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O Príncipe do Gelo .

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Por Alexandre Romero Inforzato


O grupo percorreu o leito seco do riacho montanha acima, adentrando a zona nevada e prosseguindo com dificuldade através da tempestade branca. Usando o canal vazio como proteção contra os fortes ventos, percorreram silenciosamente alguns quilômetros pelos aclives sinuosos e encostas pedregosas até chegarem ao auge de um dos flancos rochosos da montanha, onde se havia erguido uma espécie de dique de madeira e rocha com o claro objetivo de represar as águas que teriam em outros tempos por ali escoado. Escalando a barragem, foi possível finalmente vislumbrar o que havia do outro lado: Um imenso lago gelado de vários quilômetros de extensão, cercado de protuberâncias basálticas e em cujo centro destacava-se uma formação de aspecto muito singular, semelhante a uma estalagmite álgida fincada solidamente sobre a superfície rígida do leito lacustre. Apesar do mau tempo e da distância que o separava de seus observadores, o espantoso edifício parecia pulsar com vida própria enquanto o vórtice da nevasca se elevava turbilhonante bem acima, com fúria alarmante e da forma menos natural possível.

“Há aberturas, janelas?”, especulou Thalad, finalmente quebrando o silêncio e apontando para o titânico obelisco de gelo. “Wallace... O que você acha?”.

O cavaleiro limitou-se a erguer as sobrancelhas num misto de dúvida e desânimo. Foi Ludwig quem verbalizou o pensamento geral: “Que tipo de maldita besta ancestral se aloja esse ninho bizarro?!”.

“Um dragão do gelo, quem sabe...”, arriscou Hudson.

“Ah! Chega de dragões!”, exclamou Hasfor, apertando o capuz contra as orelhas.

Caíram os cinco em novo silêncio enquanto tentavam decidir qual seria o próximo passo. Marchar através da superfície enrijecida do lago rumo ao monstruoso monumento de gelo era uma das opções, e certamente não a mais agradável, pois a idéia de um encontro com o suposto habitante daquele edifício suscitava possibilidades desastrosas no pensamento de cada um. Ao mesmo tempo, o frio castigava impiedosamente os corpos dos aventureiros, que logo perceberam que suas chances de sobrevivência minguariam rapidamente quanto mais eles permanecessem estáticos em meio à tempestade.

“Se algo – ou alguém – habita nestes ermos gelados, terá sido o responsável por esta barragem?”, esforçava-se Thalad por compreender o enigma subjacente aos elementos daquele lugar estranho, “Com que propósito?!”.

“Tenho algumas teorias”, respondeu Wallace, que havia se conservado mudo e absorto desde o início da escalada, “O Rei dos pequeninos, de alguma forma, nos projetou para dentro da alma da donzela adormecida. Tudo aqui é uma metáfora que reflete a sua real condição! Lembrem da árvore seca, dos peixes agonizantes... e agora este lago gelado. Não consigo decifrar com exatidão o significado da charada, mas é possível que aqui esteja a fonte de todo o problema”, concluiu, lançando um gesto amplo em direção ao lago.



“Rezo para que seja um delírio causado pelo frio”, emendou Ludwig, insatisfeito com a explicação um tanto quanto fantástica fornecida por Wallace, “Mas se estás correto, devo entender que fomos deliberadamente injetados nesta dimensão bizarra para reverter algum mal que há sabe-se lá quantas eras aflige a elfa dorminhoca? Que falta de sorte, parece que perdi meu Guia Prático do Exorcista™ durante a escalada! E se tentássemos algo diferente? Algo como DAR O FORA DAQUI, por exemplo?!”.

“Exorcismo? É uma idéia interessante...”, ponderou Hasfor, “Uma possessão demoníaca geralmente implica no compartilhamento do corpo por mais de uma alma, mas assim é a possessão do corpo. O que estamos vivendo aqui, se nosso bom amigo Wallace estiver correto, é a invasão da alma, algum tipo de possessão espiritual. O assunto é muito mais delicado e – até onde os meus conhecimentos alcançam – sem precedentes”.

