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CAPÍTULO 1 .


O balançar da carroça não era novidade. Já estava acostumado e decidira, há muito tempo, que era melhor um leve enjôo encima de longas tábuas cruzadas do que a poeira e os calos de uma árdua caminhada pelas estradas. Sabia que a condição do Templo não era muito boa naquele momento em que uma guerra passada assolara o reino. Por essa razão, não reclamara de estar ao lado de um saco de feno e ferramentas de campo. O condutor, um homem já de avançada idade chamado Ernest, mostrava sinais de grande cansaço, o que preocupava o jovem Elril.

Ainda era início de um dia que prometia ser lindo e o velho condutor já estava exausto.

— Pobre homem! — Suspirou Elril ao vento que soprava, tendo esperanças que Selimom, o Deus do amor, tornasse os últimos dias de vida daquele ancião felizes.

O velho chicoteou o cavalo que puxava a carroça e o animal trotou com mais força levando a condução à frente. Era um animal formidável, com um pêlo marrom-terra e uma listra negra repassando pela espinha dorsal. De fato, o animal era bem cuidado pelos ajudantes do Templo. Talvez fosse este o motivo pelo qual o velho condutor açoitasse o animal com chicotadas que arrancariam a pele de um homem.

A carroça seguia por uma estrada esmaltada de paralelepípedos brancos, cujos beneficiários eram, em sua maioria, os ricos comerciantes da rua principal. Encontrava-se ali, em meio a construções seculares, uma loja simples de produtos caseiros. Havia também uma outra, mais rica, mais visitada, que vendia, na voz do vendedor: “As melhores e mais afiadas lâminas desta parte do mundo...”. Uma outra loja, de cor plácida, paredes altas e uma porta escura de ferro mágico permitia a entrada de magos, sendo estes facilmente reconhecidos pelas vestimentas.

Os aldeões, preparando-se para o longo dia, olhavam sorrateiros para a carroça que levava um sacerdote de Selimom.

Tal sacerdote era Elril.

O jovem Elril, com seus 20 verões, encontrava-se de forma mais precária de que gostaria. De fato, era bonito, com uma voz suave, uma face afilada e, seu traço mais notável, um queixo bem desenhado. Seu cabelo, constantemente paparicado por uma loção de óleo vegetal para que ficasse mais escuro, apresentava um preto-profundo que realçava a pele clara. Um homem forte, em pleno vigor. Mas esses traços só vieram depois da adolescência, o que o deixava transtornado com as lembranças daquela época. Concentrando-se em como começaria seu trabalho, Elril procurou ficar mais confortável. Não era, entretanto, o local em que estava, já que o sacolejar da carroça era necessário, mas sim a missão que fora cometido a cumprir.

Acontecera que o próprio Mestre do Salão, Servilis, O Enviado, escolhera, dentre todos os sacerdotes a seu serviço, o único cujo nome não fora indicado pelos conselheiros. Seus colegas, assim que souberam do ocorrido, voltaram-se espantados para o pobre Elril, encolhido no canto do Grande Salão e mais assustado do que um Pequenino perseguido por um Gigante. Os protestos foram acolhidos por Servilis, e este, por sua vez, respondeu:

— Não há um filho de Selimom que seja rejeitado ou esquecido. Se escolho Elril para tal empreitada, é por que Selimom me guiou nessa decisão. — Foi o bastante para calar os contraditórios.

O impacto da roda com uma fenda na estrada despertou Elril de seu pensamento. Pôde ainda ouvir o velho Ernest xingar contra sua sorte por aquela fenda “... ainda deixam esses buracos que mais parecem armadilhas”. Sabia que a sorte nada era do que a vontade dos Deuses, e estes intervinham em tudo que pudessem ver.

Lembrou-se do tempo que vivera na Escola da Luz, onde se preparou para o sacerdócio. Era uma aula enfadonha sobre a História das Guerras, um assunto longo que parecia consumar até a mínima parte de suas forças. Enquanto a aula passava, o Elril de 13 verões via-se perdido em devaneios, num monte florido, repleto de girassóis compridos e uma relva macia.

