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Liberdade, aventuras, tesouros e disciplina .

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Por João Paulo M. de Castro



Calmaria... O barco mal se movimentava, as velas estavam murchas. O sol queimava a estibordo no azul límpido. No convés da embarcação encontrava- se uma figura solitária deitada com os braços por detrás da cabeça e com os olhos perdidos no infinito. De longe, alguém poderia confundi- la com um garoto vadiando. De perto, via- se que se tratava de uma mulher, bonita, de olhos castanhos e cabelos curtos, lisos e negros. “É raro as águas de Plana oferecerem um tempo como esse.” Pensou Auril consigo. Ela não se lembrava da última vez que deitou no convés para refletir sobre a vida e olhar para o céu. Além do mais, tinha prazer singular em ver o contraste do tremular de sua bandeira negra contra o azul da imensidão do céu. Mas naquele dia a bandeira quase não tremulava, pois o mar estava em calmaria.

Como era de se esperar, o silêncio dura pouco em um navio pirata, e logo foi quebrado por uma voz nem muito grave e nem muito aguda, mas potente:

- O que faz deitada aí, Sem-sorte? Faça algo!

A ordem veio de Pé- pequeno – o apelido é uma ironia com a realidade, esse humano tem quase dois metros da altura. Trata- se de um verrogari desertor, visto como covarde em suas terras, que andava perdido em Abadom quando entrou para tripulação.

- Fazer algo? - Replicou Auril – É justamente pelo mar estar nesta calmaria que a tripulação está descansando!

Pé- pequeno sorriu, e completou:

- Ué, mas não são as formigas que trabalham até morrer? - A gargalhada veio de imediato.

Ouvindo o guerreiro rir, Auril voltou a olhar para o céu deixando escapar um leve sorriso com um ar de “me pegou”. Ele caçoava de seu tamanho desde que chegou, ela deveria ter previsto. O humor de Verrogar é um tanto áspero, diferente das terras do Norte. Pé- pequeno completa:

- De qualquer forma, é bom não ficar tão desleixada ai, alguém pode não te ver e tropeçar!

Esta foi sem graça e forçada. Ela sabia que a piada veio mais pelo fato de ser uma mulher do que pelo próprio tamanho, também sabia que é preciso tempo até que um novo tripulante aceite a existência de uma veterana na tripulação. Se é raro encontrar uma mulher como tripulante de uma embarcação, mais raro é tê-la como superior. Normalmente, as piadas são para deixar a situação mais confortável. Mas existem coisas que ela não deixaria passar em branco:

- Sabe o que é pior que uma pedra no sapato?

- O quê? Um verrogari falante? – Respondeu o guerreiro;

- Um punhal no sapato... De quem pega no meu pé.

O sorriso sarcástico acompanhando o comentário disfarçou a seriedade da ameaça. E para Pé- pequeno é difícil imaginar que uma mulher de sorriso tão lindo e deitada de maneira tão displicente poderia fazer algo tão incisivo. Mas preferiu não arriscar, afinal estava em um navio pirata.

Mudando o assunto, Auril franziu a sobrancelha:

- E você, o que faz aqui?

Pé- pequeno ficou desconcertado com a pergunta, mas respondeu à barda:

- Estava de vigia no mastro principal. A água acabou, tive sede e aproveitei a calmaria para encher o balde de água e voltar ao meu posto.

Foi então que ela desviou a cabeça e reparou que não havia ninguém no topo do mastro. A cara séria com que olhou o guerreiro o fez encolher para metade do tamanho. E pior, difícil foi entender como ela conseguiu lhe dar uma bronca enquanto levantava:

- Novato, você sabe que não se deve abandonar seu posto, sob pena de duro castigo! Peça para alguém do convés lhe entregar água pela corda! - Concluiu Auril.

E claro, no momento, ela era a única que se encontrava no convés. Sem olhar diretamente nos olhos da carpinteira, o verrogari se demonstrava desajeitado diante daquela situação. E tentou se justificar:

- Não quis lhe incomodar... Você parecia tão relaxada.

