Histórico Pesquisar
Epílogo .

Definitivamente, a guerra de verdade não é como nos livros.

O sol já estava à pino entre as nuvens quando acabamos de enfileirar os corpos na cova rasa. Mais de 30 guerreiros, com suas armas e armaduras e tudo o mais que lhes pertenciam. Fiz uma prece rápida a Crisagom para que guiasse aquelas corajosas almas pela ponte que separava nosso mundo dos reinos de Cruine. Depois, fizemos os rituais apropriados e umedecemos os corpos com o óleo que restava das poucas lanternas que havíamos levado. Acendi uma tocha e joguei na cova, vendo o fogo se alastrar timidamente no início e virar altas labaredas depois de alguns minutos. Olhei para o céu quando o vento soprou levemente em meu rosto e senti que meus irmãos estavam se despedindo de mim. Adeus, falei baixinho.

E como sempre acontece em funerais, eu chorei.

Depois da emboscada na cabana às margens do riacho, consegui reunir boa parte dos poucos homens que sobraram. Dos 100 que haviam saído comigo de Fétor, apenas 27 possuíam condições de combate. 33 estavam mortos, dez desaparecidos e 30 encontravam-se feridos a ponto de não poderem lutar novamente até se recuperarem. Morfans era um deles. Possuía vários cortes nas costas, sua perna esquerda havia sido perfurada por uma lança e sua cabeça rachou com a queda que teve ao se atirar para salvar minha vida. Mas apesar de tudo, estava incrivelmente lúcido e me xingou por pagá-lo tão pouco. Mesmo com todo o sofrimento, eu tive de rir dessa.

Dalmo havia desaparecido com outros nove. Eu não sabia se eles haviam sido levados ou haviam se perdido na confusão, ou pior, se teriam fugido mesmo. Mas não podia pensar naquilo naquele momento. Tinha que tomar uma decisão.

– Primio! – gritei tão alto e tão abruptamente que todos que estavam próximo se assustaram. Um rapaz novo, não tendo mais que dezoito, se apresentou assustado.

– Senhor?

– De onde você é, Primio? – perguntei, embora soubesse a resposta.

Ele pareceu surpreso com a pergunta. – De onde eu sou, senhor? – Repetiu.

– Sim, rapaz! Existe algum eco aqui? Não, não existe. Então responda a maldita pergunta! – Alguns dos homens riram e isso o deixou ainda mais nervoso.

– Bem... eu nasci em Azanti, senhor. – respondeu finalmente.

Dei um suspiro e olhei para o céu que agora clareava com a dissipação das nuvens de chuva. Aquela prometia ser uma bela tarde de sol.

– Sabe, Primio, Azanti é um lugar interessante – falei calmamente, como se contasse uma história. – Ela foi fundada por Aza. Conhece a história de Aza, Primio? – O rapaz assentiu com um leve gesto de cabeça. – Pois é. Ele foi um grande guerreiro, grande líder e grande seguidor de Crisagom. – Nesse momento olhei fixamente em seus olhos. – Assim como você, Primio.

– Como eu, senhor? – o rapaz se remexeu inquieto.

– Sim, como você. – respondi. – Ele guiou seus soldados por territórios perigosos até encontrarem o lugar perfeito e então fundou Zanta, a capital de Azanti. – Desembainhei minha espada e a entreguei ao rapaz. – E hoje você fará o mesmo, Primio.

Agora sua expressão havia mudado de receio para pânico.

– Eu vou o quê?



– Quero que você lidere nossos homens até Povariana e me espere lá. Leve o baú com você, tome conta dele e cuida dos feridos até eu chegar.

– Mas senhor... eu não... – ele não para de gaguejar.

– Sem “mas”, Primio. Já tomei minha decisão. – Me aproximei dele, vi sua expressão de terror e tentei tranqüilizá-lo com um sorriso. – Não se preocupe, rapaz. Já o vi lutando e você possui a força de Crisagom em seu coração. Basta usá-la. E se tiver dúvidas sobre o que fazer, peça conselhos a Morfans, ele o ajudará. Mas procure resolver as situações sozinho.

Até hoje me pergunto como foi que deixei um garoto liderar meus homens depois de uma noite de batalha, com vários feridos e levar um objeto importante a ser protegido. Mas estávamos relativamente próximo da cidade e tinha certeza que ele seria capaz. Nunca me arrependi daquela decisão.

