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A Cura .

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por Bruno Machado



Já estava escurecendo e Mina caminhava a passos acelerados pelas ruas de Franges. Com cerca de um décimo de sua população anterior, a cidade era apenas uma sombra do que costumava ser. Suas praças e ruas, entregues aos ratos e cachorros que se alimentavam dos corpos deixados pela peste, fediam a morte e decomposição. A jovem elfa dourada não podia deixar de sentir um peso em seu coração ao perceber o quanto aquela cidade havia decaído.

Passou pelo largo do meio-dia, uma pequena praça que recebera esse nome por causa das festas que ali aconteciam diariamente, sempre ao meio-dia. Mina lembrava-se de quando era mais jovem – sim, mais jovem, pois ela tinha meros 30 verões, tendo praticamente acabado de sair da adolescência para os padrões élficos – quando costumava frequentar aquela praça e assistir aos bardos fazendo suas apresentações.

Fora lá que ela tomara sua primeira taça de vinho, seu pai havia lhe dado permissão para tomar um gole, no seu aniversário de 20 anos. Fora lá que ela dera seu primeiro beijo, aos 16, com um jovem e belo meio-elfo. Para ela aquilo havia sido apenas uma brincadeira, mas o rapaz se apaixonara e acabara por pintar um retrato dela. Até hoje ela tinha aquele retrato sobre a sua mesa de estudos.

Nada disso restava. Toda a beleza de Franges havia ido embora, sendo substituída pelo que só podia ser descrito como uma verdadeira visão do inferno. Em vez de música havia o gemidos dos doentes, seus corpos cobertos por manchas negras, sangue escorrendo por diversas feridas. Os mortos eram deixados onde caíam, numerosos demais para serem coletados.

- Por favor, me ajude. – Mina tremeu de agonia quando um dos doentes, um velho humano de cabelos cinzas e manto marrom, esbarrou nela. Não que ela tivesse medo de ser contaminada pela doença, pois até aquele momento, a peste não havia afetado nenhum elfo. Porém o cheiro de morte a deixava enojada.

Além disso, ela precisava chegar logo em casa. Seu pai e mentor, Aldriano, a havia enviado ao mercado para comprar alguns ingredientes necessários para seus estudos mágicos. Ele estava no meio de um experimento importante e Mina sabia que seu professor não gostava de ser deixado esperando.

Seus instintos disseram-lhe que algo estava errado e ela saltou antes mesmo de perceber o que estava acontecendo. O senhor virou-se para ela e apontou-lhe uma varinha. O raio elétrico passou a centímetros do peito de Mina, errando-a por pouco.

Sem nem pensar a elfa murmurou suas palavras de poder e arremessou uma bola de fogo na direção de seu atacante. Mina nem precisou esperar a magia atingir o alvo para perceber que algo estava errado. O inimigo não fizera esforço para evitar o golpe, recebendo a bola de fogo no meio do peito como se não fosse nada.

Em vez de pegar fogo e soltar um grito de dor o velho transformou-se em uma nuvem de fumaça dispersa que desapareceu em menos de um segundo.

“Droga, era uma réplica mágica”. Foi tudo que Mina foi capaz de pensar antes de desmaiar com uma paulada na cabeça.

* * *


Há menos de um ano Larko estivera pronto para deixar o terror de Franges para trás. Junto com sua esposa, Delina, e seu filho que estava por nascer, eles iriam para Calisto, longe da peste, construir uma nova vida.

Porém o destino tinha outros planos e, na véspera de sua partida, Delina fora contaminada pela peste. Larko dedicou os meses seguintes à busca de uma cura, procurando pelas mais raras ervas e plantas, mas tudo fora em vão. Dois meses depois sua esposa estava morta, bem como seu filho.

Com 32 verões, ele era um homem baixo, porém atarracado, com corpo forte e bem definido. Larko era um dos poucos humanos restantes na cidade. Seus amigos haviam ido embora, sua família havia ido embora e o rastreador sabia que, se não fosse embora em breve, a peste invariavelmente acabaria com ele.

“Deixe que ela venha” ele pensava com indiferença. “Assim, poderei rever Delina”. Mas a peste insistia em não vir e, dia após dia, Larko sobrevivia realizando missões de escolta, caça ou qualquer coisa do tipo para quem estivesse disposto a pagar. De uns tempos para cá as missões se tornavam cada vez menos frequentes.

- Você se chama Larko? – Uma figura sentou-se à mesa em que o rastreador estava apreciando seu jantar.

