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Prólogo .

Em algum lugar na região central de Abadom, 1290 D.C.

"Esperança. Tem de haver uma esperança. A justiça sempre triunfará no fim de tudo!"

Abro meus olhos e contemplo o brilho que sobe da fogueira na qual estou ao redor, encolhido, tentando manter-me aquecido, enquanto as palavras ainda ecoam na minha mente. Elas foram ditas por um jovem sacerdote, a cerca de três dias atrás, ao redor de outra fogueira, logo após ele começar a falar sozinho depois que o cutelo de um orco decepou três dedos de sua mão direita. Ele ficou afastado, mesmo depois de curado pelos companheiros, olhando para sua mão aleijada, agachado na lama e repetindo aquela sentença para si mesmo. Se ele procurava por alguma forma de apoio ou simpatia, pelo menos não acabou de mãos vazias, pois ninguém da nossa comitiva lhe deu atenção, exceto eu...

Hoje à noite, estou sentado ao redor de outra fogueira, a quase cinqüenta quilômetros ao norte, recordando como ele gritou ontem pela manhã, quando um grupo de bankdis o cercou, derrubando a espada que estava na sua mão esquerda e o cortaram em pedaços.

“Pelo menos seus algozes juntaram-se a ele”, repito a mim mesmo como se fosse um consolo...

Seu nome era Symas. Prometi a mim mesmo não esquecê-lo.

Olho para o que restou de nosso grupo desde a precipitada retirada das margens do rio Baloc, há seis meses e vejo que muitos deles ainda carregam no rosto a mesma surpresa pelos acontecimentos ocorridos nestes últimos anos.

A guerra contra a maldita seita já dura quase quarenta anos no norte, desde a invasão de Marana pelas tropas verrogaris com o apoio dos demonistas. Abadom, apesar de sua corajosa resistência, está desmoronando lentamente e o sul já está perdido há muito tempo...

Ludgrim, Eredra, Verrogar, Dantsem, todos nas mãos dos adoradores blasfemos dos seres das profundezas. Mas ainda espero poder viver o suficiente para vê-los encontrar a liberdade. Oro todos os dias a Crisagom para que ele me conceda esta graça.

A justiça sempre triunfará no fim...

É estranho admitir isso, mas estou me habituando a certas coisas como lembrar os nomes dos que tombaram, das vilas em chamas por onde já passamos, da sensação do calor dos incêndios em nossas costas enquanto prosseguimos, quilômetro após quilômetro em direção a Tronum, a capital de um país sem rei, para de lá rumarmos para Filanti. Ouvimos rumores que seu monarca se juntara à Aliança, embora um pouco tarde para isso, numa tentativa de conter o avanço dos demonistas sobre o sul de seu país e decidíramos nos unir a ele. Minha unidade e outras duas foram escolhidas para esta empreitada.

Estávamos marchando há quase uma semana, escoltando um número crescente de refugiados do sul de Abadom que resolveram nos seguir até o norte. Já havíamos encontrado inúmeras patrulhas e unidades menores dos bankdis nesta região e a todas havíamos silenciado, não sem perdas, para que pudéssemos atravessá-la sem termos de enfrentar uma perseguição maciça, o que colocaria as vidas dos pobres desabrigados em terrível perigo.

- Mestre Kerdal, aceita um pouco do rescaldo que sobrou de ontem? Acabamos de aquecê-lo...

A voz de Leymar interrompeu meus devaneios e trouxe-me de volta à realidade. Ele era um jovem neófito que se juntara ao nosso grupo há pouco tempo, vindo das montanhas da Cordilheira do Sotopor, onde os soldados abadrim estavam se refugiando para tentarem uma nova estratégia de defesa contra as hostes bankdis.

Era uma tentativa corajosa e até poderia resultar em algumas vitórias, mas aquilo, na minha opinião, apenas adiaria o inevitável. Sem um rei que o comandasse e inspirasse, o exército abadrim estava confuso e caótico. As cidades do Sul estavam caindo uma após a outra e parte da população do país estava fugindo em direção do norte, para Plana e para o Oeste, além do rio Sul, fugindo da guerra.