Ele pareceu sincero. Enfim, talvez ela tenha sido dura demais. “Paciência, dê tempo ao tempo que ele irá se enturmar.” Pensou a pirata. “E mais, o sol está escaldante e o céu tem apenas um filete de nuvem vagando acima do mastro.”

- Por Cambu! - Gritou Auril.

Pé- pequeno ainda estava tentando se justificar, mas ela não o deixou terminar de falar. Um calafrio percorreu a espinha da barda e ela correu para a proa. Olhou bem a frente, uns 100 metros, e percebeu que as águas estavam ondulando. Tirando a pequena luneta pendurada na cintura, correu para a popa. E enquanto olhava, esbravejava nomes que uma donzela não falaria sem ficar ruborizada. O novato observou atônito aquela cena repentina. Até que ela lhe ordenou:

- Soe o alarme! Vou chamar o capitão!

- Mas por que? - retrucou o guerreiro, relutante em seguir a ordem.

- SANGUE DE CREZIR! SOE O ALARME!

Saindo do gabinete do capitão, Lucius apareceu:

- Cães! Qual o motivo dessa gritaria?

A resposta veio de Auril em forma de charada:

- Capitão, por que aquela nuvem está vagando acima do mastro se estamos em calmaria? E por que as águas ondulam perto do horizonte?

Lucius, surpreso:

- Por Cambu! Amaldiçoaram estas águas! Verrogari, toque mais forte esse sino!

Já não era preciso que Pé- pequeno subisse ao topo do mastro principal para ver um navio deslizando na direção do “Raposa Escarlate”. Assim, com uma luneta mais poderosa, Lucius se dirigiu até bombordo e distinguiu a bandeira.

- Ratos da Levânia!

Surgiu então ao lado do capitão uma figura serena, o meio- elfo Azverel – também chamado de “rede de camarão” por nada lhe escapar – sempre com olhar analítico. Percebendo a presença deste, Lucius entregou a luneta para seu contramestre e segundo em comando, dizendo:

- É o Lorde de Asturis, meu caro Azverel, em uma galera.

Por sua vez, este olhou pela luneta e replicou:

- Hum... pouco mais de 30 homens. Penso que, se vêm por uma galera, quando entrarem na zona de calmaria irão baixar as velas e usar os remos para se aproximar, chegarão em pouco tempo – analisou o contramestre. – Mas por que um pequeno nobre viria tão longe atrás de nós?

- Raios! Abordamos dois navios naquelas águas! Demos motivos de sobra para que vários nobres, não só de Rokor, mas de toda Levânia, nos perseguissem! - Terminou a frase com uma gargalhada orgulhosa.

Imediatamente após rir alto, o capitão se pôs sério, segurou a ponta de seu longo e espesso bigode, e se dirigiu ao meio-elfo num tom sereno:

- Poupe este olhar preocupado e diga- me o que pensas.

- Tem outra coisa me incomodando... É raro sermos encurralados desta maneira...

- Trovões! Tratemos disso depois. Agora, foco na batalha. – O capitão virou- se para a popa e gritou – Sem-sorte, o que sabe sobre o senhor de Asturis?!

Logo atrás da carranca de madeira em forma de caveira de raposa, respondeu Auril:

- Se chama Dinael, o conheci quando criança. Família orgulhosa e muito antiga, porém perdeu prestígio e poder durante a invasão demonista, e agora é quase desconhecida. Não deve estar na embarcação, pois tem muitos negócios a tratar, mas seu contingente é leal. Ouvi que magos têm acesso à sua biblioteca, falam do orgulho do passado, infortúnio no presente e renascimento no futuro.

- Presente, passado e futuro – Murmurou Lucius.

- Guardamos tudo que era inflamável, todos já estão armados e em seus postos! – Gritou Alfagor, exímio espadachim.

Lucius suspirou:

- Pena que não podemos guardar a madeira... Muito bem, quase nos pegaram de surpresa, Sem-sorte, sua deixa!