Todos ouviam com apreensão às deliberações do mago, que fechou os olhos e suspirou profundamente antes de prosseguir: “Em um caso de possessão corporal prolongada, é possível que a alma da vítima seja completamente sobrepujada e a entidade ímpia ocupe plena e definitivamente o invólucro físico. Se isso ocorre, resta apenas como saída a execução sumária do paciente, mesmo porque já não é mais ele quem está ali. Fazendo a analogia para o caso da possessão espiritual...”.

“Oh, vamos!”, interrompeu Ludwig, “A alma da mulher se perde e seus filhos nascerão com chifres! Quem se importa?! Nossa prioridade deveria ser obter uma saída rápida daqui...”, e lançou um olhar desesperado aos arredores, “...para que eu possa esganar o monarca nanico que nos meteu nesta arapuca!”.

A fisionomia de Hasfor pareceu cobrir-se de espanto súbito. “Mas pode ser que a alma da mulher não se perca neste caso, Ludwig!”, exclamou, em tom de alerta, “Numa possessão convencional, a alma da vítima pode deixar o corpo, extinguindo-se ou indo para outro lugar. Neste caso, a vítima perde o domínio da própria alma, se o prazo expirar! Sua alma não deixa o corpo e não desaparece, mas está sob o controle de alguma outra coisa. Se essa outra coisa for um demônio, os exorcismos comuns não surtirão efeito, porque ainda é apenas uma – a alma da elfa – a que habitará em seu corpo. E o que é pior: Pode ser que a possessão seja imperceptível para os que observam de fora, porque nenhum tipo de ritual ou magia será capaz de detectar a presença demoníaca da criatura enfurnada no corpo e, de fato, na alma da moça!”.

“Não entendi patavina”, declarou Ludwig, estóico, “O que significa que isso não é importante. Alguém quer dar ouvidos a mim?”.

“A alma do demônio vai... se fundir com a da elfa?”, indagou Wallace.

“Bom, sim”, retrucou Hasfor, meneando a cabeça de um lado para o outro, “É um jeito de descrever a coisa, sem dúvida”.

“E quanto a nós?”, preocupou-se Hudson, “o que aconteceria conosco?”.

“Não, não nos diga!”, principiou novamente Ludwig com cinismo, “Ficamos presos aqui dentro e viramos vizinhos da monstruosidade que desencadeou o processo! Podemos combinar um jogo de cartas toda quarta-feira”.

“E nossos corpos físicos morreriam”, continuou Hasfor, “porque nenhum corpo pode viver sem uma alma, certo? Não um corpo mortal, pelo menos. Presos por toda eternidade ou até servirmos de tira-gosto para alguma aberração ancestral dos abismos!...Temo que seja essa uma ameaça bastante possível”, suspirou o mago, alheio ao sarcasmo do companheiro.



O vento pareceu soprar com frio e vigor redobrados à conclusão do mago, enquanto o clarão ominoso de ocasionais relâmpagos sobre o lago antecipava-se ao retumbar de trovoadas ensurdecedoras. O momento era de decisão, mas o frio e o desânimo pareceram de repente cobriro grupo com um manto de inércia, como se houvesse algo naquele lugar que os drenasse de suas vontades.

Felizmente, Wallace reagiu: “Não é o momento de teorizar! O pequenino Rei-mago não nos enviaria para este lugar sem um bom motivo. E de qualquer forma, com ou sem profecia, não faz parte dos meus planos tornar-me um adorno inerte neste pico nevado e muito menos servir de refeição ao agente do malefício que aflige a donzela élfica!”.

“Nobre dizer, Sir Wallace”, aplaudiu Ludwig, “Muito eloqüente. Muitos adjetivos. Curvo-me à vossa pargmaticidade... pragmação... pragma... uhm, você sabe.”

