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Epílogo .

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Ódio. Dor. Medo.

São coisas que ninguém deveria sentir, em nenhum momento da vida. Pois são desses sentimentos que se alimentam os Príncipes Infernais. Eles arquitetam seus planos doentios e enviam seus lacaios para nos causar mau, se deliciando quando obtêm sucesso. Entretanto, por mais paradoxal que seja, esses mesmos sentimentos por muitas vezes nos mantêm vivos, uma vez que o medo nos faz ter cautela, a dor nos faz reagir e o ódio nos faz seguir em frente.

E foi exatamente o que fiz: segui em frente, andando por dias entre os montes que hoje formam a fronteira entre Ludgrim e as Terras Selvagens.

Depois que Alus – a vila em que vivia – foi dizimada por uma horda de orcos, resolvi buscar ajuda no reino elfico chamado Lar, que ficava mais ao sul.

Parti com poucos pertences e nenhuma experiência, penetrando em um território hostil e desconhecido, amparado apenas por uma louca esperança de encontrar ajuda e meu pai ainda com vida.

Por todo o período em que estive vagando pelos montes pouco dormi, passei fome, sede e frio. Mas contra todas as chances lógicas, me mantive vivo, usando esses sentimentos tão ruins como alardes para minha salvação. E Crisagom sabe que precisei. Tanto que me presenteou com outro paradoxo: a felicidade e o alívio de ver uma flecha apontada em minha direção.

Sim. Porque do outro lado do arco estava um elfo, o que significava que eu havia conseguido.

***

Eu não vi de onde ele surgiu. Em um momento a trilha estava vazia e no estante seguinte havia um elfo parado na minha frente armado com um grande arco. Matinha o corpo ereto, o que lhe conferia um ar de grandeza, e a corda completamente esticada, a ponto de as penas da flecha roçarem em suas orelhas pontudas. Me fitava com os dois olhos abertos e o cenho franzido, como se não compreendesse minha presença em suas terras.

– Quem é você, mestiço, e o que faz aqui? – Perguntou em elfico.

– Me chamo Kerdal – falei devagar, sem desviar os olhos da ponta metálica da flecha – e venho de Alus, uma vila há alguns dias ao norte. Ela foi atacada por um bando de orcos, mas eu não estava lá na hora e quando voltei, muitos já estavam mortos e outros desaparecidos, inclusive meu pai.

– Orcos? – ele perguntou baixinho, como se falasse consigo mesmo. – Mas porque você veio para cá, porque não buscou refúgio com os da sua espécie?

Como assim minha espécie? Pensei. Era exatamente o que estava fazendo! Achei que talvez não estivesse conseguindo ser claro devido ao nervosismo, então tentei novamente, dessa vez com mais calma.

– Quando descobri os mortos, procurei meu pai  entre eles, mas não o encontrei. Então pensei que ele tivesse vindo para o sul, buscar ajuda com nossos irmãos elfos.

– Irmãos elfos? – Ele cuspiu essas palavras como se fosse uma blasfêmia e eu comecei a ficar preocupado. – Não somos irmãos de mestiços!

Nosso sangue não foi contaminado pela doença chamada humanidade!

– Mas eu pensei que pudesse me refugiar em Lar até encontrar meu pai.

– Em Lar? – Ele pareceu se divertir com a idéia. – Você não pode entrar em Lar, mestiço, apenas elfos puros caminham sobre suas terras.

– Mas eu não tenho para onde ir e...

– Fique quieto! – Gritou, me interrompendo. – Eu disse que você não pode entrar em Lar, mas não disse que não vou ajudá-lo. – Ele baixou o arco. – Venha comigo e tente não ficar se lamuriando.

Ele girou nos calcanhares seguindo pela trilha, e eu segui logo atrás.

– Como você se chama? – Perguntei, meio receoso.

– Leonim – respondeu o elfo de má vontade. – E agora fique quieto antes que alguém nos veja juntos.

Assim, seguimos calados pela trilha até uma pequena floresta com árvores de copas muito altas.

Caminhamos em silêncio por mais algumas horas até ele parar em frente a uma grande árvore, cujo tronco estava coberto por uma espécie de trepadeira que ia do chão até desaparecer entre as folhas dos galhos mais baixos. Ele segurou firme em uma parte da trepadeira e começou a escalar com agilidade.

– Vamos. Não fique aí parado. – Gritou Leonim, já no meio do caminho.