— Sonhador Elril, onde você está? ? O choque das palavras penetrou fundo, até o âmago de seus tímpanos. Pondo-se de pé rapidamente, Elril ficou imóvel, como em revista por um comandante vertido de puro rancor.

— Agora, que está entre nós, responda à pergunta que Avanil, infelizmente e não me surpreendendo, não soube responder. O que é a Vitória? — O sábio professor, instruído nos mais variados pergaminhos de tantas e tantas eras atrás, esperou a resposta. Elril, sua bile quase expelida, revirou os olhos em busca de que, nos fiapos de lembranças, encontrasse a resposta para a pedra do dia. Não encontrou nenhuma.

Esperou alguns segundos para então dizer, em voz baixa, o seu argumento.

— Professor... eu posso analisar os pega... — E por aí mesmo ficou. A voz, rubra, do homem sábio de setenta e tantos anos, ecoou pela vastidão da sala.

— Não, jovem Elril, você não pode revisar seus pergaminhos, porque o que perguntei não se encontra em letras ou símbolos. Está na mente, na mente.

O professor fez uma pausa, como se para acentuar o que fosse dizer. Falou as próximas palavras como um velho doentio, cujo tormento da vida era lidar com jovens saciados de sabedoria.

— A vitória, meu caro Elril, é a sagrada mistura entre os desejos dos Deuses e dos Filhos.

A sala rapidamente saiu de foco e Elril avistou o seu destino. Bateu de leve nos ombros de Ernest e o viu virar-se para fitá-lo. Os olhos, fatigados pela idade, perguntando no sacolejar da carroça o que este queria agora.

— Aqui está bem, Ernest, pode voltar. —falou em tom bondoso, pois sabia que assim que retornasse, Ernest teria trabalho árduo a realizar.

Com uma força não demonstrada antes, Ernest puxou as rédeas e fez o cavalo, já cansado, refugar do trote.

— Claro Elril, você é jovem, pode ir caminhando. Vê se traz umas tortas e manjar para mim, certo?

Elril pulou, agradecido, da carroça. Dando uma piscadela e um sorriso de dentes amarelados, Ernest afastou-se, a fim de terminar seu trabalho. Elril, com o traseiro ardendo, viu-se disposto a percorrer o resto do caminho a pé. Antes, porém, retirou de sua mochila um espelho pequeno, emoldurado em madeira, já que metal seria mais caro. Alinhou o cabelo, sorriu para ver se os dentes estavam sujos e reprimiu as grandes rugas em sua face, conseqüência de uma noite mal dormida. Ainda pôde ver, sob o sol nascente, o brilho esverdeado do único objeto de sua infância perdido no fundo de sua mochila: um anel de Jade.

Seus pés começaram o percurso e logo o destino foi crescendo. Ainda era estranho pare ele que Servilis o tivesse escolhido para tal façanha, quando dispunha de memoráveis clérigos, homens de honra e enorme aprovação do povo. Sabia que não poderia ser um fato de guerra, pois Elril não tinha muita experiência em batalhas ou confrontos, exceto talvez uma briga que custou o nariz, mas fora isto, não se recordava de nem uma outra. Também sabia que não poderia ser sobre estudos, pois, existiam pessoas mais instruídas do que ele. Até mesmo o seu professor de História das Guerras se encontrava vivo, quase surdo e com o juízo para lá de perdido, mas ainda assim, vivo. Então, ficava a pergunta martelando a cabeça do pobre Elril: Por que eu? Muitos pagariam com a vida para fazer este trabalho, seria uma honra e com certeza seriam recompensados com grandes elogios e, talvez, nos mais profundos pedidos, uma recompensa em ouro. Não adiantava. A resposta não vinha. Nem uma solução plausível. Teve que assumir a verdade nas vozes de seus amigos: o Mestre do Salão estava louco.

Assim que o gigantesco portão mostrou-se à frente, junto com seu implacável e sólido muro de oito metros, Elril parou. A grade era perfeita, uma mostra de grande valor do senhor que habitava estas terras.