“O que sugeres que façamos?”, indagou Thalad, ansioso para agir.

“Vamos começar assim!”, respondeu Wallace, estendendo as mãos em uma seqüência de gestos rituais, “Afastem-se do dique!”

O cavaleiro-mago sentiu o karma fluir pelos seus braços, reticente, sem forma, difícil de manipular. Quando todos estavam a uma distância segura, recitou o encantamento, e uma pequena esfera de chama azul bruxuleou entre as palmas de suas mãos. “Protejam-se!”, e com o grito lançou o globo flamejante contra o centro da pequena represa. As dimensões do globo acentuaram-se, e seu brilho se tornou intenso e avermelhado antes do choque explosivo contra o amontoado de pedras e madeira que – com imenso estampido – foi arrebatado de sua base e se converteu numa chuvarada de pedregulhos e pequenos destroços.

“Boa idéia, Wallace. Isso deve acordar a moça”, comentou Ludwig, usando seu escudo como abrigo contra os estilhaços ainda em queda. A mão livre protegia um dos ouvidos.

Wallace, contrariado, suspirou. “O lago está completamente enrijecido...”.

Os ecos da explosão reverberaram longamente, parecendo percorrer enormes distâncias, retornando e reverberando novamente. Todos estacaram apreensivos frente ao efeito e permaneceram silenciosos até que o último resquício do estrondo se dissolvesse na distância, mais que um minuto após a explosão inicial.

“Isso é bastante estranho. Nem mesmo os trovões ecoam dessa forma”, murmurou Thalad enquanto aguçava os ouvidos, mas imobilizou-se de súbito, “Esperem! Ainda ouço algo. Uma batida surda e ritmada, sintam o chão! Ele vibra!”.

De fato, o chão estremecia rítmica e quase que imperceptivelmente. A intensidade das batidas acentuava-se progressivamente até que Hasfor não pode conter uma exclamação horrorizada, “Atenção ao lago, algo se aproxima!”. Ao que todos visaram a superfície gelada do lago, puderam constatar que uma forma grotesca e azulada corria através da tempestade, estando já a meio caminho da borda. Seu contorno era indistinto, mas sem dúvida aberrante e gigantesco. Teria talvez seis ou sete metros de altura, e então de suas costas asas membranosas se estenderam e agitaram. O demônio alçava vôo em meio à tempestade, de cujo vórtice uma fosforescência azulada sobre ele se derramava.

“Donzela errada, Wallace!”, gracejou Ludwig amargamente, para então acrescentar em alarme, “Procurem abrigo, escondam-se!”.



Cada um procurou ocultar-se à sua maneira. Thalad e Wallace mergulharam na neve junto a rochas que a explosão do dique havia deslocado. Hasfor utilizou um encanto de invisibilidade, e Ludwig ocultou-se em uma reentrância pouco abaixo de uma crista pedregosa. Quanto a Hudson...

“Invisível, invisível, vou tornar-me invisível! Concentração... Não me falhes agora, fiel companheiro...”, sussurrava Hudson enquanto dedilhava as cordas de seu alaúde mágico. Runas fulguraram nos círculos dourados que ornavam a boca do instrumento e a magia foi ativada. “Ha! Estou invisível? Não podes me ver, criatura bestial!”, sussurrou para si mesmo, encolheu-se e fechando os olhos.

Ludwig observou de seu esconderijo e saltou como uma mola, exclamando, “Hudson, bardo estúpido! Que pensas estar fazendo?!”. A imagem de Hudson havia sido afetada pela magia, isso era claro, mas não exatamente do modo como ele havia previsto: Luzes multicoloridas brotavam do alaúde e dançavam de maneira selvagem em torno do bardo. Simultaneamente, uma gargalhada pungente se fez ouvir através dos ares.