Tentei imitá-lo, mas tive muito mais dificuldade para subir, me balançando instável e caindo algumas vezes.

– Não tente subir puxando todo seu peso com os braços – a voz desdenhosa de Leonim saiu do alto da árvore, embora seu corpo já não estivesse visível. – Use os braços apenas para se apoiar e progredir e as pernas para tomar impulso.

Fiz o que ele disse. Segurei firme a trepadeira, mas não a puxei como fizera até então. Apoiei meus pés no tronco da árvore e comecei a subir, como se andasse verticalmente pela madeira antiga, dividindo meu peso entre meus braços e pernas.

Quando finalmente consegui chegar aos galhos mais baixos, ultrapassei a folhagem e fiquei extasiado com o que vi. Uma grande casa de madeira havia sido construída no alto daquela árvore. Ela possuía altas paredes de cedro e teto coberto com folhas muito longas de alguma árvore que eu não conhecia. Havia também buracos redondos que serviam como janelas e a entrada era igualmente circular. Uma grande plataforma de madeira rodeava a casa o que nos permitia andar tranqüilamente por seu exterior.

A casa por dentro era ainda mais fascinante.

Grandes móveis ocupavam boa parte do único aposento, também feitos de cedro e com partes esculpidas em formas de animais. Havia uma mesa cujos pés lembravam patas de cavalos, uma grande estante de porta única com o formato de uma cabeça de leão e uma cadeira com os braços em forma de cobras. Leonim sentou-se nela e indicou para que eu também sentasse, só que no chão.

– Qual é mesmo seu nome, mestiço? – Perguntou ele.

– Kerdal.

– Eu ouvi falar de ataques de orcos nas terras ao norte, inclusive na floresta de Siltam. Mas, por algum motivo, ignoraram Lar, ao menos por enquanto – ele falava enquanto parecia refletir sobre o assunto. – Você sabe de alguma coisa?

– Não sei nada sobre isso. Buscava apenas refúgio e ajuda, mas acho que não os encontrarei aqui.

– Não? E o que faz em minha casa? – Perguntou o elfo, fingindo estar ofendido. Quando me mantive em silêncio, ele continuou. – Mestiços não são mesmo bem-vindos, Kerdal. Muitos elfos acham que vocês são aberrações, que foram amaldiçoados depois de tocados pelos humanos, se tornando impuros.

– Mas eu não entendo – falei com sinceridade.

– A vida nesse mundo é mesmo complicada, mas você vai se acostumar. Para sua sorte, eu não compartilho dessa mesma opinião – Leonim abriu um largo sorriso, o que me surpreendeu. Não estava nem um pouco parecido com o elfo carrancudo que eu havia encontrado nas trilhas dos montes.

– Obrigado, Leonim. O que mais você sabe?

– Não muito. Mas soube dos ataques e que muitos foram tomados como prisioneiros pelos orcos e levados para o sul.

– Prisioneiros? – Minha esperança havia voltando, me golpeando como um soco e me pondo de pé. –Você sabe para onde exatamente?

– Calma, mestiço. Calma. Você não pode fazer nada por enquanto – Leonim riu e levantou de sua cadeira se aproximando de mim. – O que você faria sozinho contra um bando de orcos? Morreria é claro. E é bem provável que isso aconteça, mas nós podemos dificultar um pouco para eles. Você sabe lutar?

– Não.

– Então eu vou lhe ensinar algumas coisas. Quem sabe você não consegue matar pelo menos um antes de ser estripado?

O humor negro de Leonim me assustava um pouco, mas confesso que começava a me simpatizar com aquele elfo maluco. Ele me deu de comer e deixou que eu descansasse toda a manhã seguinte. À tarde, ele me entregou um pesado bastão de madeira e fomos para a floresta treinar.

– Uau! É com esse poderoso pedaço de madeira que eu vou derrotar os orcos? – Perguntei e tom sarcástico.

– Isso é para que você se acostume com o peso de uma espada sem cortar o próprio braço. Além do mais, você não derrotará os orcos, Kerdal. Apenas prolongará sua vida por alguns segundos.

– Porquê não me ensina a usar o arco?

– Porque você não aprenderia mesmo que treinasse durante quatro séculos. Há sangue humano em suas veias, lembra?