- Somente um pouco, Leymar, obrigado. Não estou com muita fome hoje!

Servi-me de uma caneca da sopa requentada enquanto observava os outros acólitos. Muitos deles eram muito jovens, quase ainda não tendo idade para se barbear direito e já haviam presenciado horrores que muitos adultos nunca veriam na vida.

Leymar serviu mais um companheiro e pegou um caneco para si, vindo sentar-se perto de mim.

- Mestre Kerdal, é verdade que vamos para Tronum? – perguntou.

- Exato. Precisamos apresentar-nos a Dahrio e nos juntar aos demais sacerdotes que foram convocados para viajar até Filanti e de lá seguirmos viagem até Plana.

- O senhor já esteve em Tronum, mestre Kerdal? Chegou a ver o Palácio Imperial antes... antes do ocorrido?

Chamas, fogo, gritos, dor, morte...

- Sim, Leymar. Já tive a oportunidade de conhecer a grande e poderosa capital deste país com suas altas muralhas e suas torres, com seus grandes portos, estalagens e ruas de comércio. Também tive a chance de ver e conviver com alguns grandes homens da Guarda da Lança.

- O senhor conheceu alguns destes bravos guerreiros? – Leymar perguntou-me com os olhos bem abertos, cheios de legítima surpresa.

- Cheguei a conhecer alguns destes bravos homens. Eles faziam jus à sua fama de elite do exército abadrim.

- E o Palácio Imperial, mestre Kerdal, como ele era? Eu nunca fui a Tronum na minha vida.

Chamas, fogo, gritos, dor, morte, sangue, muito sangue, desespero, impotência...

- Imponente. Uma bela construção, com seus salões suntuosos, suas cúpulas resplandecendo a luz dos primeiros raios do sol, seus jardins esplendorosos, as festividades...

Alegria, triunfo, êxito, o rei, os nobres, o salão em festa, o comandante da frota, a cabeça... o calafrio... a sensação de algo estranho...

Balancei a cabeça para espantar aquelas recordações.

- O que o senhor acha que pode ter acontecido para ocorrer tamanha tragédia, senhor? – a pergunta foi feita em um tom mais baixo de voz.

Traição, luto, desonra, injustiça, mal, demônios, magia...

- Isso não importa agora, Leymar. Buscar causas ou fatos ou especulações do que aconteceu naquela noite não importa mais. Isto foi há três anos. Repisar o passado não mudará o futuro. Estaremos serrando serragem fazendo isso. Devemos nos concentrar no presente. No hoje, pois é tudo isso o que vale a vida. O amanhã pertence ao conhecimento dos deuses. O passado deve nos ensinar, jamais nos atrapalhar na busca da justiça.

Um som de choro de criança ergueu-se no meio do acampamento, misturando-se ao lamento dos mais idosos e ao pranto dos enlutados. Para aquelas pessoas, que perderam quase tudo que tinham, exceto suas vidas, minhas palavras não trariam nenhum alento.

O jovem acólito tomou um gole de sua sopa e olhou-me nos olhos. Suas mãos tremiam... o choro da criança ficou mais alto e mais forte...

- Tenho medo de nunca mais voltar para casa, mestre Kerdal. É duro admitir isso, mas eu o sinto entranhando-se dentro de mim, querendo drenar minhas forças. Estou me sentindo impotente, inútil.

Sorri-lhe. Começava a gostar daquele jovem e sincero humano.

- Leymar, o medo é natural. Somente uma pedra ou uma árvore não sente medo. Mas ele pode e deve ser suplantado, vencido pela fé naquilo que você acredita: na justiça, na honra, no bem, na verdade acima de qualquer coisa. Creia-me, seguir os mandamentos de Crisagom não é fácil. Ele nos exige pureza na alma e no corpo, um comportamento honrado e justo. É quase impossível sobreviver neste mundo corrupto e decaído que se tornou o nosso com este comportamento, mas nós o seguimos e entramos em batalha não porque amamos o gosto por sangue, mas sim pelo senso de justiça que possuímos, pela honra e pela ordem que devem ser preservadas e porque a verdade sempre triunfa no final. Seja fiel a Crisagom em seu coração, acreditando no que ele acredita e ele o encherá de coragem para suplantar qualquer medo que venha contra ti.