“Heróis! Heróis! O desespero!”, arrotava o monstro enquanto se aproximava ameaçador, “Um banquete de almas para Ruwac’Ra!”, e num instante sua sombra titânica se projetava sobre o terreno em que se abrigavam os aventureiros. O corpo era humanóide, porém deformado, com membros terminados em longas garras cristalinas e ameaçadoras. A pele era toda recoberta de escamas branco-azuladas que refulgiam como prismas ao clarão dos relâmpagos, assemelhando-se a placas de cristal polido. As asas membranosas eram de uma brancura ofuscante e púrpuras nas extremidades. A face da anomalia era sem dúvida o que havia de mais repugnante: Cornos retorcidos brotavam irregularmente das têmporas, enquanto das amplas narinas irrompiam vapores gélidos e das opacas esferas oculares emanavam forças que pareciam fazer vibrar e torcer o espaço à sua volta.

Hudson já disparava ladeira abaixo, mas por sorte a ilusão provocada pelo alaúde permanecera imóvel, confundindo por um precioso instante o demônio que, com um gesto brusco das garras, partiu as imagens coloridas em fragmentos vaporosos que se dissolveram no ar.

“Não há escolha! Às armas!”, berrou Wallace, sacando a espada com uma mão e estendendo a outra para o céu num gesto arcano. O grito ecoou pelos ares e a esfera flamejante partiu mais uma vez da palma do guerreiro, encontrando certeira o peito da criatura que flutuava vários metros adiante. A atitude foi imitada pelo mago Hasfor: Recitada a fórmula, um globo incandescente partiu de suas mãos, chocando-se contra a criatura alada um instante após o impacto da primeira esfera.

O demônio fora surpreendido num momento em que sua arrogância causou a abertura completa da guarda contra os ataques inimigos. Agora, grande medida de sua presunção convertia-se em fúria. Com um guincho polifônico seguido de imprecações em idioma desconhecido, arremeteu contra o grupo, causando um terrível vendaval e forçando todos a buscarem algum tipo de apoio. O poder da ventania, entretanto, sobrepujou a força das vítimas, que foram arremessadas como bonecos de palha montanha abaixo. Apenas Hudson, que se escondera atrás de uma rocha protuberante, escapara ileso e aparentemente incógnito, já que um volume considerável de neve havia sido atirado sobre si, cobrindo-o até quase a altura dos cotovelos. Algumas dezenas de metros abaixo rolavam Thalad, Ludwig, Wallace e Hasfor pela neve – tendo em seu encalço o monstro – até atingirem a altura de uma seção mais ou menos plana da encosta.



Desorientados e feridos pela queda, apenas Thalad conseguiu erguer-se em tempo de preparar um ataque contra a criatura que planava em sua direção. Empunhou o arco dourado e armou um projétil. Sem a menor hesitação, tocou a gema vermelha incrustada no arco e sentiu o calor irradiado enquanto a flecha vestia-se de chamas. Um instante depois a seta cruzava os ares, desenhando um risco avermelhado entre os flocos de neve em queda e indo explodir de encontro ao tronco da aberração gelada. Esta foi arremessada contra o solo em virtude do impacto e, quando se ergueu, tinha as escamas do peito trincadas e enegrecidas pelo fogo.

“Ah, criaturas das chamas que viestes reclamar o espírito da profetiza élfica!”, sibilou o demônio em tom odioso, “Tendes o poder para desafiar Ruwac´Ra na alma onde se adensa o crepúsculo álgido? Condenastes a vós mesmos!”, e assim dizendo lançou-se aos ares de tal forma que toda a neve daquela encosta pareceu ascender consigo. Quando Thalad e os outros puderam abrir os olhos novamente, o demônio já ia longe rumo às verdes colinas que a neve ainda não havia coberto.

“Volte! Covarde!”, cambaleava Ludwig enquanto batia a neve do corpo, “Diabo! Cadê a minha espada?”

“Não creio que esteja fugindo”, retrucou Wallace, “Deve ter alguma outra coisa em mente, estou com péssimo pressentimento. Podes alvejá-lo daqui, Thalad?”.