Larko levantou seu olhar e percebeu tratar-se de um elfo dourado. Suas vestes, um folgado manto laranja com bordados roxos, o identificavam como um mago. Era impossível tentar estimar sua idade, levando em conta que um elfo adulto pode manter a mesma aparência dos seus 30 aos 800 anos. Tinha uma expressão preocupada no rosto.

- Quem pergunta? – Foi sua resposta.

- Me chamo Aldriano e estou precisando contratar um rastreador. – O elfo respondeu. – Ouvi dizer que você é o cara para o trabalho.

- Você ouviu certo, orelhas pontudas. – Larko terminou seu jantar, empurrando o prato para o lado. – Então, o que você precisa? Cogumelos da Navalha?

Larko não se incomodava por ser abordado por magos. Em sua grande maioria as missões consistiam em ir até algum lugar inexplorável e caçar ou coletar algum ingrediente mágico qualquer que os magos eram covardes ou preguiçosos demais para pegar por si próprios.

Aldriano balançou a cabeça, escolhendo desconsiderar a insolência do rastreador. – É Mina, a minha pupila. Ela desapareceu. Preciso que você a encontre.

“Isso parece interessante.” Larko pensou para si, levantando uma sobrancelha. – Quando você a viu pela última vez?

- Eu a enviei para o mercado, comprar alguns... – Ele hesitou –... Cogumelos da Navalha,... – Larko sorriu –... E ela não voltou. Tentei usar magias de localização, sem sucesso. Achei que talvez um bom rastreador pudesse encontrá-la.

- Claro que posso. – Larko respondeu.

- Qual o seu preço? – Aldriano perguntou, tirando uma sacola de dinheiro de suas vestes.

- Você pode começar pagando pelo meu jantar.

* * *


Mina acordou em uma sala escura, sua cabeça doía...

Estava deitada em uma superfície gelada com as mãos e os pés amarrados. Logo sua visão iria se acostumar com o ambiente. Sua cabeça estava leve...

Como se estivesse dopada... Tentou murmurar algumas palavras mágicas, Não conseguiu...

- Não adianta. – ouviu uma voz. Era a coisa mais repugnante que ela já havia ouvido. Era a voz de um homem velho... Um homem morto...

- Tem uma aura de anulação mística.

Ela sentia-se fraca, sua visão finalmente se acostumou à escuridão...

E o que viu a fez gritar de horror.

* * *


Larko ajoelhou-se diante do corpo chamuscado. Ele havia percorrido todo o caminho entre a casa de Aldriano e o mercado e, até aquele momento, não havia encontrado nada demais. Havia corpos espalhados por todos os lados e a cidade fedia a sangue e morte, nada demais.

O cheiro de carne queimada, porém, era novo. Larko remexeu um pouco os corpos, observando os padrões e notou que havia um círculo quase perfeito de queimaduras nos corpos espalhados pelo chão. “Fogo mágico.” Não havia dúvida.

Fazia sentido, afinal Aldriano havia dito que Mina era uma maga elemental. Qualquer pessoa que viveu por Franges tempo o suficiente sabia o que os estudiosos desse colégio de magia eram capazes de fazer.

Olhou em volta, procurando por quaisquer pistas que pudesse seguir. A quantidade excessiva de corpos espalhados pelo chão tornava quase impossível a tarefa de rastrear alguma coisa.

- Droga. – Larko comentou consigo mesmo enquanto tirava um punhado de pelos de lobo de seu bolso. – Eu preferia não ter que fazer isso. Ele levou os pelos até seu nariz e inalou. Quase desmaiou quando o cheio de sangue, morte e decomposição dominavam o seu olfato, agora maximizado pela magia.

O rastreador se controlou e, depois de certificar-se de que não iria vomitar, cheirou a camisa vermelha que estava carregando. Mais cedo havia solicitado que Aldriano lhe desse alguma peça de roupa recentemente usada por Mina.

“Lírios.” O rastreador identificou o cheiro rapidamente. Mina usava um perfume feito de essência de lírios.

Larko farejou em volta e logo encontrou o cheiro. O aroma do perfume, geralmente sutil, se destacava como uma unha encravada entre o fedor daquela cidade. Soltando um grito de triunfo, que se assemelhava a um uivo, Larko seguiu o cheiro com passos acelerados.

* * *


O rastro levou Larko até uma mansão não muito longe dali. A casa tinha primeiro andar e, o que um dia fora um muro branco agora estava coberto de plantas mal cuidadas e assumia uma coloração amarelada. O grande portão de ferro, enferrujado e retorcido, permanecia fechado, mas o rastreador conseguiu passar com tranquilidade por uma parte do muro que havia sido derrubada.