Pude perceber o refrigério que estas palavras trouxerem ao jovem acólito.

- Obrigado, mestre Kerdal. Suas palavras alentaram e aquietaram meus temores.

- Isto não se aprende da noite para o dia, Leymar. Leva-se tempo, mas você é jovem e creio que Crisagom tem muitos planos para você ainda. Agora termine sua refeição e vá se deitar. Temos um longo dia pela frente amanhã.

***

No dia seguinte continuamos nossa marcha em direção ao norte, com o intuito de chegarmos até a estrada que nos levaria para Oeste, até as cordilheiras e de lá para Tronum. Fomos agraciados pelos deuses, pois não encontramos nenhuma patrulha bankdi pelo caminho e nenhuma escaramuça aconteceu. Foi assim também pelos próximos dois dias. A multidão de refugiados crescera um pouco mais...

Na tarde do terceiro dia nossos batedores retornaram até o grosso de nossa formação trazendo uma notícia que me deixou alarmado.

- Senhor, vimos um contingente de soldados armados perto do entroncamento da estrada que leva até as montanhas de Sotopor. Estão acampados lá.

- Demonistas? – perguntei sobressaltado.

- Não, senhor. São aliados. Vimos o estandarte de nosso deus fixado no meio do acampamento deles.

O que um grupo armado estaria fazendo acampado no entroncamento da estrada que levava para a capital?. Algo não estava certo.

- Levem-me até lá.

***

Chegamos até o acampamento do grupo e fui recebido por um homem de idade mediana, com uma cicatriz na face e olhos faiscantes. Seu nome era Altiom. Um velho conhecido...

- Mestre Kerdal! Que Crisagom seja louvado. O senhor está vivo e bem! – ele disse quando me viu – Tivemos notícia de sua luta no rio Baloc e temíamos o pior.

Desci de meu corcel e apertei-lhe calorosamente a mão estendida. Estava suada e gelada...

- Tivemos algumas perdas, meu amigo. Bravos heróis que Crisagom cedeu para Cruine, mas nosso grupo continua coeso e o moral continua alta. – respondi – Mas o que o traz aqui? Mudança de planos?

- Sim, mestre Kerdal. Mestre Dahrio não pode nos acompanhar até Filanti. Soubemos que um grande ataque está sendo organizado contra a fortaleza de Fleuter, que ainda resiste no sul e ele pessoalmente vai liderar o restante de nossas forças até lá para ajudarem na defesa do local. Ele nos ordenou que caminhássemos até o entroncamento da estrada para a capital e o aguardássemos aqui. Isto o deixa no comando de todos nós, agora, senhor, pois é o mais antigo entre os presentes.

E foi assim que ganhei meu primeiro grande comando. Seguimos viagem no dia seguinte, conforme o plano estabelecido anteriormente. Subiríamos até o norte de Abadom, acompanhando a margem do lago Denégrio até atravessarmos a foz do rio Maum e marcharíamos até Pórtis, em Plana, deixando um país moribundo e sem governo para trás, mas levando a esperança de que desta vez conseguiríamos deter o avanço da Seita e que desta vez a justiça triunfaria no final.



***

Olho para o sol que nasce por sobre as águas do Lago Denégrio e percebo que fazia tempo que não via um raiar de dia tão lindo como este. O globo de luz dourada salpicava de tons vermelho-alaranjados as nuvens baixas que, vagarosamente, cruzavam os céus de Pórtis, no sul de Plana, dispersando a névoa que pairava por sobre o porto da cidade.

Uma brisa fresca soprou do leste enfunando as velas da embarcação que conduziria nosso grupo até um porto perto de Tória, no outro lado da foz do rio Frefo, e de lá até Ambernita, no sul da Moldânia, de onde prosseguiríamos nossa marcha até Chats, capital de Filanti.