Pé- pequeno que acompanhava tudo atentamente olhou para Auril que, radiante, gritou:

- Baratas marinhas se aproximam e querem nos abordar! Vamos deixá-las ilesas?

A resposta veio em coro:

- Não! Vamos esmagá-las!

Auril continuou:

- Relaxaremos um só instante antes de se arrependerem de terem nos provocado?

- Não!

Junto com as respostas Pé-pequeno sentiu a tensão no ar subir vertiginosamente, sua atenção pareceu redobrada. Nesse momento, Auril encerrou gritando:

- Não pararemos até que chorem e peçam perdão a Cambú, pois lutar contra o Raposa Escarlate é um péssimo negócio!

Mal tinha terminado o discurso, quando se escutou um zunido de flechas. Na primeira saraivada a maioria dos projeteis vinham com fogo nas pontas, caindo no convés. Os tripulantes estavam recuados e protegidos graças à experiência de Lucius. Também estavam com grandes tinas de água, algumas prontas para serem chutadas e outras para serem usadas em casos extremos. Assim, ninguém saiu ferido e parte do fogo foi apagada.

Logo depois das primeiras flechas já vinha uma segunda saraivada, já sem chamas, e a terceira. E junto com as flechas, ganchos amarrados em cordas se prendiam e fincavam na lateral do barco, por onde os tripulantes inimigos pretendiam abordar.

Devido à chuva de flechas, não foi possível impedir que o barco de Levânia atracasse no Raposa Escarlate. Porém, o nível do convés do navio pirata era quase um metro mais alto que o da galera, o que impediu uma abordagem imediata. Somado a isso, a velocidade de resposta da tripulação pirata não permitiu que os soldados invasores agissem primeiro, dificultando um avanço inicial. Tal como Pé- pequeno, todos fizeram uma linha que definiu a fronteira entre os invasores e os abordados. Estes últimos estavam lutando com o discurso de Auril ecoando em seus corações, motivando-os por dentro. O guerreiro de Verrogar percebeu que, de maneira muito mais fácil que o comum, se concentrava em antecipar o movimento de todos àqueles que ousavam invadir o navio, fazendo-os recuar.

- Por Blator! Fazia tempo que não encontrava tamanha satisfação em batalha! - Gritou Pé-pequeno entusiasmado.

Sua espada era rápida, assim como as de seus companheiros. Desta maneira não havia brecha para que os soldados pudessem passar.

No entanto, veio a resposta ao contra- ataque: de forma inesperada caíram do céu línguas de fogo, como feixes cruzando a linha dos piratas. Estes foram obrigados a dispersar e tiveram que recuar para se recompor, o que permitiu a entrada do inimigo e a quebra da formação em linha.

Os soldados avançaram com valentia contra os piratas. O tilintar das espadas era incessante. Um soldado investiu de maneira tão violenta contra Pé-pequeno, que este teve uma única oportunidade para aparar o golpe. Seu sucesso foi minimizado quando outro soldado o acertou pelo flanco, diretamente no couro de sua armadura. A dor no seu ego e do impacto foi igualmente penosa.

Visivelmente, a batalha se tornou mais intensa e difícil. Os invasores quebraram a linha que impedia a abordagem e se dispersaram no convés. E, ao mesmo tempo que estavam em maioria, não se importavam nos danos que causavam ao barco. De fato, a armadilha estava bem montada.

No meio das lutas espalhadas, quem se destacava e inspirava os companheiros do mar a resistir era Alfagor. Era possível vê-lo lutar contra três ao mesmo tempo. As espadas dos inimigos se aproximavam de seu pescoço, porém encontravam o vazio. A velocidade com que respondia aos ataques também era surpreendente. Em um movimento aplicou três golpes, acertando três soldados, um deles teve que recuar e ser substituído por outro a fim de manter o cerco ao espadachim. Pé-pequeno imaginou que se existisse um quarto soldado cercando-o, esse também não escaparia.