A casa em si estava completamente barricada. Quando a peste tomou conta de Franges, muitos de seus moradores ficaram desesperados e começaram a saquear as casas em busca de qualquer coisa que pudessem roubar para comprar falsas curas. Por consequência, fazer barricadas em suas residências passou a ser algo comum, principalmente nos bairros mais nobres da cidade.

Aquilo não estava certo. Larko tinha certeza que o aroma de Mina passava por ali, então devia haver alguma entrada. Porém, depois de olhar rapidamente, sabia que as portas estavam todas barricadas. Provavelmente haveria algum tipo de mecanismo ou passagem secreta que desse acesso ao interior, mas o rastreador temia pela jovem elfa e sabia que não teria tempo para procurar com cuidado.

Mais acima, no primeiro andar da casa, havia uma janela que não estava bloqueada. Larko se afastou para pegar impulso e, depois de uma breve corrida, saltou e segurou-se na bancada pouco mais acima. Puxou seu corpo para cima e, em alguns segundos, estava se espremendo pela pequena janela que levava até um sótão empoeirado.

Larko colocou uma flecha na corda de seu arco e, com passos silenciosos, começou a explorar a casa. No primeiro andar havia alguns quartos, uma biblioteca abandonada e um banheiro. Não havia ninguém à vista e nenhum vestígio do perfume de lírios de Mina. Por isso, o rastreador decidiu descer para o térreo.

- Sabe o que eu acho? – Larko ouviu a voz antes mesmo de avistar qualquer coisa. Era uma voz masculina, porém bem alterada pelo tempo. O dono da voz era, provavelmente, um idoso.

- É claro que eu sei. – Apesar de vir de uma fonte diferente, a segunda voz era idêntica à primeira e, por uma fração de segundo, Larko imaginou se não era a mesma pessoa falando.

- Como você pode saber? – A primeira voz perguntou.

Alguns passos depois Larko avistou a sala principal da casa. Havia dois homens lá. Ou melhor, o mesmo homem duas vezes. Ambos tinham os mesmos cabelos cinzas, a mesma pele velha, enrugada e coberta por manchas negras, sintomas da peste que assolava todo o reino. E o mesmo manto marrom, sujo e comido pelas traças. Eles eram, para todos os efeitos, a mesma pessoa.

- Eu sei por que eu sou você. – O segundo velho, o da direita, respondeu. – Nós temos a mesma mente e a mesma consciência, esqueceu?

Larko atirou duas flechas em rápida sucessão, acertando ambos os homens no meio do peito. Ele não sabia quem eram ou se eram de fato uma ameaça. Mas eles tinham uma aparência extremamente macabra e suspeita. Além do mais, eles pareciam prestes a entrar em uma discussão filosófica sobre como eram a mesma pessoa e Larko resolveu pôr um fim naquilo antes que eles começassem.

O rastreador esperava ouvir o baque de dois corpos caindo no chão e ficou surpreso quando as duas figuras desapareceram, transformando-se em pequenas nuvens dispersas. “Magia.” Pensou. “Devia ter imaginado.”

Desceu os últimos degraus com passos rápidos, porém silenciosos e recuperou as duas flechas que haviam caído no chão, quase novas. Então deu uma checada rápida no térreo: além da sala, havia uma cozinha que cheirava à comida estragada e onde alguns ratos se mexiam. Ou, pelo menos, Larko esperava que fossem ratos.

Sentiu novamente o cheiro de lírios vindo da porta que levava para o porão. Silenciosamente abriu a porta e começou a descer os degraus.

* * *


Tendo vivido em Franges por boa parte de sua vida, e visto o estrago que a peste fazia com a população, havia muita pouca coisa capaz de deixar Larko enojado. O que ele viu ao descer no porão, entretanto, quase o fez vomitar.

Era uma espécie de laboratório, com um sem número de leitos de ferro onde estavam amarrados os corpos de vários elfos, tanto dourados quanto selvagens. Os elfos haviam sido experimentados de diferentes formas: um estava coberto de pequenos cortes e tivera seus olhos arrancados, outro – uma elfa que um dia fora muito bela – parecia uma passa seca, pois teve todo o seu sangue drenado. Em cima de uma mesa, havia um coração.

O terror daquela visão, junto com o cheiro de morte e decadência fez com que Larko fosse obrigado a dissipar sua magia, para que o fedor não lhe subjugasse completamente. Aquilo não era um problema, pois, em uma mesa, havia uma bela elfa dourada de cabelos da cor da lua. A semelhança com Aldriano não deixava dúvida de que se tratava de Mina. Ela estava inconsciente e amarrada. Alguns tubos estavam enfiados em seu corpo, ligados a uma espécie de máquina que estava puxando seu sangue.