Do alto da amurada da pôpa de nosso navio, imaginei que, apesar do cuidado que deveríamos ter em navegar pelas águas escuras do lago, as chances de encontrarmos embarcações hostis era muito pequena, de sorte que nosso grupo poderia se permitir alguns momentos de merecido descanso, com os combates e o cheiro da morte em Abadom se tornando apenas memórias ruins em nossas vidas, que pretendíamos esquecer com o passar dos anos.

"Não que isso seja fácil de acontecer com um meio-elfo" – pensei comigo mesmo.

A travessia até o porto que ficava perto de Tória foi tranqüila e sem incidentes. Fizemos muitas amizades com a tripulação do navio, que era um barco até certo ponto veloz para o seu tamanho. O pouco de náutica que aprendi na minha vida foi-me ensinado pelo capitão do barco, um marinheiro humano chamado Hagrim, de meia-idade, cabelos já grisalhos e com muitas cicatrizes nos braços, com quem tive algumas conversas.

Tudo levava a crer que passaríamos nossa estada no mar sem maiores incidentes, exceto alguns sacerdotes mais enjoados que o habitual.

Mas estávamos enganados...

Até aqui o braço do inferno nos perseguia...

No início da manhã do sexto dia de nossa viagem, quando já singrávamos águas próximas de Ambernita, o vigia do mastro principal gritou lá de cima:

- Capitão, velas a boreste. Parece ser uma embarcação grande.

Um alvoroço tomou conta da tripulação. Os homens começaram a correr de um lado para o outro do navio, puxando cordas e soltando velas. Alguns subiram nos mastros de popa e proa mexendo alucinadamente no velame, tentando desatar os nós que os prendiam.

Corri até o capitão Hagrim e perguntei o motivo de tamanha correria.

- Barcos grandes não são comuns nessas águas, clérigo. Saravossa possui algumas embarcações de guerra por aqui, mas elas costumam patrulhar águas bem mais ao Oeste. Estou temendo o pior.

- Mas não estamos também longe de águas onde os barcos bankdis e seus aliados costumam navegar? – perguntei cheio de apreensão.

- Sim, estamos. Mas aqueles demônios estão ficando mais ousados, enviando seus barcos em patrulhas cada vez mais distantes de suas bases em Verrogar. Temo que, logo, todo o Lago esteja infestado com seus barcos dos infernos.

Fui até o passadiço e pus-me a observar o navio desconhecido ao longe. O tempo foi passando e ele parecia estar se aproximando rapidamente...

- Atenção. É um drakkar verrogari, senhor... com quatro mastros e dez velas. Está com o vento a seu favor. – gritou o vigia do mastro principal, após cerca de uma hora de perseguição.

- Que Ganis nos proteja – gemeu um dos marujos – É um barco mais veloz que o nosso.

O capitão começou a gritar ordens para seus comandados. Falava aos berros, com expressões que fariam qualquer nobre corar de vergonha. Ele dirigiu-se a mim.

- O navio que nos persegue é um barco de guerra verrogari, muito maior e mais veloz que o nosso. Provavelmente irão nos abordar, portanto, que seus homens estejam preparados, pois teremos de lutar para nos livrarmos deles.

Desci até o deque inferior e convoquei nosso grupo.

- Às armas, confrades. Parece que os apóstatas adoradores de demônios que enfrentamos em Abadom estão nos perseguindo até aqui. Um barco de guerra verrogari irá nos abordar em pouco tempo. Mas nós vamos mostrar-lhes que não importa o lugar, os sacerdotes de Crisagom sabem lutar pela justiça e pela verdade. – Falei-lhes em alto e bom tom.

O retinir das armaduras e o embainhar de espadas tomou conta do local. Rapidamente colocamos nosso equipamento e nos preparamos para a luta que estava por vir.

- Vamos mandá-los de volta para os infernos – Alguém bradou no fundo do compartimento.

Um tremendo grito de aprovação saiu em uníssono de muitas bocas.