“Não, já está fora do alcance do meu arco”, comentou abatido, Thalad, para então lembrar-se, “Hudson! Onde está o Hudson?”.

O bardo descia a encosta aos tropeções, e ficou aliviado – sem mencionar surpreso – ao encontrar os companheiros ainda vivos e inteiros.

“Hudson, rápido!”, gritou Wallace, “Use o alaúde, impeça o demônio!”.

Sem tempo para pensar ou hesitar, o bardo tomou o instrumento nos braços e procurou concentrar-se numa melodia, “Vejamos, vejamos”, sussurrava de si para consigo, “Demônio do frio, neve, gelo... como parar uma criatura do gelo? Chamas! Mas de que forma? Uma coluna ardente, uma chuva de brasas? Ah, atearei fogo às asas do monstro!”, e principiou a dedilhar as cordas de prata, fazendo cintilar duas das runas entalhadas no corpo do alaúde. O retinir cristalino da melodia penetrou os ares e alcançou Ruwac´Ra em pleno vôo. Aos olhares estarrecidos dos que acompanhavam o seu percurso, pareceu-lhes que um novo par de asas brotava instantaneamente do dorso da criatura, dilatando-se e deformando as que já existiam anteriormente. O demônio, agora incapaz de sustentar seu vôo, descrevia espirais descendentes rumo ao solo.

“Excelente, Hudson!”, foi a aclamação geral diante do grande (ainda que diferentemente premeditado) sucesso da magia realizada. O bardo sorria constrangido, ou então sob a dor de realizar um encanto que estava além das suas capacidades: O alaúde, exaurido de sua reserva natural de karma, havia-se voltado contra o próprio músico em busca de energia para a realização da magia erraticamente ativada. Sem encontrar uma quantidade suficiente de karma no corpo de seu manipulador, o instrumento – buscando concluir a todo custo a ordem recebida – havia drenado boa parte da própria energia vital do bardo, de cujas mãos agora escorria o sangue em pequenos cortes, enquanto uma sensação de profundo esgotamento e dor percorria seu corpo.

Não obstante, a criatura alada havia sido abatida, e todos presenciaram – alheios à condição de Hudson – seu fantástico impacto contra o gramado da verde planície. Por alguns instantes, o silêncio voltou a reinar.

Confirmando o temor geral, a criatura ergueu-se e pôs-se a caminhar lentamente, ao que Wallace sentiu o desespero novamente aflorar e gritou, afoito, “A escama! Rápido, dêem-me a escama daquele dragão azul!”.

“Está em posse do bardo”, respondeu Hasfor, incerto das intenções de Wallace “Precisamos alcançar e derrotar o demônio, não podemos permitir que ele alcance o lugar onde formos inseridos na alma da elfa!”, exclamou o guerreiro, voltando-se então para Hudson, o qual jazia inerte na neve, “Hudson, rápido, a escama!”.

O bardo, sem forças para objetar ou imaginar que uso Wallace poderia pretender para aquele fragmento valiosíssimo de uma couraça de dragão, entregou a escama ao companheiro. Wallace tomou a magnífica carapaça azul-fosforescente e atirou-a ao chão, fazendo-a faiscar com cintilações purpúreas. Em seguida, saltou sobre ela e descambou ladeira abaixo, deslizando e chispando como um fogo de artifício.

“É seguro, isso?”, indagou Ludwig, erguendo uma sobrancelha com ares de indignação.

“O termo ‘seguro’ deve ser submetido a uma cuidadosa análise de referencial, dada a nossa presente situação”, comentou Hasfor, ainda não completamente crédulo da atitude do companheiro.

“Foi uma pergunta retórica, mago cabeçudo”, comentou tranqüilamente Ludwig, atirando em seguida seu próprio escudo ao chão e imitando o gesto de Wallace. Escorregou pela encosta como se esta fosse feita de vidro polido, enquanto Hasfor se indagava se Ludwig seria sequer capaz compreender o significado de “retórica”.

