O corredor de pedra parecia, por algum motivo, gigantesco. Um trajeto feito centenas de vezes estava demorando uma eternidade. Seria a ansiedade pela cerimônia ou quem sabe o medo do que estaria por vir?
Laurana se concentrava no seu ensinamento e na honra de servir a sua divindade.
A câmara ritual onde dezenas de hereges foram sacrificadas nos rituais de purificação a Ricutatis, era agora o palco de um nascimento. A dama de bronze usada somente pelos Dux Bankdi estava posicionada no centro e os demais membros da casa preenchiam o espaço a sua volta em um transe mantido pelos seus cânticos profanos.
Laurana foi despida e os demais membros da casa puderam ver seu belíssimo corpo e as pequenas marcas, cicatrizes discretas, de rituais passados. O Dux Bankdi que comandava a cerimônia a colocou dentro da Dama de Cobre e os cânticos aumentaram em intensidade e velocidade. A tampa lentamente começou a se fechar e Laurana percebeu as pontas perfurantes se aproximando. Também lentamente, começaram a entrar em sua carne e a dor tomou a sua consciência.
Laurana começou a recitar as palavras sagradas do ritual místico usando todo o conhecimento que tinha para transformar a dor que sentia em poder. De dentro da Dama de cobre, viu o mundo se fechando lentamente até o último facho de luz desaparecer por completo. Presa pelas pontas, lentamente a dor desapareceu e a escuridão a engoliu, quando já estava quase desmaiando, uma voz surgiu da escuridão:
- Você, serva de Ricutatis, está pronta para o poder, para a mudança?
- Sim! - respondeu ela de todo o coração
Algo pareceu voar em sua direção, até sentiu sua aproximação. Foi aí que pôde admirar Vinega, a filha de Ricutatis. Ela a examinava cuidadosamente.
- Sim, meu mestre, este corpo me agrada.
Laurana sentiu um frio e sua alma foi tragada para o reino de Ricutatis. Vinega entrou na veste de carne e, tão lentamente quanto fechou, a Dama de Cobre começou a se abrir.
A câmara estava cheia de adoradores demonistas que a saudavam efusivamente, enquanto viam-na, sua senhora, sair da Dama de Cobre.
- Todos vocês venham saudar a filha do mestre, aquela que nos levará novamente ao poder e a glória.
Extraído de "O Livro de Maudi", do capítulo “O Nascimento”, Biblioteca de Saravossa.
Ricutatis, à primeira vista, faz o inferno parecer uma festa de prazeres numa casa de banhos quentes. Seres que por ele desfilam transbordam em receptividade. Belíssimos íncubus tentam mostrar os caminhos das dependências do castelo. Corcéis demoníacos enfeitam os jardins de margaridas-vinho, que brotam mesmo quando são pisoteadas. Mesmo um miserável Demônio menor tem comportamentos dignos de seres nobres. Muitos membros da Seita mesmo já tiveram essas visões em vida e não podem imaginar o que os deuses teriam de melhor para oferecer nos palácios celestiais.
Toda essa maravilhosa visão começa a desaparecer quando se aperta num gentil cumprimento as mãos do anfitrião com seu sorriso cativante, num primeiro gole de vinho, num bailar com Vinega, refinada dançarina e primorosa súcubo de asas de águia.
Tudo parece ótimo nas conversas povoadas de deliciosas gargalhadas, mas começa-se, aos poucos, a perceber o quanto é repetitivo. Deseja-se parar, mas não consegue. Mesmo com o passar do tempo que, aliás, é desconhecido nesta dimensão sinistra, mas que se poderia jurar que eram a poucos segundos atrás.
Sente-se o chão ficar mais quente a seus pés. Seriam os vapores vulcânicos das tão faladas lendas das histórias de pesadelos? A pobre alma não percebe que é seu corpo, tão frio que mesmo o mármore demoníaco daquele palácio de belezas já soa quente. Você está morto, mais morto que qualquer miserável alma caída em qualquer porta do inferno mais maldito. Mas assim é a morte da alma. O vazio toma conta mais rápido que a razão pode perceber. Lentamente sua vontade lhe é tomada. E o olho do anfitrião brilha mais uma vez, pois uma fagulha de vida mais uma vez se apaga nos domínios do inferno de Ricutatis.
