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Epílogo

“Os Deuses sempre tem um propósito, até mesmo quando jogam dados”.
— Desconhecido

V



As fossas fumegantes ao redor dos heróis exalavam uma fumaça sulfurosa. O último dos demônios que enfrentavam havia tombado, enfim libertariam as almas que estavam buscando, prisioneiras de seres infernais, impedidas de seguir seu caminho pelo Plano Etéreo, rumo ao jugo de Cruine, como dita a ordem natural designada pelos deuses.

Kerdal acompanhava um grupo de enviados caçando demônios. Abigom, Meliom, Hazel, Hazom e Neril, eram seres ao serviço dos deuses de Tagmar. Sábios e poderosos, ensinaram sobre os desígnios divinos para Kerdal e Marim, uma mortal como o meio-elfo. Sacerdotisa de Crizagom, Marim era uma mulher sagaz e corajosa, vivia num reino nortista do Mundo Conhecido e morrera defendendo seu templo. O grupo viajou através do Plano Etéreo seguindo os rastros de demônios que capturavam almas, para corrompê-las e evitar que alcançassem o Plano Divino, arregimentando mais escravos para o Inferno.

Havia sido uma longa jornada. Enfim poderiam parar e recuperar suas energias. A aura positiva emanada pelos enviados começou a afetar a área onde estavam, as fossas flamejantes estavam desaparecendo, junto das sombras bruxuleantes trazidas pela corrupção demoníaca.

Kerdal e Abigom estavam sozinhos, meditavam diante de uma chama azulada, como uma clareira, mas no lugar de calor, eles buscavam recuperar suas forças espirituais.

— Você fez um bom trabalho, Kerdal. Realizamos algo importante aqui, algo necessário, do qual o equilíbrio das coisas materiais e espirituais dependem. Aprendeu muita coisa também. Sobre depositar a fé na guerra justa, a doutrina de Crizagom.

— Durante nossa jornada eu vi o mal que aqueles seres infernais fizeram, meu senhor. Aprendi que aquilo é errado e que meu papel era tentar fazer com que parassem e fazer com que pagassem por seus crimes. Seus pecados para com os deuses. E eu acredito que Crizagom foi o caminho, ele me mostrou a força e a determinação. Quando me vi diante dos demônios, eu não exitei! Fiz tudo para não desapontá-lo!

— Eu vi. — Abigom concentiu.

A conversa foi interrompida quando Neril e Meliom passaram pelos dois, seguidos de Marim. Os enviados eram seres altos, com aparência de homens e mulheres robustos, com os cabelos prateados evidenciando sua idade e sabedoria. Lágrimas brilhavam nos olhos de Marim, escorriam pelo seu rosto, mas sua expressão não era de tristeza, mas uma alegria sossegada. Kerdal a encarou e viu o orgulho em seus olhos, a sacerdotisa fez uma mesura com a cabeça, como se dissesse “Obrigado e adeus, meu irmão” e foi embora levada pelos enviados. Kerdal estranhou.

— Meu senhor Abigom, não seguirei o caminho de Marim?

— Não neste dia.

— Para onde irei então?

— Você seguirá por outro caminho, Kerdal.

— Continuaremos caçando demônios, então? Marim fará falta na batalha...

— Marim conseguiu derrotar a culpa que a atormentava e seu espírito está pronto para voltar à essência dos deuses. — Disse Abigom.

— E eu não fiz por merecer a mesma honra? — Kerdal questionou, mas não por vaidade ou inveja, apesar de ter ficado preocupado de ter soado assim.

— Não tenho dúvida que que essa honra será sua, mas não acontecerá hoje. Porque o caminho que você tem que seguir leva à direção oposta. Você irá retornar para Tagmar.

Antes que Kerdal pudesse indagar sobre o que havia escutado, foi interrompido por uma figura inesperada, porém familiar. Vindo das brumas do Plano Astral que os cercavam, o elfo se aproximava apoiado em seu velho bastão, como se tivesse viajado durante um bom tempo para chegar até ali.

— Nos encontramos novamente, mestiço. — Ele acenou com a cabeça.

— Leonim? — A confusão do meio-elfo aumentou. — O que isso significa?

Abigom projetou suas mãos sobre a chama azulada no centro da clareira, aumentando suas labaredas. — Significa que chegou o momento de você voltar para casa e começar sua missão.

— Como assim? Eu pensei que já estava fazendo meu trabalho ao lado de vocês.

— E não poderia estar mais enganado. — Leonim disse. — Você veio para cá para aprender. Sobre quem são os deuses, o que eles representam e quem são os verdadeiros inimigos da Criação, das coisas materiais, espirituais e mágicas.

— Então, o que devo fazer, agora? — Kerdal pensou em sua vida anterior, antes de ter se juntado aos enviados e viajado através do plano espiritual. Estremeceu ao lembrar dos irmãos que havia deixado durante o combate contra os orcos no Acampamento das Três Bandeiras. Mas tornou a ficar calmo quando lembrou da honra daqueles homens e que certamente eles fizeram por merecer a bênção de Crizagom diante de Cruine.