– E você, aonde vai? – perguntou-me Morfans, com a voz rouca e engasgada.

– Resolver um problema. – respondi. – E você, vê se não morre. O garoto precisa da sua ajuda. – Pisquei pra ele que me retribuiu com uma careta de dor, arfando bastante antes de continuar.

– Tome, Kerdal. Leve isso – Morfans abriu seu manto com dificuldade e retirou o amuleto de Selimom, estendendo-o a mim. – Pegue. Leve-o com você e ele o protegerá.

– Não, homem. Você precisa mais de proteção do que eu e além disso...

Ele não permitiu que eu completasse.

– Por favor, Kerdal. Faça o que eu digo.

Olhei para o amuleto pendendo em sua mão e em seguida para seus olhos suplicantes.

– Tudo bem, homem. Eu levo o amuleto comigo – falei enquanto pegava o abjeto e o colocava em volta do pescoço. – Quando retornar, te devolverei. Por tanto, fique vivo!

– Quando você voltar, conversamos sobre isso – respondeu o guia, claramente aliviado.

Comuniquei minhas decisões ao restante dos homens e os vi partir uma hora depois.

***

É interessante como desde pequeno sempre consegui entender situações obscuras como se tivesse uma tocha. Eu sabia – por alguma percepção especial – que a colheita não seria boa, ou que estavam roubando nos jogos de dados, ou que uma garota não se interessaria por mim. Não sei como explicar isso. Eu simplesmente sabia. Como sabia que aquela emboscada fora perfeita e bem sucedida demais. Assim, enquanto meus homens feridos seguiam para Povariana, liderados por um jovem de dezoito anos, eu ia em sentido contrário, seguindo alguns rastros que havia encontrado mais cedo, enquanto procurava sobreviventes.

Os rastros atravessavam o rio e seguiam novamente para as montanhas, mas não para o caminho de onde viemos, e sim, para uma trilha mais ao norte. Eu seguia a pé, porem rápido, e logo avistei algo. Continuei andando sorrateiramente tentando me ocultar nas vegetações baixas e nas grandes rochas que cortavam o caminho. Estava sem armadura e carregava apenas meu odre e meu martelo de guerra e, com tão poucos objetos, consegui andar com velocidade suficiente para encontrar o que procurava com rapidez.

Um grupo de homens levantava acampamento depois de passar, provavelmente, a noite e boa parte do dia ali, naquela trilha escondida. Carregavam poucas bagagens, mas um número considerável de armas, e seu líder, parecendo inquieto, fazia sinal para que fossem mais rápidos. Esperei até que estivessem prontos. Quando enfim começaram a andar, peguei meu martelo de guerra e saí de trás de uma grande rocha que usava como esconderijo.

– Dalmo! – gritei, e meu grito devia ser parecido com um urro vindo do inferno porque todos se viraram bruscamente desembainhando suas armas. Dalmo, por outro lado, estava tão aterrorizado que mau conseguia se mexer. – Abaixem as armas! – gritei e quando não me obedeceram, gritei com mais força, quase babando de ódio e as armas começaram a apontar lentamente para o chão de terra, como crianças envergonhadas.

– Ker... Senh... Dalmo balbuciou algumas palavras que mau compreendi, mas que tampouco deixei que completasse.

– Cale a boca, traidor dos diabos! – despejei minhas palavras com jorros de ira. – Você não passa de um maldito fanfarrão, infeliz traidor desgraçado! Vai pagar por isso, Dalmo. Sentirá o peso da justiça em suas costas e eu farei questão de cortar sua língua e arrancar seus olhos para que todos no outro mundo saibam que você traiu um paladino de Crisagom!

Dalmo exalava pavor. Quando você passa muito tempo lutando, começa a perceber que o corpo de uma pessoa as fala muito mais que a boca. Numa parede de escudos, por exemplo, ficamos tão perto de nossos inimigos que podemos sentir seu hálito, olhar em seus olhos e nos molharmos com seu suor. Sabemos que então com medo, quem está com ódio e quem está se divertindo. Naquele momento, Dalmo estava completamente aterrorizado.