Treinamos com pedaços de madeira durante uma semana. No começo foi um fiasco vergonhoso. Eu era lento e desajeitado. Quanto tentava aplicar algum golpe, Leonim se esquivava, fazia cara feia e fingia vomitar. Quando a coisa era muito ruim, como na vez em que acertei minha própria perna, ele me batia com o bastão na cabeça e me chamava de mestiço idiota, dizendo que até sua mãe lutava melhor que eu.

Contudo, com o passar do tempo eu fui melhorando, conseguindo manter o equilíbrio e já não caía ao tentar golpes mais longos e fortes. Os duelos entre nós passaram a durar mais tempo e quando finalmente consegui acertá-lo, ele aposentou os bastões de madeira e passamos a treinar com espadas de verdade.

Foram dias felizes. Aquele Leonim carrancudo e antipático que eu conhecera havia desaparecido por completo. Ele ainda me xingava, me batia e me forçava a fazer trabalhos pesados, como cortar árvores e transformá-las em lenha, mas parecia gostar de mim. Me ensinou a caçar, a me camuflar na floresta e a distinguir quais plantas eram comestíveis e quais eram venenosas. E a noite ficávamos por horas conversando e trocando histórias. Passei a vê-lo como um irmão mais  velho e acho que ele, a me ver como o caçula.

Periodicamente, Leonim saía da floresta e passava o dia todo buscando informações. E um dia voltou muito sério, com expressão preocupada. Trazia uma bolsa grande, que esvaziou na minha frente, revelando tochas, um manto de peles e um odre.

Eu percebi imediatamente o que aquilo significava.

– Você esta pronto, Kerdal.

Até aquela amanhã eu achava que sim, mas quando a hora chegou, eu ensaiei fraquejar.

– Não – respondi com a cabeça baixa.

– Mas eu acho, e espero, que sim. Porque encontrei seu pai.

Levantei a cabeça e olhei no fundo dos seus olhos, não contendo as lágrimas que brotavam como as águas da nascente do rio Odem.

***

Partimos para o sul no dia seguinte. Leonim conseguiu um cavalo e foi comigo, o que me deu mais tranqüilidade. Cavalgamos durante cinco dias por uma trilha que ele julgava segura e na manhã do quito dia subimos uma pequena elevação e a usamos para observar o terreno, avistando nossos primeiros inimigos há algumas horas de onde estávamos. Era um pequeno grupo, de cinco orcos, que Leonim disse ser batedores ou caçadores.

Descemos a elevação e escondemos nosso cavalo, seguindo a pé o restante do caminho.

Já ao entardecer avistamos os orcos preparando acampamento. Fazia frio e eles acenderam uma grande fogueira, mas nós não podíamos nos dar ao luxo do calor e permanecemos no frio que aumentava à medida que éramos engolidos pela escuridão da noite. Quando a grande lua ficou alta, Leonim disse que era hora de agir.

– Eis o plano – começou. – Eu vou até lá ver o que consigo descobrir e você espera aqui até eu voltar.

– Nada disso, eu vou com você – falei decidido.

– Não, não vai. Vai fazer o que eu estou falando e se me desobedecer, lhe darei uma surra. – Ele riu enquanto sussurrava a ameaça, pegou seu arco, pendurou uma aljava no ombro e partiu em direção ao acampamento.

Eu, é claro, não obedeci e o segui utilizando as técnicas que ele mesmo me ensinara. Caminhava lentamente e bem abaixado, me certificando que não fazia barulho. Contudo, só consegui dar uns dez passos antes de ouvir o primeiro orco gritar.

Foi um urro estridente. Eu me levantei assustado me esquecendo de que devia permanecer escondido. Olhei em direção ao acampamento, mas não vi Leonim, apenas o corpo de um orco caído no chão e os outros correndo para pegar suas as armas. Um segundo orco caiu, com uma flecha trespassada em seu crânio. Continuei em pé procurando Leonim, mas não o vi. Entretanto, os orcos me viram e vieram os três em minha direção.

Só então percebi a burrada que havia feito. Para minha sorte, Leonim também percebera.

Ele saiu de seu esconderijo e xingou alto, chamando a atenção dos orcos e dois deles preferiram pegá-lo. Entretanto, um continuou vindo em minha direção e eu desembainhei minha espada desajeitadamente. Ele rugiu seu desafio e desferiu um forte golpe com seu machado, que tentei aparar com minha espada, mas a força do orco foi tão grande que me empurrou para trás, fazendo com que eu caísse de costas no chão.