Forjado em puro ferro-escuro, o portão era oval, afilando-se na parte de cima. A base era quadriculada em pequenos pontos, que formavam um desenho: um navio em alto mar defrontando batalha com alguma criatura serpentina. No meio, com três metros de comprimento e tanto de altura, estava, em alto relevo, um afresco de batalha, dessa vez, em terra, sendo um homem montando um versátil garanhão negro, portando uma espada e, pela cena, golpeando uma Quimera, já escarlate ao chão. O cavalo estava nas duas patas traseiras e o cavaleiro segurava firme sua arma mortal. Era uma cena espantosa, um retrato de uma luta tão antiga quanto este reino. Todos sabiam que era o período do Barão Sangrento. Em cada lateral, duas torres de vigia espremiam o portão.

— Ei, diga seu nome e por que está aqui... — Uma voz grave disse da torre esquerda.

— Ande homem, diga logo! — Vociferou outra da torre direita, sem esperar a defesa do visitante.

Normalmente Elril não precisaria se identificar, pois as vestes o deixariam claro ser um sacerdote de Selimom. No entanto, estava trajado de uma forma diferente. Vestido desse jeito diria a si mesmo que era um lorde fanfarrão: uma camisa golé alta, branca, com uma calça cinza de couro, babados esfarrapados saindo das longas mangas, um belo colar, nem de longe original e um sapato de couro de salamandra, emprestado de seu amigo Avanil. Respirou e deixou que sua voz saísse de forma calma e convincente.

— Sou Elril, sacerdote de Selimom. Vim ter com a princesa Elira. Ela me espera. — As palavras saíram acentuadas e Elril desejou lembrar-se de corrigir depois.

Assim que os guardas arrastaram o pesado conjunto de ferro e madeira, Elril avistou um caminho que se mostrava e, no final dele, um pouco distante, o Castelo das Brumas.

— Perdoe-nos. Não imaginávamos que viria tão cedo... é... Pode passar. — Apressou-se um guarda a dizer, temendo que o jovem mestre do Templo, escondido por entre babados e cetins, fosse comentar algo que prejudicasse seu cargo valioso. Se conhecesse Elril, saberia que ele nada diria futuramente.

Elril pôs-se a caminhar em direção ao Castelo das Brumas, seguindo a estrada que serpenteava de um morro amplo. Um local lindo, verdejante, com carmesins circulando as bordas da estrada, esta sendo de pequenas pedras laranjas, salpicadas de um azul-turquesa. Logo de início, pôde observar, pela direita, que um campo de girassóis mostrava-se recuado, em meio a tantas flores brancas como se estivessem nas nuvens.

Continuava seu percurso e percebia como era notável a alegria das abelhas, tendo um fundo de rosas-ígneas para se sustentarem, ou botões-de-fada, em um tom branco, separando camélias e bétulas do tapete gramado. Subindo mais, já quase perto da entrada, com as mãos suando e uma coceira na garganta, pôde ver ainda o fundo do lado esquerdo: um frondoso jardim-labirinto, com laranjeiras e macieiras enfeitando cada cantinho. Era lindo de se ver. O melhor que pôde pensar naquele momento era que tudo o que via era real. Prosseguiu o caminho e chegou ao lado de uma fonte. Era intrigante vê-la ali. Nem precisava dizer que era alta, ou que era magnífica. Não tinha peixes derramando água, nem serafins com harpas douradas, não havia sereias ou mulheres, o que havia, o que a tornava realmente diferente, era toda sua estrutura. Um homem forte, robusto, de tamanho irreal ao normal, encontrava-se em cima de um amontoado do que pareciam corpos de homens, formando uma pilha. Ao seu redor, precisamente colocado em cada um dos pontos cardeais, havia assim: pelo sul, na frente, um homem velho curvado entregava-lhe um raio; pelo oeste, na direita, um orco ajoelhado e desnudo, entregava-lhe uma espada; pelo norte, por trás, um gigante postado de joelhos entregava-lhe uma cornucópia transbordando de alimentos, e pelo leste, à esquerda, um centauro entregava-lhe um grande livro. Era, de fato, uma obra grotesca para um lugar de sonhos como este.

Elril ouviu um pigarrear de alguém que limpara a garganta próximo. Ele se voltou rápido para ver quem havia chegado tão silenciosamente para que não o percebesse.