— Você deve continuar fazendo o que já fazia há anos, Kerdal. Você deverá continuar lutando. — Abigom proferia seu último ensinamento. — Mas desta vez seus punhos terão mais determinação do que nunca tiveram. Sua espada saberá a direção que seus golpes devem tomar. Seu corpo, mente e espírito estão preparados para que você interceda por Crizagom contra aqueles que merecem ser punidos, a favor daqueles que devem ser protegidos, porque é assim que a justiça triunfa.

Kerdal olhou para o enviado, que nada mais tinha a dizer, além de adeus. Leonim depositou a mão no ombro do meio-elfo, e ambos partiram, perdidos entre as brumas etéreas do Plano Astral.

VI


Kerdal abriu os olhos, percebeu que estava de joelhos diante de um grande orco. Havia voltado à enfermaria do Acampamento das Três Bandeiras, havia voltado para aquele dia fatídico.

Cambaleou confuso, seu punho segurava a espada e marcava a distância entre ele e o selvagem. Moraquis ficou surpreso, o orco ficou paralisado por alguns instantes, sem entender como o meio-elfo franzino havia sobrevivido ao seu golpe, mas a frustração e a raiva fizeram com que retomasse o controle do seu corpo. Ele avançou sobre Kerdal numa investida feroz, mas imprudente. Num piscar de olhos a lâmina do meio-elfo havia trespassado o peito do orco.

O impacto fez com que ambos fossem ao chão, mas Kerdal foi o único a se erguer. Orcos e humanos haviam sido testemunhas de um milagre. Era impossível que Kerdal estivesse de pés, mas estava. Uma aura sobrenatural emanava de seu corpo. Os selvagens recuaram. Os soldados ovacionaram seu campeão. Retomaram o combate com bravura renovada. Inspirados por Kerdal, não buscavam a sobrevivência, apenas sabiam que tinham que lutar. Que seu derradeiro esforço defendia algo maior do que suas vidas. Sob os olhos de Crizagom, fariam por merecer a boa morte.

O novo ânimo fez com que eles levassem o combate para fora do barracão através.

— Por Crizagom e pelas Três Bandeiras! — Gritou Kerdal, acompanhado pelos soldados que se armavam com as lâminas dos orcos derrotados.

A visão do lado de fora foi surpreendente: o acampamento estava totalmente tomado pelos selvagens! A horda era uma onda devastadora de fogo e ferro. Os soldados estavam tomados pelo destemor e pela aura mágica de Kerdal, mas ainda estavam cercados. Os orcos urravam, apontavam dezenas de flechas contra os soldados, que novamente estavam prontos para dar suas vidas em honra a Crizagom.

Kerdal estava na vanguarda daquela pequena resistência, sua presença inspirava seus irmãos de armas. Seus irmãos o inspiravam. Junto deles ele tinha esperança e pela esperança ele alimentava sua fé. Ergueu sua espada. A lâmina começou a brilhar até que o ponto luminoso se tornasse um clarão cegante. Foi quando veio o trovão. Um relâmpago desceu dos céus e explodiu entre os orcos.

A magia dos deuses estava com Kerdal e Kerdal estava do lado daqueles bravos homens. Os orcos que sobreviveram aos raios divinos fugiam, os que haviam testemunhado aquela magia vacilavam, mesmo diante de um contingente tão pequeno de oponentes. Mas os arqueiros não precisavam de coragem para apontar seus arcos à distância. Os soldados com Kerdal se prepararam novamente.

Então o destino lhes sorriu.

Viram um machado de batalha cruzar o campo de batalha e atingir em cheio o peito de um dos orcos. A criatura tombou sobre seus camaradas, surpresos.

Um grupamento de anões começou a cruzar o campo de batalha, fortemente armados com o aço de suas armaduras e machados, rompiam a linha dos orcos para alcançar Kerdal. Era o destacamento de Bor.

— Por Crizagom e pelas Três Bandeiras! — o meio-elfo bradou novamente, seguido pelo entusiasmo revigorado de seus soldados.

Quando Kerdal se reuniu ao líder dos anões, lutaram ombro a ombro contra os selvagens.

— Blator sorri pra você, velho amigo! — Bor disse numa gargalhada. — É ótimo vê-lo vivo! Vim te resgatar assim que soube que você havia ficado para guardar a enfermaria. Se resistirmos o bastante, pode ser que ainda estejamos vivos até que Monfatis consiga nos alcançar com seu contra-ataque.

— A justiça está conosco, Bor. E ela vai nos dar forças para resistirmos até a chegada de Monfatis! — Na reviravolta desta batalha, o punho de Crizagom nos guiará para a vitória!

VII



Do lado de fora, para além das muralhas devastadas do Acampamento das Três Bandeiras, ocultos entre as sombras das árvores que coroavam as colinas ao redor do grande assentamento, duas figuras silenciosas assistiam ao tumultuoso desfecho daquele conflito. Eram Leonim e Abigom, que olhavam atentamente para as paragens arrasadas pela guerra.

— E pensar que tudo começou pelo golpe errante de um orco. — disse o elfo, quebrando o silêncio entre os dois. — Sabe, algumas vezes eu penso que os deuses brincam demais com a sorte.

Abigom sorriu. Sua feição poderosa e sábia era condescendente, como um homem adulto que trata com a ingenuidade de uma criança. — Os Deuses sempre tem um propósito, Leonim. Até mesmo quando jogam dados.
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