“Teremos que nos apressar se quisermos ajudá-los, Hasfor!”, alarmou-se Thalad, “mas Hudson não parece bem. Que devemos fazer?”.

“Não se preocupem, vão sem mim”, respondeu o bardo, ofegante, “Alcanço vocês em um minuto ou dois. Vão!”.

Hasfor e Thalad entreolharam-se, concordando que não havia melhor opção que abandonar seu amigo por enquanto e retornar para buscá-lo após a batalha. Assim resolvidos, puseram-se a seguir com muita pressa na trilha dos companheiros. Wallace foi o primeiro a chegar ao pé da montanha, aterrissando sem grandes danos em uma vegetação alta. Como não havia mais ladeiras sobre as quais deslizar, prendeu a escama às costas e pôs-se a correr no encalço da criatura, que parecia ter sido bastante ferida na queda e se marchava com clara dificuldade. Logo Ruwac´Ra percebeu que seria alcançado e voltou-se, erguendo-se em atitude ameaçadora.

Wallace sabia que não seria vantajoso travar um corpo-a-corpo com o imenso demônio, estacando a cerca de cem metros do seu adversário e fazendo uso de suas – agora minguadas – reservas de karma para lançar uma bola de fogo, e mais outra. As esferas flamejantes atingiram o alvo com precisão, fazendo saltar faíscas e labaredas com cada impacto. No entanto, a sinistra criatura emergiu firme das chamas e, em seus olhos, brilhava odiosa a confiança de quem tem como certa a destruição do oponente. Erguendo uma das garras e recitando fórmulas que soaram como a mastigação de um punhado de vidro moído, Ruwac´Ra fez projetar sobre o guerreiro uma inacreditável profusão de farpas de gelo que só não o perfuraram completamente porque Wallace foi rápido em dar as costas ao demônio, sendo assim protegido pela escama.

Nesse momento, teve uma idéia: A escama havia sido perdida por um dragão que controlava com imenso poder a eletricidade. Mesmo agora ela ainda mantinha uma boa quantidade da fosforescência original. Com esse pensamento, tomou a escama mais uma vez nas mãos e protegeu-se de uma nova chuvarada de projéteis pontiagudos. Em seguida, estendeu o braço, fazendo mira no corpo do demônio, e aproximou a superfície do escudo de seu punho. Recitando uma fórmula bem familiar, sentiu as últimas reservas de karma deixarem o seu corpo e se concentrarem em um ponto sobre sua palma, mas com um adicional curioso: O karma permeado de intenção para a conjuração de um raio elétrico, ao se condensar junto à escama, arrancou flutuações de energia que amplificaram o efeito final da magia. O feixe elétrico partiu como um chicote, ramificando-se, ricocheteando e indo envolver seu alvo como uma serpente. Momentos depois, o aturdido monstro exalava vapores e gotejava de grandes ferimentos.

Wallace deixou cair o escudo improvisado e alcançou a empunhadura da espada, “Não posso parar agora, tenho que acabar com a criatura antes que ela possa se recuperar”, mas estava exausto. Caindo de joelhos, sentiu o mundo girar.

Por alguns instantes, os dois combatentes pareceram estar à beira do colapso, quando então um grito ecoou pelos ares: Ludwig corria como o vento, empunhando o imenso montante em posição quase vertical e preparando um ataque devastador. Passou furiosamente por Wallace e arremeteu sobre o demônio com todas as suas forças. Ruwac´Ra, ainda aturdido, procurou aparar a investida, mas teve o braço decepado pelo vigor do golpe de Ludwig. O triunfo brilhou nos olhos do agressor, que se permitiu um sorriso em antecipação à vitória. Mas o sentimento de júbilo foi efêmero, pois no momento em que a espada de Ludwig separou do tronco o braço do demônio e as artérias expostas principiavam a despejar um líquido escuro, Ludwig sentiu sobre si a outra garra da criatura, e ouviu sua voz cava declamando obscuridades ímpias. Uma névoa gélida envolveu seu corpo e, quando se dissipou, em seu lugar havia apenas uma estátua de gelo.

