheres e crianças amarradas num cercado de cordas na parte central da vila, onde deveria ser uma praça, com as casas ao redor em chamas. Mesmo ao longe Piotre era capaz de perceber que a maioria estava ferida e sangrava.
E foi aí que Piotre viu, do lado de fora do cercado de cordas, o grupo mais estranho de sua vida. Cinco seres humanoides, de maxilares desproporcionalmente grandes, munidos de porretes cercavam os cativos e riam alto, fustigando-os vez ou outra.
- Então – pensou ele – esses são os trols...
Inspirando profundamente e, mais por instinto do que por bravura, Piotre ergueu seu gládio, fustigou os flancos do cavalo e entrou em disparada no vilarejo, gritando para espantar seus temores.
- Yaaaaaaaaaaahhhhhhh!
Os “trols”, surpreendidos, deram um salto assustados. A figura de Piotre adentrando o vilarejo, cavalgando o belo corcel negro, vestindo a armadura e o elmo do cavaleiro morto, causava grande impacto. Dois ou três começaram a correr, gritando:
- Ele voltou dos mortos... Ele voltou...
Dois em choque, ficaram paralisados. Um deles, bem no caminho de Piotre, recebeu uma trombada do cavalo e caiu ao chão, afundando o rosto na lama. O outro que se encontrava paralisado, só então Piotre pôde perceber, trazia na cinta uma maça prateada e que ostentava o selo real do cavaleiro morto, e logo Piotre compreendeu.
Aqueles monstros atacaram e mataram o cavaleiro, roubando sua arma e símbolo de poder, e agora acreditavam que ele, Piotre, era o cavaleiro que voltara dos mortos em busca de vingança.
- Como são estúpidos. – pensou ele.
Os três que saíram correndo, embrenharam-se entre as casas do vilarejo e desapareceram, abandonando seus colegas. Um deles estava desacordado, caído em meio da lama. O último se encontrava em pé, em estado de choque, olhando para Piotre sem ação.
Piotre pôde ver seus olhos de um amarelo brilhante, que parecia refletir o fogo das casas ao redor, arregalarem-se. Lentamente ele sacou da cintura a maça prateada e, num pedido de desculpas, depositou-a ao chão à frente de Piotre, esperando perdão do – acreditava ele – falecido.
Piotre conduziu o cavalo lentamente até estar diante da criatura que, respeitoso (ou temeroso), baixara a cabeça e não conseguia lhe encarar. Isso era um alivio, pois pela proximidade poderia ver que Piotre não era o cavaleiro morto e tudo iria por água abaixo.
Ainda tremendo de medo e pela adrenalina que corria em suas veias, Piotre desmontou do cavalo e abaixou-se para apanhar a maça depositada no chão quando este se moveu.
Talvez a criatura tenha conseguido ver que aquele não era o mesmo cavaleiro, talvez tudo tenha passado de um estratagema, mas a verdade é que este avançou para Piotre, com seu porrete erguido, pronto para o golpe. Tudo foi muito rápido.
Aproveitando-se de já estar abaixado, Piotre rolou pela lama apanhando, ao mesmo tempo, a maça do cavaleiro com sua mão livre, enquanto a criatura desferia o golpe no vazio e perdia o equilíbrio.
Mais por reflexo que por outra coisa, utilizando o movimento do rolamento como impulso, Piotre desferiu um golpe com seu gládio e a sorte lhe sorriu mais uma vez.
O gládio, apesar de pequeno, atingiu o pescoço logo abaixo da nuca, e um líquido esverdeado e mal cheiroso espirrou para todos os lados antes da criatura ir ao chão. Morta.
Aproveitando-se da confusão, o outro “trol” ergueu-se da lama, ainda atordoado, e ao ver seu companheiro caído e sangrando (se é que se poderia chamar de sangue aquele líquido fétido), saiu em desabalada carreira.
Piotre, ofegante, caíra de joelhos, pouco acreditando no golpe de sorte que tivera. Somente foi chamado à realidade pelos gritos de júbilo das mulheres e crianças que se encontravam aprisionadas e davam vivas ao seu salvador. Desconcertado, Piotre sorriu e elevou graças aos deuses por estar vivo.
Dessa forma, ainda que por obra do acaso, Piotre deixara de ser um simples pescador como seu pai e tornara-se um verdadeiro aventureiro. Pelo decorrer dos acontecimentos logo soube que os deuses guardavam muito mais coisas para ele. Plandis lhe agraciara com a sorte, os “trols” eram apenas orcos...
Verbetes que fazem referência
Crônicas de Tagmar-volume 2
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