O orco investiu novamente e tentou me cortar baixando seu machado com ferocidade, mas rolei para o lado e a lâmina chocou-se forte contra o chão de terra, levantando uma pequena e quase imperceptível nuvem de poeira. De repente me ocorreu uma idéia, ou talvez fosse puro reflexo, mas o fato é que peguei um punhado daquela terra e joguei nos olhos da criatura, que levantou e cambaleou para trás, esfregando os olhos com sua mão livre.

Não esperei. Não pensei. Apenas reagi. Levantei depressa e espetei o orco com minha espada,  enterrando fundo a lâmina em seu abdômen. A criatura soltou um urro feroz e seu sangue esguichou em meu rosto. Tentei puxar a espada, mas ela ficou presa na carne do orco que ainda tentava me cortar com o machado. Larguei o punho da espada e me afastei, vendo-o morrer devagar.

Minha boca estava completamente seca, meus braços e pernas tremiam, e meu coração parecia que ia explodir. Tinha vontade de chorar e rir ao mesmo tempo, numa mistura de excitação e medo que fazia minha mente girar com o turbilhão de emoções. Olhei em direção ao acampamento e vi Leonim se aproximando. Ele olhou o orco agonizando e terminou com seu sofrimento. Depois, apoiou o pé no corpo enorme da criatura e puxou minha espada que havia ficado presa na carne, me entregando em seguida.

– Primeira lição – disse ele, enquanto eu segurava a espada ensangüentada. – Quando enterrar fundo a lâmina, gire-a e puxe-a imediatamente. Isso impedirá que ela fique presa com a sucção da carne. Segundo, nunca mais me desobedeça e terceiro, vá se limpar. Você está com uma aparência horrível.

Derramei um pouco de água do meu odre nas mãos e esfreguei-as no rosto, deixando o líquido avermelhado. Contudo, meu manto de peles estava completamente sujo e, quanto a isso, eu nada podia fazer. Depois que me lavei segui Leonim até o acampamento orco e encontrei-o revistando os cadáveres. Ele vasculhava cada bolso, casa sacola, procurando algo que pudesse ser útil.

– Eu pensei em interrogar um deles, mas você estragou tudo – disse ele, enquanto remexia em uma sacola.

Permaneci quieto.

– Esses eram sem dúvida caçadores, o que significa que o grupo principal deve estar próximo. Vamos continuar imediatamente, Kerdal, e ver se conseguimos alcançá-los ainda escuro.

Voltamos, pegamos nosso cavalo e seguimos alguns rastros que Leonim achava ser de onde os caçadores orcos haviam vindo. Cavalgamos em um trote rápido, tentando cobrir uma maior parte do terreno em pouco tempo, o que se mostrou fácil, pois o solo era bem plano.

Não demorou muito para avistarmos as fogueiras do acampamento orco. Eram dezenas, que nos dava a dimensão da quantidade de inimigos.

Paramos a cerca de uma hora de distância, amarramos as rédeas do cavalo em uma pedra próxima e seguimos o restante do caminho a pé.

– Escute com muita atenção, Kerdal – sussurrou o elfo. – Segundo as informações que colhi, esse acampamento possui cerca de dez escravos capturados nos últimos ataques. Seu pai pode ser um deles, como também pode não ser. Irei procurá-lo seguindo a descrição que você me deu e se ele estiver lá, eu o trarei. – Ele fez uma pausa, como se avaliasse a melhor maneira de continuar falando. – Mas só poderei trazer ele, de modo que as outras pessoas terão de continuar como escravos, até encontrarmos uma forma de resgatálas.

Agora, caso ele não esteja, não trarei ninguém.

Eu não queria que fosse assim. Queria poder salvar todos, mas Leonim estava certo. Só tínhamos um cavalo e não havia maneira de levar todo muito, fosse quem fosse. De forma que concordei, com um leve movimento de cabeça.

– Você ficará aqui. E vê se dessa vez faz o que eu mando.

Ele pegou seu arco, pôs uma flecha na corda e seguiu para o acampamento, se esgueirando silenciosamente como uma cobra. A mim não restava alternativa se não aguardar.

Fiquei olhando apreensivo para o acampamento.

Não sabia ao certo qual seria o plano de Leonim e passei o tempo conjeturando a maneira que ele agiria. A mais provável era que ele tentasse evitar qualquer sentinela ao invés de matá-las, percorrendo o acampamento buscando a cela dos escravos. Mas não sabia como ele a encontraria ou como pretendia libertar apenas um prisioneiro sem que os outros fizessem uma algazarra implorando para também serem libertados.