Mas a esperança de uma batalha minimamente equilibrada se desfez quando uma figura vestindo uma túnica roxa, flutuando acima da galera na altura do convés, apontou o dedo para Alfagor, disparando um relâmpago. O pirata saltou para evitar o raio, que lhe atingiu de raspão, somente por conta de sua grande agilidade. Recuou e acabou ao lado de Pé-pequeno. Os soldados correram para cercá-lo, e junto com ele, cercaram também o verrogari.

O espadachim mal tinha se recuperado e voltado à batalha, eis que mais uma chuva de flamas despencou sobre os melhores lutadores dos piratas. Neste momento Alfagor foi atingido em cheio.

Ao olhar o espadachim, Pé-pequeno percebeu um pequeno filete de sangue saindo de sua boca. Não era só ele, mas todos estavam se exaurindo. Parecia que Cruine havia posto seus olhos sobre a tripulação do Raposa Escarlate, quando, de repente, veio um grito de cima, no meio do mastro principal:

- Preguiçosos! Qual é o seu estandarte?!

Alfagor, antes sério, sorriu, limpou o sangue da boca e, ao mesmo tempo que atacou, gritou junto com toda a tripulação:

- A bandeira do Raposa Escarlate!

Auril bradou em resposta:

- E qual é seu único dever?!

A réplica veio mais forte:

- Ser livre e lutar até vencer!

Ao presenciar aquela cena, o coração de Pé-pequeno se encheu de bravura e confiança. Não só ele como toda a tripulação avançou contra o inimigo com mais ferocidade.

Quanto a Auril, esta segurou com firmeza uma corda presa à verga mais alta do mastro principal e se lançou como um pêndulo, ao estilo dos trapezistas circenses. No momento do balanço em que a corda parou para retornar, a barda pulou com um mortal caindo dentro da galera, ao lado do mago.

Os piratas observaram atônitos os movimentos inconsequentes de sua carpinteira. Da mesma forma, os soldados que restavam na galera ficaram surpresos, pois não esperavam uma invasão tão ousada.

Auril respirou fundo: “Por Plandis, deu certo!” Mas o alívio de ter aterrissado ilesa foi- se junto com o ataque de dois soldados que, mesmo não acertando diretamente, lhe fizeram suar. Ao mesmo tempo, o perigo aumentou quando o místico apontou em sua direção o mesmo dedo que quase matou Alfagor. Mas, devido ao susto, o ataque precipitado do mago não lhe deu espaço para conjurar o feitiço corretamente. E, tal como um amador, um relâmpago explodiu na sua frente dando a oportunidade para Auril atacar.

Com seu gládio, a barda acertou o quadril do mago sabendo que atingiu a carne. O místico, então, recuou gritando de dor e certamente incapacitado de realizar magia por um espaço de tempo.

Do convés pirata, em plena luta, Azverel acompanhou a falha do mago e o acerto de sua esposa. Com um misto de preocupação e alivio em seu semblante, pensou em voz alta:

- Cruine deve te achar intragável...

Neste momento, a retaguarda dos soldados se deu conta da gravidade do ocorrido e Auril se viu cercada por oito guerreiros levas, inclusive por aquele que parecia ser seu comandante. Ela inesperadamente levantou os braços gritando “Não me façam mal, não sou inimiga, só estou protegendo meu barco.” Para o espanto de Pé-pequeno, como bom guerreiro que é, percebeu que os guardas mudaram seu espírito de luta, esqueceram-se de seus deveres e confusamente consideraram o argumento de Auril. Esta, por sua vez, continuou a falar com os antigos inimigos, “Por favor, amigos, ajudem- me a gritar para meus camaradas!” E iniciou a gritar: “recuar, recuar!”.