Ricutatis representa dor, ferimento da alma, agonia, tormento, sofrimento, decepção, tortura. Ele sorri para os tiranos e aplaude quando algo é oprimido. De todos os mortos vivos há um que representa sua natureza e objetivo, o vampiro. Estes são seu maior orgulho, pois tal como Ricutatis, têm suas existências vazias pela eternidade.
Ricutatis é o senhor da morte da alma. Ele remove toda a vida que um dia poderia ter habitado uma carcaça. Tudo que resta é uma poluição de tristeza e vazio que pouco poderia ter a chance de recuperação. Afinal, o mais vazio dos vazios precisa se encher, que seja por um instante, com a luz dos outros. Ele preenche a vida dos seres de desespero e abandono espiritual.
Sua beleza só é superada pela sua crueldade e poder, sendo a segunda criatura mais poderosa deste reino.
As cicatrizes são vistas como presentes a Ricutatis, um sacrifício de sofrimento.
A máscara da Infâmia: são máscaras feitas de ferro que mais se assemelham a uma gaiola, onde olhos, nariz, orelha e língua são castigados juntos ou separados. A cabeça fica dentro da máscara e sob influência do demonista. A máscara foi criada com o intuito de escravizar todo aquele que usa, ficando sob controle da casa de Ricutatis.
A cidade é conhecida como Farzelo. Os recém-chegados são recebidos graciosamente por Simonio, o guardião da cidadela. Este logo conduz os visitantes em “passeio” pela bela e encantadora cidade, com ruas limpas, prédios novos e bonitos. Todos são levados para o palacete de Ricutatis que sempre oferece uma grandiosa festa de “boas-vindas”. Porém, como em tudo que Ricutatis faz, não tarda a máscara a cair, e os desafortunados logo descobrem que por trás das belas fachadas se escondem os horrores deste príncipe demônio. Seus calabouços são tão tenebrosos que não há palavras para descrever tamanhas atrocidades que se passam neles. Com certeza Farzelo é o pior local que uma pobre alma pode ter como destino.
O salário era bom. Na verdade, acima da média dos demais trabalhadores locais e o respeito entre os demais servos era inquestionável, mas a ambição falou mais alto e, para conseguir alcançar um cargo maior, sabia que deveria se livrar de seu superior.
Contratou assassinos que mataram seu desafeto e logo foi promovido a grande mestre de cerimônia.
Dedicado e perfeccionista, Simonio rapidamente se transformou em um requisitado mestre de cerimônia, organizando grandes eventos e orgias para os nobres. Assim, aos 23 anos, alcançou a glória e o poder que tanto almejou. Foi também nesse período o início de sua decadência, quando viu pela primeira vez Anibele, a filha do governador da cidade. Ele o havia contratado para realizar a festa de 15 anos dela.
Foi amor à primeira vista, mas Anibele, filha de aristocratas, jamais se apaixonaria por um simples trabalhador, por mais dinheiro que tivesse. Simonio engoliu seu orgulho e coração ferido e, mesmo assim, fez da festa de Anibele a mais bela já vista na cidade.
De coração ferido, mergulhou em seu trabalho e fez uma pequena fortuna. Até que, dois anos depois, Anibele foi procurá-lo para que ele realizasse sua festa de casamento. Apesar de todo o tempo passado, o amor que sentia por Anibele ainda existia e tamanho foi o desespero em saber que o amor de sua vida se casaria com outro, que Simonio buscou nos deuses o poder para conquistar o amor que não tinha. Mas suas preces não foram atendidas.
Desesperado por perder sua amada, Simonio fez o impensável, recorreu aos príncipes infernais. Foi quando Ricutatis ofereceu sua ajuda, mas para tanto ele deveria colocar na sopa um líquido dado por um de seus seguidores.
Simonio fez conforme foi ordenado e todos na festa morreram envenenados, até mesmo seu grande amor. Tomado pelo desespero, lançou-se do alto de uma torre. Foi assim que ele foi parar em Farzelo.
Agora Simonio organiza as grandes festas de recepção para as almas dos condenados, como seu mestre ordena.