O céu estava parcialmente nublado e a noite muito fria. Apertei meu manto ensangüentado contra o corpo, sentindo um mau cheiro nauseante. Olhava fixamente para as fogueiras que indicavam o acampamento e me mantinha em completo silêncio, tentando ouvir qualquer barulho que indicasse problemas. Mas os únicos ruídos que ouvia era o estridular de alguns grilos próximos.

Depois de muito tempo de espera, ainda não tinha nenhum sinal de Leonim. Tínhamos cerca de uma hora de escuridão e se ele não se apressasse, o dia amanheceria com ele dentro do acampamento orco, o que seria morte certa. E esse pensamento aumentou minha impaciência. Não podia ficar simplesmente parado vendo um amigo arriscar a vida para salvar meu pai. Era eu quem devia estar lá. Por outro lado, se fosse até o acampamento acabaria estragando tudo, como da vez anterior.

Que se dane, pensei. Desembainhei minha espada e comecei a andar bem devagar. Mas nesse momento senti alguém segurar firma o punho da minha espada. Tentei virar, mas outra pessoa me jogou contra o chão com força, cobrindo minha boca com a mão e de repente eu estava imobilizado. Ouvia alguns sussurros em um língua que não conhecia e logo meus braços e pernas foram amarrados e um pano posto dentro de minha boca.

Meus atacantes me puseram sentado e me vi cercado de dezenas de anões. Eles estavam visivelmente preparados para uma guerra, portanto armaduras, armas e escudos. Me olhavam com curiosidade, cochichando uns com os outros, mas eu não consegui entender nada do que diziam até que um dos anões se aproximar falando em malês.

Ele vestia uma linda a trabalhada armadura, que tinha esculpido o símbolo de Crisagom em seu peitoral.

– Preste atenção, mestiço. Meu nome é Bor e sou um paladino de Crisagom. Eu vou retirar esse pano de sua boca para podermos conversar, mas se você esboçar intenção de gritar ou fazer qualquer outro barulho que alerte os orcos de nossa presença, perderá a cabeça antes mesmo que emitir algum ruído, entendeu?

Assenti. E ele tirou o pedaço de pano na minha boca, embora me mantivesse amarrado.

– Muito bem. O que faz aqui? – Perguntou.

Contei-lhe minha história, falando do ataque a minha vila, do desaparecimento de meu pai e de Leonim. A cada pausa que dava para respirar, eles se entreolhavam, mas continuavam ouvindo com atenção.

– Então esse elfo está nesse momento dentro do acampamento orco?

– Creio que sim – respondi.

– Tudo bem. Nós atacaremos esses malditos antes do amanhecer e tentaremos poupar a vida de seu amigo, se é que ele ainda está vivo. Solte-o –

ordenou a um anão que estava bem atrás de mim, o qual usou minha própria espada para cortar as cordas que prendiam minhas mãos e pernas.

– E então, mestiço? Você vem ou não? – Perguntou Bor, enquanto o outro anão me devolvia a espada.

– Sem dúvida.

– Então você ficará atrás de nossa formação.

E eu fiquei.

E assim que o primeiro vislumbre o amanhecer apontou no céu, os anões lançaram-se em direção ao acampamento orco numa investida terrível, que

fazia o chão tremer.

Foi um massacre.

Os orcos foram pegos completamente despreparados. Muitos ainda tentaram reagir empunhando suas armas, mas o ataque dos anões era feroz e por onde passavam corpos orcos brotavam no chão. O dia clareava rápido e era recebido com gritos de dor e o tilintar do choque de metal contra metal.

Eu, ao invés de me ocupar no combate, deixei a carnificina por conta dos anões e me ocupei em procurar o elfo. Andei por entre as tendas me esquivando dos olhares dos orcos que corriam para a batalha, até que ouvi o grito e o choro de mulheres. Segui o som com cautela e vi várias pessoas com os braços e pernas amarrados e, por fim, presas umas nas outras. Leonim estava com elas, tentando acalmá-las enquanto cortava a corda de um meio-elfo.

E era ele. Era meu pai.

Corri desesperado sem sua direção e me joguei em seus braços assim que Leonim cortou as cordas que o prendiam. Nos abraçamos e choramos juntos, misturando nossas lágrimas e nossas felicidades.

– O que faz aqui, Kerdal? – Perguntou surpreso o elfo.

– Vim com os anões. É uma longa história. Porque você demorou tanto?