Subi até o deque principal e percebi que a nossa barcaça já estava sendo alcançada pela embarcação verrogari. Corri até o capitão e disse-lhe:

- Leve-nos até perto do drakkar. Anteciparemos a abordagem deles. Eu e meu grupo invadiremos o barco. Cuide que seus homens apenas nos dêem cobertura com seus arcos e flechas.

Um olhar surpreso cravou-se em mim e o capitão balançou a cabeça.

-Vocês estão querendo se suicidar? Não ouviu o que eu disse? Aquele é um barco de guerra verrogari. Vocês não terão a menor chance.

Olhei bem profundamente para o marujo, que continuava a me encarar como se não quisesse acreditar no que eu falaria a seguir.

- Se Crisagom permitir que eu parta hoje para as terras de Cruine, o farei alegremente, pois partirei defendendo aquilo em que acredito: Justiça, honra, bravura, disciplina e estratégia. Não poderia pedir melhor morte que esta. Mas acredito piamente que não verei o reino do deus da morte hoje. Eles não esperam encontrar muita resistência e nós os surpreenderemos. Agora, faça o que eu lhe pedi! – Disse-lhe com firmeza.

O capitão partiu rumo ao timoneiro para lhe dar as novas instruções, enquanto eu desci novamente até onde estavam meus comandados e convoquei-os:

- Camaradas. Honremos o nosso senhor neste momento e mostremos a esses adoradores de demônios, o que um servo sagrado pode fazer.

Comecei a entoar, em alta voz, uma prece a Crisagom, pedindo-lhe a proteção. Fui acompanhado por um coro de inúmeras vozes, que se juntaram, num crescendo, formando um som parecido com a rebentação das águas do mar junto aos penedos da costa. Alguém começou a bater sua espada em seu escudo, em meio a cânticos sagrados, no que todos começamos a imitá-lo e o som foi-se transformando num ribombar de inúmeros trovões. Senti minha pele arrepiar. O ar do recinto começou a ficar elétrico, uma sensação de imensurável renovo e refrigério invadiu meu corpo.Uma lufada de vento atravessou nossa formação. Foi como se o próprio Crisagom soprasse um pouco de seu fôlego sobre cada um de nós. Eu sentia sua presença, palpável, nítida, perceptível...

Aguardamos o drakkar aproximar-se. As primeiras setas cruzaram o convés. Cordas e ganchos foram lançados e cravaram na madeira de nossa embarcação. Os primeiros verrogaris se preparavam para pular...

Minha mão direita procurou o cabo da espada. Apertei-o fortemente. A lâmina brilhava, sedenta. Ergui-a acima de minha cabeça e gritei a plenos pulmões:

- Por Crisagom... abordar!!

Um tremendo urro acompanhou-me quando me projetei para cima e para fora do local onde estávamos alojados. Não via mais nada exceto a amurada de nosso barco e o convés do drakkar. Escudo em riste...

Saltei pela borda e caí do outro lado. Três demonistas armados com espadas curvas e protegidos por armaduras e capas partiram em minha direção.

O primeiro veio de frente, brandindo a espada. Dei dois passos para trás e atirei contra ele o escudo , derrubando-o. Aproveitei sua queda e cravei-lhe a espada no tórax. O outro se aproximou pelo flanco esquerdo tentando cortar minha cabeça. Joguei o corpo para trás. A lâmina roçou meus cabelos, mas passou no vazio. Apoiei o corpo e me arremessei de pé. Com a espada na mão direita, fiz um movimento de arco. A arma atravessou a cintura do verrogari antes que ele pudesse tentar outro golpe.

Presenti perigo. À direita. O terceiro inimigo. Virei a tempo de ver a lâmina cortar o ar em direção ao meu pescoço. Aparei o golpe com a minha espada. Ergui a mão esquerda e agarrei o pulso do agressor. Alguns segundos medindo forças. Tremíamos. De relance, pude observar meus camaradas levando o caos e a morte aos abomináveis. Um frenesi havia se apossado deles. Lutavam como leões.