Os novos amigos fizeram coro com ela. Os soldados invasores, que estavam concentrados na batalha e de costas para a galera, entenderam como uma voz de comando e começaram a recuar. Os piratas, liderados por Lucius, aproveitaram o movimento dos soldados para fechar o avanço e forçar o recuo, de maneira que a volta não era mais possível. Ao mesmo tempo que os combatentes tentavam entender o motivo do recuo inesperado, os oito novos amigos tentavam explicar que "ela estava protegendo o barco e deviam ajudar”. Antes que os soldados dessem por conta, Auril, em um salto digno de acrobata, pulou para cima do convés do Raposa Escarlate. Por sua vez, a tripulação pirata antecipou a reação dos soldados, cortando as cordas que prendiam a galera à caravela. Porteval e Cicatriz conseguiram controlar o fogo que ainda queimava no convés. Lucius, se dirigiu aos soldados de Levânia:

- Melhor não pensar em voltar, seus porcos marinhos!

Auril, por sua vez, completou:

- Por, Cambu! Propomos uma trégua! Ambos nos retiraremos e cuidaremos de nossos feridos. Eu pergunto a vocês: se não há certeza de vitória, por que arriscar?

Dado o fiasco da última manobra, a moral dos soldados de Asturis diminuiu consideravelmente. Eis que o Mago gritou de dentro:

- Aceitem a trégua! Mas nós voltaremos, por Crisagom!

- E nós não estaremos esperando, por Plandis! – Replicou Azverel, que fez a tripulação pirata rir.

Depois dos piratas entregarem à tripulação da galera os soldados caídos e incapacitados de se mover, esta partiu remando.

- Lembranças ao rato Dinael! – gritou Lucius, e completou – Cães! Não há folga! Cuidem dos feridos e arrumem essa bagunça. Azverel! Na minha cabine!

Não era comum a tripulação invejar a posição de Azverel. Ser contramestre traz imensas responsabilidades e trabalhos burocráticos, tais como organizar e garantir os mantimentos para a viagem planejada e mesmo contabilizar e dividir o botim. Caso houvesse algum erro, a punição era severa. E Lucius era implacável mesmo com seu braço direito. Mas, dado o trabalho pesado que aguardavam, esta era uma das poucas vezes que desejavam ocupar a posição dele.

***


Já haviam passado quase duas horas depois da batalha, o vento começara a soprar. Dentro da cabine, o capitão Lucius estava de pé olhando o ondular do mar pela janela, fumando seu charuto com ar contemplativo. “Em alguma das últimas paradas, o cão sarnento deve ter feito contato com o rato de Asturis e indicado a nossa rota”, refletiu o capitão do Raposa Escarlate. “Certamente soube de algo na nossa última pilhagem que nós não sabemos.” Os pensamentos começam a se encadear em uma roda lógica, “Maldição! Somente do topo do mastro que se perceberia mais claramente a zona enfeitiçada.” Depois de um tempo pensando, encerrou o raciocínio falando em voz alta:

- Raios! Pela primeira vez temo pelo Raposa Escarlate. Plandis queira que esteja errado!

Azverel, que acabava de entrar, respondeu:

- Por Palier, nunca deseje tal coisa! Como confiaremos no senhor?

Lucius se virou para a porta com um olhar de indagação, e Azverel não o deixou sem resposta:

- Procurei segundo suas instruções, e encontrei isto que não bate na lista.

O rosto do capitão tomou um ar triste e sombrio, voltando-se para o seu imediato disse impaciente:

- Vamos. Vamos acabar logo com isso. – Saindo da cabine, gritou no convés: – Ainda não é hora de descansar, seus corvos! Reúnam-se!

Lucius estava muito sério.

- Pé-pequeno, narre os últimos eventos!

- Capitão! Nós fomos pegos por uma magia...

- Não fomos pegos por uma magia, molúsculo de praia! Nós entramos em uma região afetada por uma magia e estacionamos lá! E quando o barco inimigo foi avistado, onde você estava?

- No convés.

- No convés, raios! E onde deveria estar?

- No mastro principal.

A resposta fez a tensão da tripulação subir.

- Mas, capitão, a água tinha acabado e ...

- Não interessa! Esse ato irresponsável quase custou nossas vidas!