– Estava esperando o melhor momento e quando vi o ataque, achei que fosse esse – respondeu ele sorrindo. – Vamos, Kerdal. Me ajude a soltar os outros.

Peguei minha espada e cortei a corda que prendia os pés do meu pai e continuei soltando as outras pessoas, quando ouvi Leonim gritar. Olhei para ele e vi suas costas trespassadas por uma espada. Um orco o havia atacado enquanto ele soltava os prisioneiros, que começaram a correr gritando de medo.

Gritei seu nome alto, muito alto, o que atraiu a atenção dos anões que estavam mais próximos e esses vieram correndo, mas não esperei que chegassem e parti em direção ao maldito orco que havia atacado o elfo pelas costas. Quando estava chegando próximo, vi que o orco possuía uma grande cicatriz em seu rosto e me lembrei imediatamente da morte de Ilara em Alus, há tantos dias atrás. Ele retirou a espada fazendo o sangue jorrar e o corpo de Leonim despencou como

um saco vazio.

Antes que eu pudesse alcançar o orco, os anões chegaram e tomaram minha frente. O maldito tentou fugir, mas foi perseguido e morto com diversos golpes de espadas e machados. Me voltei para Leonim que estava caído no chão e segurei-o em meus braços.

– Não amigo, por favor, não morra! – gritei de desespero, deixando as lágrimas escorrerem e pingarem de meu queixo em seu rosto. Seus olhos estavam arregalados e sua boca coberta de sangue.

– Não morra, por favor! – gritei novamente, mas Leonim já não estava mais conosco. Abracei forte seu corpo sem vida e chorei como uma criança.

***

O sol já estava alto quando os anões terminaram de cavar o buraco. Era uma cova bem funda, muito diferente da que eu havia feito para Ilara. Eles colocaram o corpo de Leonim dentro da cova e o cobriram com alguns mantos, enchendo em seguida o buraco de terra.

Enquanto Leonim era sepultado, eu me lembrava do tempo em que passamos juntos. De quando nos conhecemos nas trilhas das montanhas, dos treinamentos com os bastões de madeira e dos ensinamentos sobre caça e sobrevivência, e de como ele em tão pouco tempo havia me salvado por diversas vezes. Eu devia muito aquele elfo.

Bor fez uma linda oração, dizendo que Leonim havia lutado com honra e bravura, se mostrando digno, e pediu para que Crisagom o guiasse em segurança na passagem para o outro mundo, onde teria um ótimo lugar o aguardando.

Os anões nos escoltaram até onde meu cavalo estava, enquanto seu líder me contava mais sobre o mundo que ficava além de Alus, com seus encantos e seus perigos. Bor me desejou boa sorte e disse que Crisagom sempre estaria ao meu lado, que eu era um jovem de honra e coragem, e que Ele estaria olhando por mim. Vendo que eu ainda estava muito abatido com a morte do meu amigo elfo, me presenteou com um amuleto esculpido com o símbolo de seu deus e partiu com os outros anões logo em seguida.

No caminho de volta contei toda a história a meu pai e ele ficou espantado de saber que eu havia aprendido tanta coisa e que deixara de ser definitivamente um menino. Aquele pensamento mexeu comigo. Havia tantos perigos no mundo, tantas maldades e injustiças. Eu não poderia mais ficar alheio ao que estava  acontecendo.

Pensei em Leonim e em Bor, e em tudo que ambos haviam me ensinado. Primeiro o elfo, que não só me ensinou a lutar, como me mostrou um mundo novo, com suas histórias de elfos renegados e uma Cidade inteiramente feitas de Cristais; e meu novo amigo anão, que enquanto cavalgávamos de volta, me presenteou com suas preciosas informações sobre As Geleiras, Os Mangues e a inigualável Blur.

Leonim e Bor. Nunca mais esqueci esses nomes. Seres formidáveis que deixaram de lado suas diferenças raciais para ajudar pessoas que eles mal conheciam. Lutando definitivamente por um mundo melhor; um mundo de justiça e paz.

Olhei para o amuleto que Bor havia me dado e decidi que faria o mesmo.

Que rumaria para o norte.

Que seria mais uma espada nessa batalha.

Que lutaria por aqueles que não poderiam lutar por si mesmos.

Mesmo que ainda não soubesse, aquela era a centelha do que futuramente guiaria toda minha vida.


Verbetes que fazem referência

Terras Selvagens

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