Olhei bem para meu adversário. Seus olhos meio amarelados faiscavam de puro ódio e seus dentes rangiam medonhamente. Forcei meus músculos para frente e dei um grande grito, empurrando o inimigo para trás. Ele tentou saltar, mas já era tarde. Troquei a base das pernas e em um movimento de cintura, dirigi minha espada em direção aos joelhos do demonista. Ele caiu pesadamente ao chão.

Ao meu redor, as hordas dos verrogaris pareciam querer recuar. O retinir de metal contra metal era entrecortado pelas vozes de comando, pelos gritos de dor e agonia dos moribundos e pelo clamor dos vitoriosos. As primeiras línguas de fogo começaram a subir da nau verrogari, enquanto os combates intensificavam. Abaixei-me para pegar meu escudo e continuar a lutar.

"Mestre Kerdal... cuidado!!"

Súbito, um baque. Algo, ou alguma coisa chocou-se violentamente contra meu lado esquerdo. Uma dor aguda percorreu meu ombro e braço. O ar saiu com força de meus pulmões, enquanto meu corpo era projetado para frente. Meu elmo caiu. Só consegui ouvir um grito lancinante de agonia antes de me esparramar no chão.

Ergui-me rapidamente e me voltei para o lugar de onde partira a agressão. Um cheiro horrível de enxofre invadiu-me as narinas. Era tão forte que ameaçava me sufocar. O que vi me deixou chocado...

Altiom se debatia, tentando tirar sua armadura, que parecia arder sobre seu corpo. Seus gritos de dor ainda consomem meus sonhos até hoje. Corri em seu auxílio. Parecia que havia sido atingido por algum tipo de sortilégio maligno. Ele derrubara-me e sofrera o ataque em meu lugar...

Enquanto tentava ajudar meu valoroso amigo, corri os olhos para tentar encontrar o autor de tamanha covardia. Meus olhos caíram sobre um homem corpulento, que usava uma armadura completa cinzenta, um elmo com um penacho semelhante a uma crina de cavalo e um escudo prateado, com uma insígnia bankdi. Ele acabava de sair da posição de conjuração. Em sua cintura pendia um grande martelo de batalha.

Cerrei meus dentes. Diante de mim se encontrava um Sacerdote Negro. Um ser desprezível que vendera sua alma aos seres infernais em troca de poder maligno. Aquele era um demonista verdadeiro...

A situação mudara. Eu não enfrentava um cultista ou um soldado comum, mas um amálgama de clérigo e mago das profundezas, com poderes concedidos pelos demônios. Um adversário, não... uma aberração que deveria ser expurgada desta existência.

Voltei-me rapidamente para Altiom, que conseguira retirar o peitoral metálico de sua armadura. Suas mãos tremiam intermitentemente. Horríveis queimaduras espalhavam-se por todo o seu tórax. O cheiro de enxofre continuava emanando das mesmas. Seu sofrimento devia ser indescritível, mas ele ainda teve forças para me sussurrar:

"Por Crisagom..." --e desmaiou.

Eu deveria tentar curá-lo, ali mesmo, senão ele não resistiria aos ferimentos. Nisso, uma voz gutural gritou algo em uma língua estranha. O Sacerdote Negro dissera alguma coisa a alguém.

Do alto eles caíram sobre mim. Não tinha visto nada igual antes. Já combatera criaturas infernais no passado, mas nada parecido com aquilo.

Seres de corpo pequeno, coloração avermelhada, olhos negros e redondos e aparência demoníaca cercaram-me a mim e ao corpo de meu camarada. Suas bocas pequenas com presas abriram-se num esgar horrível. Em vez de mãos, possuíam garras de três dedos. Patas de bode no lugar de pernas. De suas testas, pequenos chifres curvos projetavam-se para o alto. Falavam alguma coisa num linguajar gutural e profano.