– Vamos, Dalmo. Dei-me sua espada. Falei olhando em seus olhos e estendendo a mão em sua direção. Ele não me olhava nos olhos, mas desembainhou a espada. – Vamos, aceite sua derrota e sua vergonha como um homem. Dei-me sua espada e você será julgado por nossa ordem. Caso contrário, terei de impor-lhe um castigo por sua traição aqui mesmo, e você sabe qual é.

Eu sabia que ele não se renderia, pois a pena para traição é a morte. Ali, pelo menos, ele teria uma chance. Mas mesmo assim, continuei tentando.

– Vamos, Dalmo. Renda-se! – insisti.

Nesse momento ele me olhou e eu pensei que houvesse conseguido. Mas notei seu olhar distante, como se não olhasse diretamente para mim, mas para algo às minhas costas. E nesse momento me virei, mas não com rapidez suficiente. Um dos soldados estava junto ao meu corpo e projetou sua espada contra meu abdome, enterrando o aço até a metade. Lembro-me de ter sentido a ponta da espada rasgar minha pele e perfurar meus órgãos, quase saindo pelas minhas costas. Foi a pior dor que já senti na vida. Minhas pernas perderam as forças e cai de joelhos, desabando no chão em seguida.

O soldado que havia me atacado parecia assustado e largou a espada, se afastando de mim. Todos estavam em silêncio e minha visão começou a escurecer até o dia virar noite.

Eu estava morto.

Pelo menos, foi o que pensei.

Não cheguei a perder a consciência e abri novamente os olhos. Inexplicavelmente não havia sangue, mas a dor permanecia, tanto que precisei juntar todas as minhas forças para levantar. Me pus de pé em frente ao olhar incrédulo de todos a minha volta e comecei a retirar lentamente a espada que estava fincada em meu corpo. A dor foi tão forte que quase desabei novamente.

A espada saiu completamente eu senti o ferimento se fechando. Todos me olhavam perplexos e fiquei imaginando que milagre teria sido aquele. Era como se eu tivesse voltado dos mortos. E mesmo estando tão ou mais surpreso que todos, resolvi me aproveitar disso.

– Está vendo, Dalmo – falei calmamente enquanto me virava. – Eu não posso morrer. Não enquanto você não for punido.

E nesse momento ele me atacou.

Confesso que não esperava por isso. Dalmo já estava apavorado quando me viu a primeira vez e pensei que desmaiaria após me ver voltar dos mortos bem na sua frente, mas como eu disse ele parecia um animal acuado e esses são os mais perigosos. Por isso, me atacou.

Investiu com sua espada erguida e me senti tentado a deixá-lo me ferir, pois talvez ele realmente não pudesse me matar, mas por algum instinto reagi e bloqueei seu golpe com a espada que havia arrancado de minhas entranhas e o chutei na virilha. Ele curvou o corpo e lhe dei mais um chute, dessa vez em seu rosto, derrubando-o no chão.

O soldado que havia me atacado anteriormente repetiu ousadamente o erro e investiu novamente por trás com um punhal que carregava na cintura, mas dessa vez eu estava preparado para ele. Deixei que se aproximasse e girei a espada com velocidade, cortando seu pescoço quase até a metade. Ele largou o punhal e levou as mãos ao ferimento, caindo de joelhos na minha frente e desabando no chão logo em seguida. O sangue pulsando ainda gorgolejava enquanto ele tentava pedir ajuda.

Me virei novamente para Dalmo que já estava de pé, com o sangue escorrendo pela boca e pelo nariz, devido aos ferimentos causados pelo chute que eu lhe dera. Ele levantou novamente a espada e eu percebi que aquilo deveria acabar ali, naquele momento. Por isso, deixei que investisse novamente contra mim e, quando estocou, esquivei-me para o lado e contra ataquei com uma estocada baixa na direção de seu rim. A espada trespassou seu corpo e, ao contrário do que aconteceu comigo, o sangue jorrou forte, chegando a manchar minha roupa.

Mesmo morrendo Dalmo ainda tentou me atacar com sua espada, mas não tinha força suficiente e não me causou mais danos além de um arranhão no braço. Mesmo assim, percebi que, seja lá o que tivesse me protegido, não estava mais comigo.