Havia um homem alto, magricela, vestido como se fosse dia de festa. Estava claro que o homem sabia quem ele era, mas Elril não tinha a menor idéia de quem seria o suposto homem que o olhava intrigante.

— É... eu... estava observando a fonte. Bonita ela. — Apressou-se a dizer Elril, agora só vergonha.

— Sou Refal, servo da princesa Elira. Esperava que chegasse por estas horas mesmo, tendo em vista que é um acólito de Selimom. — O homem falava devagar embora Elril sentisse uma pontada de desdém em sua voz. Era calmo, de olhos fixos e de gestos simples.

— Estou pronto para servir minha princesa, mesmo sem saber do que se trata. Poderia me adiantar, meu caro? — Claro que Elril sabia. Ora, quem não sabia? Mas era um meio de ganhar mais informações e a mente de Elril ansiava por saciar suas dúvidas.

Iniciando com uma risadinha baixa, Refal disse:

— Se está aqui é porque julgaram que é competente. Minha princesa não tolera erros, você bem sabe. Acompanhe-me! — Sem protestar, Elril seguiu o homem. Pensou que iria de encontro ao portão de entrada, mas viu que Refal dirigia-se à parte esquerda do Castelo. O ponto bom foi que deu para Elril ver mais de perto o formoso jardim, com suas paredes vegetais estendendo-se por dezenas de metros. Percorreu um bom pedaço até que entrou por uma porta lateral.

A porta lateral estava aberta e eles entraram. O chão era brilhante, longo, espaçoso; cortinas coloridas cujas pontas resplandeciam em um arco-íris infinito; sinuosas tapeçarias encobriam as paredes alinhadas; quadros, jarros, escudos, brasões, enfeitavam os salões. A luz, vinda de janelas soltas bem posicionadas, dava uma tênue imagem de ilusões às salas abertas.

Parando frente a uma porta de madeira, de contornos sucintos e filetes de prata, com um desenho campestre, Refal virou-se e disse:

— Muito bem. Você irá ter com a nossa princesa. Comporte-se. Agora, vamos... Elril estava ainda escutando as últimas palavras quando Refal abriu a porta. Um lampejo de luz fez Elril proteger os olhos. Um leve perfume, doce, fez lembrá-lo dos botões-de-fada. Ele entrou. Sabia que o que viria era mera formalidade, um ato que um cavaleiro um dia a muito tempo lhe disse: “um protocolo para surdos”.

— Princesa Elira, Elril de Selimom, sob pedido de Vossa Alteza, encontra-se aqui para ter com a senhora. Refal, com toda reverência, falou como se tivesse ensaiado durante muito tempo. Limpou a garganta e olhou fixo para Elril. Os olhos agudos, envenenadores, fitando-o como um falcão à sua presa. Foi nesse momento, pôde ver Elril, que se metera em uma encrenca da qual não poderia sair. Estava feito.

Postando-se à frente, em uma reverência demasiada grande, Elril tornou a falar.

— Princesa, estou a servir vossos desejos. — Sua voz saiu calma e sem tremulações, mesmo com um nervosismo crescente no estômago.

Enquanto esperava a resposta da princesa Elira, Elril observou o seu redor. Era uma sala ampla, bem iluminada e de um cheiro bom, suave. Jarros contornados de mosaico encontravam-se em cada lateral. Um Tricílico, espécie de cadeira estofada, era cercada por seis lindas mulheres as quais tinha em si poucas roupas. No Tricílico, encostada como tinha de haver, estava ela: Elira, a futura rainha de Dantsem. Amada senhora, de beleza pura. Sua face era estreita, suas bochechas um tom rosado, motivo de enfeites. Tinha o cabelo solto, longo e preto. Sua roupa era fina, porém riquíssima, mais condizente a uma rainha. Adornada de raras jóias e pérolas, a princesa Elira era a própria jóia naquele lugar.

Elril voltou sua atenção para a princesa que começara a falar.

— Seja bem-vindo ao Castelo, Elril de Selimom.

Como era ardente o palavrear da princesa.


CAPÍTULO 2
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