Sem hesitar, Larko se aproximou e apertou um botão vermelho que, como desconfiava, desligou a máquina. Então segurou os tubos, pronto para removê-los da elfa.

- Você não...

Antes mesmo que o velho tivesse a chance de terminar sua frase, Larko mirou e atirou com o arco, acertando-o no peito. Por um segundo, o velho de manto marrom o encarou, incrédulo, e transformou-se em uma nuvem com um leve puff.

Era outra réplica mágica! Larko mal teve tempo de processar essa informação quando sentiu uma corrente elétrica correr por todo seu corpo. Um raio mágico o havia acertado nas costas e jogara-o para frente. Ele caiu de joelhos no chão, seu arco sendo jogado para longe.

- Que falta de educação. – Larko ouviu quando levantou a cabeça e olhou para o mago que o havia acertado com o raio e se aproximava.

- Nem deixou eu terminar a frase. – Um segundo mago, idêntico a todos os outros, completou.

Larko olhou para seu arco. Se fosse rápido o suficiente e saltasse, talvez conseguiria...

- Nem pense nisso. – Um terceiro mago chutou seu arco para de baixo de um dos leitos. – Você não é rápido o bastante.

Um quarto mago saiu de trás de uma cortina. – E, mesmo que recuperasse seu arco, em qual de nós você atiraria?

Quinto, sexto e sétimo magos apareceram dos diversos cantos cobertos de sombras naquele porão sombrio. Era verdade, havia muitos deles e Larko não tinha chance de derrotar todos. Estava cercado e perdido.

- Por que você está fazendo isso? – A única chance que ele tinha era enrolar, até que pudesse pensar em algum plano de ação.

- Você não entende? – Um dos magos começou.

- O sangue deles é o segredo. – Outro disse.

- É por isso que eles são imunes à peste. – Prosseguiu mais um.

- No sangue deles está a cura. – O primeiro mago a falar concluiu.

- Você não me parece curado. – Apesar dos espasmos que seus músculos sofriam por conta da eletricidade, Larko esforçou-se para soltar um riso de escárnio.

- É só uma questão de tempo.

- O sangue é cheio de segredos.

- Mas estou muito perto.

Um dos magos se aproximou, sua mão esquerda levantada com uma nova magia preparada.

- E não posso deixar você ficar no caminho.

Alguém começou a tossir. O barulho vinha de algum lugar a sua esquerda. Larko olhou naquela direção e avistou uma cortina que dividia o porão em dois cômodos. “É claro!” O rastreador entendeu. “O mago verdadeiro não iria se revelar!”

A réplica mais próxima, que estava com uma magia preparada, disparou um novo raio, mas já era tarde demais. Com um salto Larko deu uma cambalhota por baixo de um dos leitos e, em menos de um segundo, estava do outro lado do porão. Desembainhou a faca que levava em sua bota e, com um movimento fluido, arremessou-a na direção do mago de manto marrom que se encontrava curvado no chão, sangrando pelas várias feridas que cobriam seu corpo infectado.

A faca deveria ter acertado o inimigo em cheio, porém foi interceptada por algum tipo de barreira mágica que arremessou a arma para longe.

O mago recuperou-se de seu surto de tosse e olhou para o rastreador, que ainda se encontrava agachado no chão. – Belo truque. – A barba estava coberta de sangue que escorrera de sua boca. – Mas você não pode me vencer.

Ele olhava para Larko, sua expressão era de pura fúria. Todos os magos do recinto, ao mesmo tempo, começaram a juntar energia mágica. Desarmado e encurralado, o rastreador sabia que não tinha saída. “Delina, aqui vou eu.” Fechou os olhos, pronto para o fim.

Mas o fim não veio. O mago foi tomado por uma nova onda de tosse e perdeu sua concentração. Ele caiu novamente no chão, sangrando por suas feridas e soltando gemidos agonizantes. Isso se estendeu por alguns segundos, até que ele finalmente parou.

Ao mesmo tempo, todas as réplicas viraram nuvens: o mago estava morto.

* * *


- Como você está? – Aldriano perguntou assim que Mina abriu os olhos. A elfa ainda estava fraca e sua cabeça doía um pouco, mas ela sentia que ia ficar bem.

- O quê...?

- Não faça esforço. – Seu pai interrompeu. – Você ainda está fraca, precisa se recuperar. Mas está segura. Acabou.

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Crônicas de Tagmar-volume 2

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