Deixei seu corpo cair no chão e só retirei a espada quando tive a certeza de que estava morto. Assim, me virei para o restante do grupo – que havia presenciado impassível todo o ocorrido – e ordenei que jogassem as armas no chão, sendo obedecido imediatamente.

– Quero que tirem todas as suas armas e as empilhem ali – falei apontando para um canto. – Depois, cubram os corpos e preparem-se para transportá-los. Eles irão conosco.

– E o que acontecerá com a gente – alguém perguntou em meio aos soldados, mas não fiz questão de identificá-lo.

– Vocês serão julgados segundo as leis da Ordem de Crisagom.

Assim, quando todos estavam prontos, enterrei as armas sem que vissem e partimos para Povariana.



***

Pouco depois do anoitecer chegamos a cidade. Tudo estava calmo e logo encontrei alguns de meus homens fazendo uma ronda. Eles me levaram até onde estavam hospedados e me reencontrei com Morfans – visivelmente melhor – e com Primio.

– Muito bem, Primio. Você fez um ótimo trabalho! – falei ao rapaz e vi o rubor nascer em seu rosto, acompanhado por um sorriso tímido.

– Obrigado, senhor – agradeceu o jovem.

Morfans olhou para os prisioneiros que haviam vindo comigo e para os corpos ocultos por capas de peles.

– Vejo que andou trabalhando – Disse ele, rindo.

– Não como gostaria – respondi com pesar sincero.

Peguei em seu braço e o puxei de lado para falarmos a sós. Abri meu manto e mostrei-lhe meu abdome intacto.

– É, eu já havia reparado que você está ficando gordo – disse Morfans sorrindo.

– Não é isso. Uma espada me trespassou bem aqui – falei baixinho enquanto apontava para o local onde fora ferido.

Morfans ficou sério e calado por alguns segundos.

– Que bom – disse por fim. – Agora você terá de passar essa dádiva para uma outra pessoa.

– Quê dádiva, homem? Fale! – quase não me agüentava.

– O Amuleto de Selimom, Kerdal. Aquele que lhe entreguei antes de você partir. – ele baixou ainda mais a voz, passando a sussurrar. – O ganhei de uma mulher há algum tempo. Ela disse que ele era mágico e que salvaria minha vida quando precisasse, mas que assim que isso acontecesse, eu deveria entregá-lo a outra pessoa, que eu julgasse ser digna de ser salva.

Olhei para as estrelas no céu. Elas eram lindas e pensei em como devia minha vida aquele homem.

– Lembre-se que você não me deve nada, Kerdal, e sim a Selimom e a seu prórpio deus – disse Morfans, como se lesse minha mente. – Eu fui apenas um instrumento, como você será quando passar esse amuleto para outra pessoa.

Ficamos os dois ali, parados por algum tempo sem dizer sequer uma palavra. Depois, apertamos as mãos e voltamos para junto ao grupo, onde nomeei Primio como meu novo imediato.

Partimos na manhã seguinte chagando a Chats em poucas semanas. A cidade era um grande alvoroço de guerreiros, sacerdotes e nobres. Fomos apresentados ao rei e lhe entregamos seu precioso baú. Dentro dele – como relatei anteriormente – existia um amuleto redondo, com inscrições e entalhes estranhos e a imagem de um nariz torto sobre um olho aguçado. Mas tarde eu viria saber que se tratava de um objeto mágico; um poderoso amuleto feito por magos de Portis que, segundo me foi dito, seria capaz de encontrar a Pedra Negra, outros dos artefatos mágicos mais poderosos do mundo conhecido.

Lembro-me de naquela tarde ter olhado por cima da amurada do Castelo de Chats e pensado em como estamos a mercê da magia. É claro, na época não fazia idéia, contudo, mais tarde, eu mesmo teria a vida salva novamente por um objeto mágico e chegaria a conclusão que, por mais fé que tenhamos, por mais que os deuses nos ajudem, nosso destino parece estar sempre dependendo de algum objeto mágico. E confesso que esse pensamento nunca me agradou.
LGPD (Lei Geral de Proteção a Dados): o site do Tagmar usa a tecnologia de cookies para seu sistema interno de login e para gerar estatísticas de acesso. O Tagmar respeita a privacidade de cada um e nenhuma informação pessoal é armazenada nos cookies. Ao continuar a navegar pelo site você estará concordando com o uso de cookies.