Todos permaneciam em silêncio. E o capitão continuou:

- Como anteciparam a nossa rota? E não foi conveniente que você não percebesse a magia e não estivesse no mastro principal?

- Capitão, juro por Blator que...

- Não me interessam suas juras, mas os fatos.

Pé-pequeno suava frio. A tripulação esperava a conclusão do capitão.

- Tiro-certo!

Ebirom, chamado de Tiro-certo e nascido em Saravosssa, era o melhor arqueiro da tripulação, e fazia jus ao apelido.

- Sim, capitão!

- Você trouxe este cão verrogari aqui, deixei-o na sua tutela e você estava alternando com ele no mastro principal!

- Sim, senhor!

- Então, você dirá qual punição darei a ele e a você!

Era costume do capitão Lucius fazer com que a sua tripulação assumisse a responsabilidade de seus atos, anunciando sua própria penitência. Se fosse demasiado branda, o tripulante ficaria com a moral baixa diante da tripulação. E o capitão avaliaria a vontade deste de pertencer ao Raposa Escarlate.

- A ele, por traição, a morte! A mim, por falta, 50 chicotadas e três dias sem comida!

- Mas sou inocente! Por Blator! – Pé-pequeno, olhava desconsolado para seus companheiros.

- Cão, não interessam suas súplicas! Terás como castigo 50 chicotadas e três dias sem comida! E você, Ebirom, verá o rosto de Cruine antes de toda a tripulação!

Pé-pequeno calou, mas não por se conformar, mas por pensar não ter ouvido direito.

- Capitão?! – gritou Tiro-certo.

No mesmo momento, Ebirom foi imobilizado por Azverel. Lucius olhou para o arqueiro com um misto de raiva e indignação:

- Seu verme! Você acusou Pé-pequeno de traidor antes mesmo de mim! Você contratou o filhote de terra firme para ser o bode expiatório! Você, verme marinho, deixou a água do balde para acabar!

- Isso é loucura, por Selimon! - Respondeu Tiro-certo com voz desesperada.

- Seria, seu porco, diga agora qual a origem deste anel que estava na suas posses!

Alfagor espantou-se:

- É o mesmo anel usado pelo mago!

- Faz parte da coleção de Asturis! – disse Auril com surpresa – existem apenas 5 iguais a este!

Toda a tripulação olhou embasbacada para o tesouro em forma de anel. Lucius estava vermelho:

- Traidor! Covarde! Parasita do Mar! – lhe faltavam adjetivos para chamar Tiro- certo. – Não será morto por nenhum de nós! Não terá essa honra! Andará na prancha!

Não havia mais o que fazer. Tiro- certo olhou nos olhos de seus antigos camaradas e começou a chorar. A soluçar de tanto chorar. As lágrimas do sentenciado eram a única coisa que quebravam o silêncio fúnebre que tomou o barco enquanto Azverel encaminhava o arqueiro com as mãos amarradas para a prancha. Pé-pequeno não sabia como se sentir, triste, aliviado, ofendido, traído, admirado. Talvez tudo de uma vez.

- Que Ganis aceite seu corpo e Cruine a sua alma.

O barulho do corpo caindo na água pôs fim ao pranto. E o silêncio perdurou por muito tempo.

Finalmente Lucius falou:

- Tomemos como lição. Não sintam raiva e nem pena, nosso companheiro Tiro- certo foi morto por Ebirom quando decidiu nos trair.

Terminando essa frase e com um rosto carregado, se virou para a cabine e deu a ordem:

- Zarpemos para Calco! Entregaremos os pertences de Tiro- certo aos familiares mais próximos.

Alguns notaram algo como um choro contido na voz do capitão, que antes de entrar em sua cabine levantou sua espada e gritou:

– Cães! Àqueles que estiverem insatisfeitos com o caminho escolhido pelo Raposa Escarlate devem nos abandonar na próxima ancoragem. Aos que ficarem: liberdade, aventuras, tesouros e disciplina!



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