Olhei para os lados. A luta continuava intensa no barco verrogari. Não poderia contar com o auxílio de ninguém naquele momento. As criaturas das profundezas atacaram. Deveria haver umas dez ou doze delas. Ergui minha espada e girei-a sobre meu corpo. Consegui atingir duas daquelas coisas que caíram para trás, emitindo um som que parecia ser um guincho de dor. Mas as restantes amontoaram-se sobre mim mordendo e arranhando meus braços e rosto. Dei-lhes um safanão e três delas recuaram. As restantes continuaram a me atacar.

Eu resolvi acabar com aquilo rapidamente. Altiom precisava urgentemente de cuidados e ainda havia o Sacerdote Negro que ficara lá, parado, esperando suas crias acabarem comigo. Minha mão esquerda escorregou até o símbolo sagrado de Crisagom em meu pescoço, preso por uma correntinha de ouro e segurou-o fortemente. Fechei meus olhos e recitei a prece há tempos guardada em minha memória.

Um clarão de luz dourada, um som alto, uma onda de vento e os pequenos demônios foram literalmente empurrados para longe de mim como que se por uma mão invisível. Tomados de um pânico terrível, os seres de aparência ridícula fugiram em desabalada correria, ignorando os apelos de seu mestre sombrio que, surpreso, gritava algo para eles, naquela voz gutural.

Aproveitei o momento de fúria do demonista para com as pequenas criaturas e orei por um milagre de cura sobre Altiom, clamando a Crisagom para que aquilo bastasse para mantê-lo vivo, por enquanto.

Um urro inumano partiu do sacerdote negro, enquanto ele empunhava seu martelo de batalha e carregava contra mim, com seu escudo levantado. Pulei para o lado onde estava caído o meu escudo, evitando a primeira investida. O golpe perdendo-se no vazio.

Ergui-me, já de posse de meu companheiro de lutas, que me salvara a vida muitas vezes, firmemente preso em meu braço esquerdo. Brandi a espada e desferi um golpe potente sobre meu adversário. Mas ele era rápido e minha lâmina bateu contra o metal de seu escudo, retinindo-o.

Ele contra-atacou, girando o corpo, tentando atingir meu flanco esquerdo. Um bom golpe, veloz, executado com perfeição. Funcionaria contra qualquer um... menos comigo.

Desci meu braço direito velozmente contra seu membro descoberto. Foi tudo muito rápido. Nem eu mesmo vi direito. No instante seguinte, martelo, mão, punho e antebraço do bankdi caiam sobre o convés do drakkar verrogari, banhando de vermelho-púrpura o madeirame.

O demonista gritou de dor, recolhendo o membro decepado e agora inútil, enquanto tentava estancar o sangramento com sua mão esquerda. Aproveitei o momento e separei-lhe a cabeça do resto de seu corpo, achando que aquela era uma morte muito misericordiosa para uma criatura tão abominável.

Ergui minha arma e gritei em vitória. Os últimos remanescentes dos apóstatas se lançavam ao mar para salvarem suas detestáveis vidas. Nosso grupo percorria a nau verrogari eliminando os exíguos focos de resistência. O incêndio começava a ficar fora de controle...

A vitória era nossa... mais uma vez.

A justiça sempre triunfará no final.

“Symas... me lembrei de você.”

***

As lembranças de nossa luta no Lago Denégrio contra os verrogaris e os seres infernais pareciam antigas memórias hoje.

Muitos de nossos amigos não sobreviveram para estarem aqui hoje, em Chats, na celebração de nossa união às forças de defesa Filanti. Altiom era um deles, infelizmente. Leymar saíra com alguns ferimentos mais sérios, mas se recuperara para a cerimônia.

Mais uma vez Crisagom me dava uma chance de lutar contra os adoradores infernais sob a égide de um soberano.

Sua majestade, o rei de Filanti, acompanhado de seus generais e da maioria da nobreza fizera questão de discursar para o restante de nosso grupo. Não éramos em grande número, mas as lutas em Abadom nos haviam transformado em veteranos de guerra, bem mais experientes que qualquer soldado que este país pudesse produzir. Além disso, possuíamos uma coisa que nenhum outro guerreiro tinha...

A justiça divina estava do nosso lado.

E, no final, a justiça sempre triunfará.
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