“Ludwig!”, gritou Wallace horrorizado e ainda sufocado pelo esforço de há pouco. O demônio ria. Um fluido viscoso escorria em profusão da ferida exposta, e ainda assim Ruwac´Ra caçoava, deliciando-se com o terror estampado no rosto do guerreiro.

“Não te desesperes, alma pequenina”, disse o demônio com uma voz borbulhante, “O que reservo para ti não é tão rápido nem tampouco indolor!”, e agarrando a escultura fria na qual se tornara Ludwig, esmagou-a cruelmente, lançando poeira cristalina em todas as direções. No momento em que Ruwac´Ra preparava-se para desferir o ataque final contra Wallace, tudo pareceu perdido. Mas uma seta fulgente cortou os ares e explodiu de encontro ao flanco da criatura, fazendo com que recuasse com um gemido de dor. À distância, Thalad já armava o próximo projétil em seu arco dourado.

“Utilizei todo o karma de que dispunha, Hasfor”, lamentou-se o arqueiro, “Vamos precisar de um pouco da tua magia aqui”.

“Com prazer”, respondeu o mago, lançando aos ares três esferas flamejantes que mais uma vez envolveram a vil entidade do gelo em chamas. Nesse ponto, muitas dentre as escamas cristalinas que formavam a singular carapaça sobre o corpo do demônio já haviam sido soltas ou quebradas e, por mais que a criatura mantivesse uma postura firme, a quantidade de líquido que escorria das inúmeras fissuras em seu corpo evidenciava sua péssima condição. Aos olhos dos que ali estavam, Ruwac´Ra poderia perfeitamente estar derretendo. Quando as chamas do ataque de Hasfor se dissiparam, seus olhos se encontraram com os de seu oponente, cujas órbitas vazias expeliam distorções vaporosas e impregnadas de tal animosidade que o mago sentiu-se petrificado pela vontade do adversário. Pedaços do que poderia ser a carne de Ruwac´Ra desprendiam-se do seu corpo e gelavam o solo no lugar onde se depositavam. Com um urro titânico que pareceu retumbar por todo firmamento, o demônio desferiu um tremendo golpe contra o chão, com o que parecia ser a reunião de todas as suas últimas forças. Do lugar onde o punho da criatura atingira o gramado brotou, então, uma fileira de estalagmites de gelo que se elevavam em profusão caótica, formando um muro de espinhos álgidos estendendo-se velozmente na direção de Hasfor.

Thalad não teve tempo de salvar o companheiro da fileira de protuberâncias aciculiformes que se projetaram além e através do mago, perfurando-o por todo o corpo. Hasfor ficou ali, empalado como um espantalho num trigal congelado, enquanto o companheiro observava impotente e horrorizado.

“Maldito!”, sussurrou Thalad, erguendo o arco e acionando num ímpeto a gema rubra. De forma similar ao alaúde de Hudson, o arco buscou – inutilmente – por karma no corpo do elfo. Concebido de forma a desempenhar a todo custo a ordem de seu mestre, o arco drenou do próprio sangue do arqueiro para incendiar o projétil e torná-lo ainda mais letal contra Ruwac´Ra. A flecha deixou, como antes, um rastro avermelhado em seu caminho, indo em seguida alojar-se no peito do demônio e fazendo com que seu corpo acendesse como um cristal de magma. A criatura debateu-se por vários instantes antes de cair, mas sua decomposição já estava muito adiantada para que pudesse almejar qualquer salvação: Logo a única coisa que restava era um gigantesco esqueleto trêmulo e inofensivo; suas últimas palavras antes que se desmanchasse por completo foram, “Frio... Sinto... muito frio...”.

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